segunda-feira, 9 de abril de 2007

Os portugueses notáveis de kasparov

Este texto resulta de uma conferência de Garry Kasparov a que assisti. O antigo campeão mundial de xadrez falou para uma plateia composta em boa parte por pessoas de empresas, falou de questões ligadas a estratégia, inovação, empreendedorismo e também ao processo de tomada de decisão nas organizações, muitas vezes tendo como pano de fundo o xadrez. Mas o que mais me chamou a atenção foi o facto de ter referido cinco portugueses que considera notáveis.

À entrada da década de 1980, as notícias dos grandes duelos mundiais de xadrez traziam quase sempre dois nomes associados, Anatoli Karpov e Victor Kortchnoi. Era à volta destes dois mestres soviéticos que tudo parecia girar. Mas um outro nome começava a emergir, também russo, parecido com Karpov mas mais comprido. Garry Kasparov, nascido em 1963 em Baku, capital do actual Arzebaijão e então uma das repúblicas da União Soviética, já se tornara notado no mundo do xadrez. Corajoso, irreverente, agressivo e perfeccionista, Kasparov desafiou Karpov, o campeão mundial, em 1984. A partida durou seis meses, tornando-se a mais longa na história do xadrez. Foi parada pelo presidente da federação internacional da modalidade, que ordenou que se disputasse uma nova partida. Em Novembro de 1985, Kasparov ganhou o denominado rematch contra Karpov e tornou-se campeão mundial. Tinha 22 anos e era o jogador mais novo a consegui-lo.
Do jovem que em meados da década de 1980 espantou o mundo, depois de anos e anos a lançar avisos de que se tratava de um caso mesmo muito sério, o que é que parece manter-se agora, passadas que estão cerca de duas décadas? Tudo, ou quase tudo. É a ideia com que se fica. Kasparov, ainda e sempre profundamente ligado ao xadrez, demonstra a mesma coragem, a mesma irreverência, até a mesma agressividade quando aparece algo ou alguém que a justifique. Fala para quadros de empresas, de estratégias, de tácticas, de inovação, de tudo o que rodeia a tomada de decisão numa organização, e se não perde nunca de vista o xadrez e os seus exemplos para o mundo da gestão, também não se esquece da sua condição de activista político, comprometido, empenhado em que o seu país conheça uma mudança capaz de fazer com que por lá se possa respirar plenamente os ares da democracia.

