Publiquei recentemente no portal «RHonline» uma entrevista com o consultor Pedro Martins. A propósito desta entrevista, recordei-me que dele escrevi um perfil em 2003 para a revista «Pessoal». Li o texto agora e procurei melhorar um ou outro pormenor da redacção da altura; pode ler-se a seguir…
Pedro Martins
O discreto guerrilheiro
Se fosse preciso matar o presidente da FIAT, Pedro Martins não ia de calças de ganga, nem de sandálias, nem com a barba por fazer. Ia de fatinho italiano, para conseguir passar a porta de algum hotel onde o homem se hospedasse. Também teria garrafa no mesmo bar que ele; supondo até que faria aí o serviço, quando a Polícia aparecesse o mais certo era prender um dos empregados, e Pedro Martins, sempre de fatinho italiano, nem estranharia se ouvisse um pedido de desculpas pelo transtorno.
Pedro Martins tem 48 anos [texto de 2003] e é consultor. Gosta de ser discreto, embora a falar não pareça muito. Mas já lá vamos... Primeiro a discrição, principalmente a que diz usar nas empresas, para não ser logo abatido. «Quando se trata de intervenção na área organizacional, nomeadamente a consultoria, um dos meus livros de referência é o ‘Manual do Guerrilheiro Urbano’, que recomendo com frequência quando dou aulas, seja em Portugal, seja no estrangeiro.» O autor não é nenhum tom-peters norte-americano, é Carlos Marighella, brasileiro, guerrilheiro urbano, terrorista durante a ditadura militar. «Assaltava bancos, matava políticos... Escreveu um manual para ensinar os seus pares a fazer intervenção social. Um dos ensinamentos que tirei vem num dos capítulos, a que ele chama ‘Camuflagem’, que diz praticamente isto: para matar o presidente da FIAT, não posso aparecer de calças de ganga, sandálias e barba por fazer; ando de fatinho italiano para poder entrar no hotel dele, tenho garrafa no mesmo bar que ele... Para se fazer intervenção organizacional, a primeira condição é a discrição. E isso é um dos muitos erros estratégicos dos chamados processos de mudança organizacional, que não passam de processos panfletários que as pessoas anunciam muito, fazendo T-shirts, indo correr, fazendo um jornal... E depois têm de chorar, fazem muito ‘oba oba’, para usar uma expressão brasileira, mas quando se espreme não há substância. Eu perfilho do que o Carlos Marigela diz, gosto da discrição. O consultor não se pode anunciar dentro da empresa como o líder da mudança. Automaticamente está abatido. Os bons processos de mudança são aqueles de que não se fala. Muita gente que faz processos de mudança por cá, se lesse o Carlos Marighella percebia.»
O guerrilheiro quando jovem
Mas como chegou Pedro Martins até aqui, para poder dizer estas coisas? Talvez o melhor seja começar pelo princípio, pelo dia primeiro de Maio de 1955. Pedro Martins nasce em Almada, filho de um sargento do exército e de mãe doméstica. Tudo corria dentro da normalidade anormal do Estado Novo até que, já no final da década de 1960, com 13 anos, o jovem Pedro é expulso do liceu. «É uma história interessante ouvida nos dias de hoje. O meu pai dava-me sempre um presente quando eu passava de ano. Era tradição. No segundo ano do liceu – na altura ainda não havia ciclo –, o prémio que pedi foi ter explicações de inglês, porque as revistas de pop e jazz eram todas em inglês e eu achava piada a conseguir compreender as letras das canções. Então, durante as férias, fui aprender inglês. Quando chegou o terceiro ano e se começava a aprender inglês no liceu, eu já sabia alguma coisa. Isso chocou muito a professora, que preferia que eu fosse virgem na matéria. Ela, de alguma forma, exerceu represálias por eu ter aprendido durante as férias. Obrigava-me a ir todos os dias fazer os trabalhos ao quadro, sempre na expectativa de me apanhar em falta. Eu revoltei-me muito contra isso, era uma criança... Um dia disse-lhe: ‘Olhe, vá à merda, porque eu sei inglês!’ Foi o suficiente para eu ser expulso. E quando se era expulso do liceu, naquela época, só se podia entrar no ciclo seguinte, de forma que tive de fazer o resto do terceiro ano, assim como o quarto e o quinto, num colégio particular. Só depois regressei ao liceu.»
