Vai-se a ver, o mundo da escrita e o mundo das empresas, ou dos negócios, andam mesmo de candeias às avessas. Quantas vezes não pensei já nisso... Inclusive logo nos tempos de faculdade, quando alguns colegas me consideravam uma pessoa aérea apenas por escrever ficção, ao mesmo tempo que os meus conhecidos na escrita me viam como alguém que na ficção não haveria de ir longe só porque estudava gestão de empresas. Bom, a verdade é que nunca abandonei nenhum dos dois mundos, mesmo que por vezes me tenha visto obrigado a dizer que se escrevesse poesia em vez de ficção sempre seria pior. Mas de tempos a tempos acontece cada situação...
Uma vez participei num encontro de literatura ibero-americana, em Lisboa. O moderador era o escritor chileno Luis Sepúlveda, a quem eu já tinha ouvido afirmar que quem quisesse ser uma pessoa vertical, e por causa dos valores cada vez mais em voga, teria de assumir uma postura que a colocasse na marginalidade. À margem dos políticos demagogos e tantas vezes corruptos, à margem dos viciados na imagem, à margem da fama e do efémero, dos bens materiais, das multinacionais, da globalização, da bizarra e multifacetada indústria do lobby. E eu que na altura do encontro trabalhava numa multinacional… Foi nisso que pensei ao chegar mesmo em cima da hora para o início ao local onde as coisas decorriam. Mas depois pensei também… «O Sepúlveda é, ele próprio, uma espécie de multinacional da literatura, de forma que não deve haver problema.» E então lá me sentei, junto dele e de outros marginais como ele, marginais mesmo assumidos. Eu vestia fato e gravata (ainda por cima fato cinzento e gravata só de uma cor), e uma camisa branca. Tinha saído da empresa a correr, depois de uma reunião para discutir coisas ligadas, imagine-se, a «políticas de formação para executivos». Se eu referisse isso no tema que me estava atribuído para desenvolver, intitulado «um mar de palavras», de certeza que haveriam de expulsar-me em menos de nada do encontro. Só de pensar nos olhares que alguns daqueles marginais me dirigiram ao ver-me aparecer de fato e gravata... Eu até começava a sentir-me também um marginal, mas um marginal no meio deles.
Enfim, lá acabei por falar do «mar de palavras», das duas línguas irmãs, a portuguesa e a castelhana, imensas, ricas, tão bonitas, duas línguas com uma infinidade de soluções. Com a diferença de a castelhana, independentemente da geografia, ter musicalidade, e a portuguesa só a ter à custa dos brasileiros e dos povos africanos lusófonos. Sem a ajuda de África e do Brasil a língua portuguesa seria apenas boa para contar, e não para cantar e contar, como a castelhana. Eu gosto da língua portuguesa como da castelhana e fiz a minha intervenção como se se tratasse de uma só língua, de um único mar imenso de palavras. Mesmo que por vezes as águas não sejam as mais calmas.
Falei disto depois de ter passado toda a tarde, na empresa, a falar das tais «políticas de formação para executivos», principalmente aqueles «executivos» a quem de há uns anos para cá se começou pomposamente a chamar primeiro «quadros estratégicos» e depois «talentos». E fi-lo com a maior das naturalidades. Mas os marginais assumidos... Sim, esses marginais que, vim depois a saber por um deles, estavam hospedados no Hotel Altis, inclusive com alguns marginais portugueses, imagino que os de fora de Lisboa…
Esses marginais fizeram-me lembrar de um romance do jornalista português Fernando Sobral («Na Pista da Dança»), um romance que explora os ambientes do mundo da música. A história passa-se no Barreiro, na ressaca da grande aventura industrial da segunda metade do século XX, que agora parece mesmo terminada. «Os subúrbios têm segredos», escreve o autor a certa altura. «Escondem muitas coisas que não nos querem dizer. Sabem demasiadas coisas que não nos podem revelar. São territórios que muitos julgam conhecer, mas que nunca conhecerão.» Pior ainda, se são «subúrbios com subúrbios à volta».
Como eu pensei no romance durante o encontro... Eu de fato e gravata, no encontro de literatura ibero-americana, eu feito um marginal e com uma série de marginais à volta. Devia ter calculado que aparecer de fato e gravata poderia dar naquilo... Até por um episódio ocorrido na noite anterior, no jantar que a Câmara de Lisboa ofereceu aos participantes no encontro. Foi no restaurante Bica do Sapato, um dos mais in da capital, onde nenhum marginal assumido se negou a entrar. Na minha mesa, entre outros convidados, estava uma mulher que ao ver-me de fato e gravata logo se me dirigiu: «Você é da Câmara, não é?» Respondi-lhe que não, que era um dos escritores. «Venho agora do trabalho.» «Ah!...», disse ela. «Tive o dia cheio de reuniões...», desculpei-me. «Que engraçado!... E o que é que faz?» Respondi-lhe que trabalhava em gestão de empresas. «Ah!... E escreve?!...», admirou-se ela.
Já agora, quase me esquecia... Quando saí da empresa, a correr, para não chegar atrasado ao encontro, um dos colegas de trabalho disse-me assim: «Mas tu vais mesmo participar numa coisa com esses tipos todos!...» «Vou», respondi-lhe. «Pois, tu é que sabes...», disse ele.