A estratégia e as tácticas
Mas apesar de nunca perder o xadrez de vista, Kasparov também não perde os gurus da gestão. Por exemplo, para falar de estratégia vai buscar a ideia de Peter Drucker de que os planos de longo prazo não são uma verdadeira estratégia, porque aquilo que interessa é o presente. Faz um paralelismo entre o Oráculo de Delfos – onde os antigos gregos colocavam perguntas aos deuses – e a consultoria estratégica e as respostas que esta dá aos gestores das empresas. Para Kasparov, estratégia é «a avaliação com calculismo», porque não interessa a reacção, algo do género «se o outro fizer isto, então eu actuo da maneira tal», ou «se ele sobe o preço eu faço isto, se desce eu faço aquilo». Quer dizer, «na reacção não há estratégia nem objectivos». Daí que seja até preferível «ter um mau plano a não ter nenhum e deixar-se arrastar por aquilo que os outros vão fazendo»; «um mau plano», acentua Kasparov, «com boas tácticas até pode ser bem sucedido».
kasparov distingue as tácticas da estratégia. Para ele, «as tácticas indicam o que fazer quando acontece alguma coisa»; já a estratégia é «algo para quando não há nada para fazer». E aqui toca no tema do empreendedorismo, em relação ao qual cita exemplos como a Otis, um colosso mundial em fabricação, venda e prestação de serviços de produtos voltados para o deslocamento de pessoas, incluindo elevadores, escadas rolantes ou sistemas shuttle, colosso que nasceu em 1853 em Yonkers, Nova Iorque, com Elisha Graves Otis, que inventou um mecanismo de segurança para uma plataforma de elevação, mecanismo para o qual conseguiu captar a atenção geral. Ou como a construtora de aviões Boeing, outro colosso, este fruto da visão de um empreendedor (William Edward Boeing) nascido em Detroit e que na costa leste dos Estados Unidos, em Seattle, para onde se mudou, tinha conseguido tornar-se um empresário de sucesso no sector das madeiras; a visão de Boeing estava relacionada com a construção de um hidro-avião tão bom ou melhor do que os existentes. Juntamente com um amigo, com o qual partilhava a paixão dos desportos aquáticos numa cidade rodeada de lagos, comprou um hidro-avião cuja construção os dois estudaram, criando depois um modelo próprio que mostraram à Marinha. Foi em 1916 e no ano seguinte, com a declaração de guerra à Alemanha por parte dos Estados Unidos, logo conseguiram a encomenda de meia centena de unidades. A primeira encomenda de uma história de sucesso e capacidade de superação.
Além da importância do empreendedorismo, Kasparov destaca ainda a inovação, que considera um dos tópicos mais importantes. Cita Thomas Edison, que «dizia que nunca falhava, apenas descobria 2.000 situações para não resultar». Esta ideia encerra muito daquilo que pode ser o motor da inovação. A procura do novo, dando mais atenção ao «por quê» do que ao «como». Tanto mais que, como Kasparov aconselha a que os gestores façam no dia-a-dia, quem pergunta «como?» acabará por ser sempre trabalhador e quem pergunta «por quê?» tem boas probabilidades de vir a tornar-se patrão. A inovação, diz, «significa mudança, risco, até inconsistência». E para que seja encorajada é preciso «um ambiente que apele à exploração e ao desafio». «Que interessa que uma empresa continue a fazer um produto que ninguém quer?», pergunta kasparov, para logo a seguir realçar a importância de «não nos importarmos com o quanto somos bons, mas com o imperativo de inovarmos permanentemente, aprendendo mais com os fracassos do que com os sucessos», pois essa será a melhor maneira de permanecer no topo.
Além disto, realce ainda para outros dois factores extremamente importantes para Kasparov. A intuição, que «tem a ver com o saber e com a experiência, mas também com os desejos», e a coragem, «a coragem para decidir». Sobretudo a coragem, que Kasparov refere, recorrendo a uma ideia de Winston Churchill, ser «a melhor qualidade humana, porque garante todas as outras».