Ia-se compondo assim o retrato do guerrilheiro quando jovem. Pedro e o Estado Novo… «Era o obscurantismo, parecia que não nascia o Sol, que a PIDE impedia. Acima de tudo, era um tempo ridículo. Nem guardo imagem de opressão, guardo do ridículo. Dois ou três exemplos.... Eu bem cedo tornei-me activista político, ligado ao Partido Socialista na clandestinidade. Saí já depois do 25 de Abril, em 1977… Mas ainda durante a ditadura havia uma coisa chamada Sociedade de Estudos e Documentação, um organismo que ficava na Avenida Duque d’Ávila que era praticamente o organismo do Partido Socialista na clandestinidade. Era muito curioso... Havia aspectos folclóricos, por isso digo que era um tempo ridículo. Havia colóquios e só dois jornais iam fotografar. O ‘República’, da oposição, que fotografava a mesa, e ‘A Época’, da PIDE, ou antes, controlado, que fotografava a assembleia... E era preciso ter licença de isqueiro, como se fosse uma arma, ter um atestado de boa conduta, tirado nas juntas de freguesia. Havia polícias à paisana… Se andasse sem licença, podia ir preso por posse de arma incendiária. Eu, por exemplo, fui chamado à PIDE porque encomendei um livro de Psicologia, de França, que tinha uma capa vermelha. O ‘pide’, que era absolutamente ignorante, perguntava-me por que é que eu tinha comprado um livro francês de capa vermelha. Dizia que só podia ser uma coisa subversiva.»
Já com ventos de liberdade a soprarem no país, por vezes até a altas velocidades, Pedro Martins atravessa o Tejo e chega ao ISPA, o Instituto Superior de Psicologia Aplicada. Mais problemas… O rapaz que haveria de inspirar-se no discreto Marigela teimava em contrariar a discrição. «Lembro-me da primeira aula, na Rua da Emenda, frente à sede do Partido Socialista, num edifício que não tinha janelas. Passávamos muito frio e a forma de tentar enganar o frio era comermos rebuçados, uma coisa de muitas calorias. Na primeira aula, perguntava-se aos alunos o que é que eles queriam ser, porque é que iam para lá, e na época só havia duas áreas, a de clínica e a pedagógica, porque a psicologia do trabalho tinha sido extinta com o 25 de Abril; considerava-se que era defender os interesses do patronato, e como a política dominante era a do MRPP aquilo tornava-se politicamente incorrecto. Quando tive de falar, disse que queria ser psicólogo social; foi a risada geral, um anfiteatro de 400 alunos, coitado do bimbo que não percebe que não há psicologia social… Houve um professor, um homem que me marcou para o resto da vida, Lourenço Tavares, que me perguntou, ‘mas se não há, como vai?’ E eu disse, ‘Não há , mas eu vou criar...’» Daí a três anos, Pedro Martins, pela Associação de Estudantes, estava no Conselho Pedagógico do ISPA. Votando minoritariamente, fez a proposta de criação do curso de Psicologia Social. «A força dominante da comissão de gestão era no sentido contrário, mas exercemos um ‘lobby’ directo junto do ministro…» Pedro Martins acabaria por pertencer à primeira turma de futuros psicólogos sociais, porque no quarto ano é que se tinha de optar por uma das áreas.
Entretanto, já trabalhava desde os 17 anos, a meias com a militância política. Primeiro foi produtor na Rádio Renascença, depois na RTP, de onde saiu em 1980, acabado o curso, directamente para consultor. «Sou da pré-história da RTP, ainda do tempo da televisão a preto e branco. Fui produtor e depois assistente de realização... E fui professor; convidaram-me para criar uma cadeira de produção e realização televisiva, que não havia no curso de Comunicação Social da Universidade Nova de Lisboa. Dos programas que produzi o que considero ter sido mais interessante foi ‘A Memória de um Povo’ – três anos e meio a produzir, calcorreando o país em busca de elementos etnográficos e antropológicos da cultura popular portuguesa, pelas aldeias... Desde cedo que me habituei a não estar em casa, como agora acontece na minha actividade de consultor. Na época, estávamos às vezes um mês fora, por exemplo à procura de um registo de uma canção em mirandês que só um velhote sabia... Mas também havia bimbalhada como agora, outro tipo de bimbalhada, variedades, o TV Clube, coisas com a Madalena Iglésias, a Maria de Lurdes Resende e com uma que cantava a música da Robialac, não me lembro do nome dela, mas sei que era a mulher do presidente da Robialac… Bimbalhada sempre houve e sempre vai haver.»