Uma vez participei num encontro de literatura ibero-americana, em Lisboa. O moderador era o escritor chileno Luis Sepúlveda, a quem eu já tinha ouvido afirmar que quem quisesse ser uma pessoa vertical, e por causa dos valores cada vez mais em voga, teria de assumir uma postura que a colocasse na marginalidade. À margem dos políticos demagogos e tantas vezes corruptos, à margem dos viciados na imagem, à margem da fama e do efémero, dos bens materiais, das multinacionais, da globalização, da bizarra e multifacetada indústria do lobby. E eu que na altura do encontro trabalhava numa multinacional… Foi nisso que pensei ao chegar mesmo em cima da hora para o início ao local onde as coisas decorriam. Mas depois pensei também… «O Sepúlveda é, ele próprio, uma espécie de multinacional da literatura, de forma que não deve haver problema.» E então lá me sentei, junto dele e de outros marginais como ele, marginais mesmo assumidos. Eu vestia fato e gravata (ainda por cima fato cinzento e gravata só de uma cor), e uma camisa branca. Tinha saído da empresa a correr, depois de uma reunião para discutir coisas ligadas, imagine-se, a «políticas de formação para executivos». Se eu referisse isso no tema que me estava atribuído para desenvolver, intitulado «um mar de palavras», de certeza que haveriam de expulsar-me em menos de nada do encontro. Só de pensar nos olhares que alguns daqueles marginais me dirigiram ao ver-me aparecer de fato e gravata... Eu até começava a sentir-me também um marginal, mas um marginal no meio deles.
Enfim, lá acabei por falar do «mar de palavras», das duas línguas irmãs, a portuguesa e a castelhana, imensas, ricas, tão bonitas, duas línguas com uma infinidade de soluções. Com a diferença de a castelhana, independentemente da geografia, ter musicalidade, e a portuguesa só a ter à custa dos brasileiros e dos povos africanos lusófonos. Sem a ajuda de África e do Brasil a língua portuguesa seria apenas boa para contar, e não para cantar e contar, como a castelhana. Eu gosto da língua portuguesa como da castelhana e fiz a minha intervenção como se se tratasse de uma só língua, de um único mar imenso de palavras. Mesmo que por vezes as águas não sejam as mais calmas.
Falei disto depois de ter passado toda a tarde, na empresa, a falar das tais «políticas de formação para executivos», principalmente aqueles «executivos» a quem de há uns anos para cá se começou pomposamente a chamar primeiro «quadros estratégicos» e depois «talentos». E fi-lo com a maior das naturalidades. Mas os marginais assumidos... Sim, esses marginais que, vim depois a saber por um deles, estavam hospedados no Hotel Altis, inclusive com alguns marginais portugueses, imagino que os de fora de Lisboa…
Esses marginais fizeram-me lembrar de um romance do jornalista português Fernando Sobral («Na Pista da Dança»), um romance que explora os ambientes do mundo da música. A história passa-se no Barreiro, na ressaca da grande aventura industrial da segunda metade do século XX, que agora parece mesmo terminada. «Os subúrbios têm segredos», escreve o autor a certa altura. «Escondem muitas coisas que não nos querem dizer. Sabem demasiadas coisas que não nos podem revelar. São territórios que muitos julgam conhecer, mas que nunca conhecerão.» Pior ainda, se são «subúrbios com subúrbios à volta».
Como eu pensei no romance durante o encontro... Eu de fato e gravata, no encontro de literatura ibero-americana, eu feito um marginal e com uma série de marginais à volta. Devia ter calculado que aparecer de fato e gravata poderia dar naquilo... Até por um episódio ocorrido na noite anterior, no jantar que a Câmara de Lisboa ofereceu aos participantes no encontro. Foi no restaurante Bica do Sapato, um dos mais in da capital, onde nenhum marginal assumido se negou a entrar. Na minha mesa, entre outros convidados, estava uma mulher que ao ver-me de fato e gravata logo se me dirigiu: «Você é da Câmara, não é?» Respondi-lhe que não, que era um dos escritores. «Venho agora do trabalho.» «Ah!...», disse ela. «Tive o dia cheio de reuniões...», desculpei-me. «Que engraçado!... E o que é que faz?» Respondi-lhe que trabalhava em gestão de empresas. «Ah!... E escreve?!...», admirou-se ela.
Já agora, quase me esquecia... Quando saí da empresa, a correr, para não chegar atrasado ao encontro, um dos colegas de trabalho disse-me assim: «Mas tu vais mesmo participar numa coisa com esses tipos todos!...» «Vou», respondi-lhe. «Pois, tu é que sabes...», disse ele.
2 comentários:
Parabéns. Pela arte de fazer aquilo que gosta e pela capacidade de gostar daquilo que faz :).
Os outros ... são simplesmente os outros. Desde que sejamos bons naquilo que fazemos.
Pois. O gestor deveria ter rasgado a gravata à entrada do encontro de escritores e despentear-se. E, no dia seguinte, chegando à empresa, esconder o livro de ficção por debaixo do dossier com gráficos - ajeitando os colarinhos. É assim que muita gente ainda prefere imaginar um artista: despenteado; e é assim que muita gente ainda prefere imaginar um gestor (ou outro profissional sério): arredado da literatura. Ora, passar, durante um mesmo dia, da matemática à sintaxe, da literatura ao calhamaço de bioquímica, da poesia à botânica, da vida verdadeira das ruas às cidades imaginadas dos romances - parece-me mais enriquecedor e mais verdadeiro. Desconfio tanto dos poetas que se arrogam não saber fazer uma conta de multiplicar ou de dividir como dos economistas ou dos professores de engenharia que se gabam de não poisar os olhos, nem perder um átimo, com um verso ou um capítulo dum livro de ficção.
Enviar um comentário