Os portugueses
Além dos nomes referidos, e de alguns outros, como o inevitável Sun Tzu, nomes grandes do xadrez, Cristóvão Colombo ou John F. Kennedy, Kasparov falou ainda durante a sua intervenção de cinco portugueses. Apenas homens, são cinco figuras de épocas tão diferentes como a dos descobrimentos, a da criminosa ditadura salazarista ou a actualidade; cinco portugueses que considera notáveis: dois navegadores, Gil Eanes e Vasco da Gama; um militar que se destacou sobretudo como político, Humberto Delgado; um futebolista, Eusébio; e um escritor, José Saramago.
Gil Eanes e Vasco da Gama surgiram junto com Cristóvão Colombo numa altura do discurso em que Kasparov falou da inovação e da importância de existir um ambiente que a encoraje. Referiu a paixão que enquanto criança tinha por mapas e geografia, de como o seduziram as histórias de vida de grandes navegadores como o algarvio de Lagos que conseguiu ir para além do Cabo Bojador ou o alentejano de Sines que navegou de Lisboa até à cidade indiana de Calecute (actual Kozhikode).
Humberto Delgado foi nomeado logo na abertura da conferência, e depois mais algumas vezes. A famosa frase proferida pelo general sem medo numa conferência de imprensa durante a campanha para as eleições presidenciais de 1958, em resposta a uma pergunta sobre o que faria com Salazar se fosse eleito presidente da Republica («Obviamente, demito-o!»), surpreendeu Kasparov quando em 1998 a leu pela primeira vez. É a frase que ele próprio usaria para Vladimir Putin, se pudesse tomar uma decisão sobre o líder de um regime que, como não se cansa de dizer, «é visto no ocidente como uma democracia estranha, à maneira russa, mas que na verdade é um estado policial não muito diferente do Portugal dos anos 50 do século passado».
Eusébio surgiu na sequência de uma evocação de um nome grande do xadrez, aquele que foi um dos heróis de Kasparov, o arménio Tigran Petrossian, várias vezes campeão mundial na década de 1960 e um jogador que quando estava na sua melhor forma conseguia prever qualquer plano possível do adversário, além de possuir uma técnica maravilhosa, uma enorme percepção táctica e uma paciência inesgotável, características que o tornavam praticamente imbatível. Kasparov não esqueceu na sua conferência a vedeta da selecção portuguesa no mundial de Inglaterra em 1966 (Kasparov tinha três anos na altura), sobretudo a actuação no jogo com a Coreia do Norte, em que aos 20 minutos os asiáticos ganhavam a Portugal por três a zero; grande parte da reviravolta viria a estar a cargo de Eusébio, que contribuiu com quatro golos para resultado final de cinco a três. Isto num mundial em que segundo Kasparov, e segundo muita gente desde então, as duas selecções que disputaram o jogo para o apuramento do terceiro classificado (Portugal e União Soviética, com vitória portuguesa) deveriam ter estado na final, não tivesse havido decisões estranhas pelo meio.
Finalmente, José Saramago… A referência ao Nobel português aconteceu no tópico da inovação, não pela sua opção única de escrever com uma pontuação bem peculiar, marcada sobretudo pela frugalidade, que permite ao leitor uma leitura ao ritmo da própria respiração, mas por algo que também será propício à inovação, à capacidade de inovar: as dificuldades da vida, principalmente aquelas que são experimentadas em criança. Para isso, Kasparov recorreu a uma frase de Saramago: «As crianças crescem melhor à sombra do que ao sol.» Não referiu, no entanto, uma sombra absolutamente fantástica do criador de «Memorial do Convento», a de uma figueira junto da qual, nas tardes de Verão, o rapazito Saramago se deitava muitas vezes, para se proteger do calor. A mesma figueira que depois, a cada noite, o voltava a acolher; a ele, Saramago, que embalado pelas histórias do avô via as estrelas por entre os ramos. Como escreve no discurso de Estocolmo… «No meio da paz nocturna, entre os ramos altos da árvore, uma estrela aparecia-me, e depois, lentamente, escondia-se por trás de uma folha, e, olhando eu noutra direcção, tal como um rio correndo em silêncio pelo céu côncavo, surgia a claridade opalescente da Via Láctea…»

»»» CAIXA
Garry Kimovich Kasparov nasceu em Baku, capital do Azerbaijão, no dia 13 de Abril de 1963. Aprendeu xadrez muito novo, com o pai, um engenheiro judeu que acabaria por morrer num acidente de viação em 1970. A mãe, de origem arménia, sempre o apoiou na prática do xadrez. Garry começou logo aos sete anos a chamar a atenção dos treinadores locais, pela memória prodigiosa, pelo profundo envolvimento nas análises sobre as posições propostas e pela capacidade criativa. Aos nove anos era um jogador de primeira categoria, e aos 10 candidato a mestre, tendo-se então ligado a uma famosa escola de formação de xadrez. Em 1975, com apenas 12 anos, tornou-se o mais jovem vencedor do campeonato soviético para juvenis (até 20 anos). Em 1978, foi o mais jovem participante numa final do campeonato absoluto soviético (com participantes das várias repúblicas); em 1981, tornou-se o mais jovem a vencê-lo, com 18 anos. Sempre no mesmo ritmo, foi o mais jovem vencedor do torneio de candidatos aos 21 anos (1984) e o mais jovem campeão mundial, vencendo Anatoli Karpov, em 1985, com apenas 22 anos. Considerado um dos xadrezistas mais virtuosos de todos os tempos, conta as suas múltiplas experiências no livro «How Life Imitates Chess». Activista político, opositor declarado do regime de Vladimir Putin, Kasparov é assessor estratégico de diversas empresas e instituições financeiras e um especialista no mercado russo. Preside ao «Comité 2008 para a Livre Opção» e partilha a presidência do «All-Russian Civil Congress».

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