Saído do ISPA e da RTP, Pedro Martins aterra na Cegoc. O primeiro contacto profissional com a consultoria marca-o muito. Manuel Tavares da Silva, seu professor, agora já falecido, orienta-o no estágio; é o seu primeiro patrão, o do «primeiro salário». Marca-o a ele e a toda uma geração de psicólogos sociais. Pedro Martins fica apenas um ano na consultora e depois torna-se free-lancer em consultoria. «A minha empresa chamava-se Certo Modo. Por esses anos, ser consultor era quase o mesmo que hoje ser gay ou bailarino, ou coisa assim do género; era uma ave rara que tinha um estatuto de igualdade por gentileza, mas na realidade não tinha. Os clientes tinham muita dificuldade em pedir o que queriam, diziam sempre de certo modo isto, de certo modo aquilo...» A empresa dura três ou quatro anos. A HayGroup instala-se em Portugal e convida Pedro Martins para director. Estamos em 1990. Pedro Martins aceita e fecha a sua empresa, como lhe exigem. Fica seis anos, saindo para ajudar a instalar a William Mercer em Portugal. «Fui o primeiro director da empresa em Portugal. Éramos dois, eu em Recursos Humanos e o Frederico Machado Jorge em Benefícios…» Em 1998, sai e cria de novo uma empresa própria, a PM International Consulting.
Consultoria atípica
Agora, de novo com empresa própria, a ser consultado por terras da Europa e das Américas, com um Jaguar à porta de casa e tudo, Pedro Martins já pode fazer balanços. Sobre a passagem pelas gigantes da consultoria, por exemplo… O homem da discrição, de repente, deixa-a de lado e não poupa nas palavras. Assim... «Foi nelas que aprendi a ser consultor...» Mas o que faz, já agora, um director da William Mercer? «Tem de ganhar dinheiro, ganhar, ganhar, ganhar... Em 1998, o mais baixinho ganhava 200 contos. O mais alto, que era eu, ganhava 3.200» E como se pagava tudo isto? «O negócio da consultoria, eu falo de negócio, os clientes são principalmente multinacionais… Eu aprendi nessas empresas de consultoria muito e hoje aquilo que faço é exactamente o contrário do que elas fazem. Não há faculdades de consultoria, nem de gestão de recursos humanos. Nem de gestão há. Aprende-se fazendo. Através dessas empresas tive acesso a colegas extremamente qualificados e a clientes extremamente exigentes. Foi uma oportunidade de desenvolvimento pessoal que não teria noutra circunstância. A segunda pergunta, pagar a todos, explica porque faço o oposto delas agora. Não vem mal nenhum ao mundo que a consultoria seja um negócio, seria absurdo pensar em filantropia. O negócio das grandes… Você tem uma âncora, geralmente os partners, indivíduos experientes, qualificados, com prestígio no mercado, que asseguram a confiança do cliente e as fontes principais de desenvolvimento de trabalho que é a venda de projectos, a apresentação de relatórios, a discussão de pontos críticos, de divergências que possam existir… Mas onde as grandes multinacionais ganham dinheiro não é com os partners, é com o batalhão de juniores e middle consultants que têm salários baixos e, proporcionalmente, fees elevados. Isso gera mais-valias. Qualquer negócio que hoje seja exercido por uma multinacional tem de ter essa metodologia. Depois, é muito diagnóstico, muito diagnóstico, muitas vezes supérfluos, e a conclusão que um partner tira é aquela que tem como valor agregado do trabalho de consultoria.»
E na própria empresa, o que faz o admirador do guerrilheiro Marigela?
«Em 1997, fiz um survey aos clientes do mercado internacional, a perguntar se estavam satisfeitos com a consultoria que lhes era prestada, nomeadamente pela empresa a que eu pertencia, a William Mercer. A resposta foi clara: não, porque o custo/ benefício é baixo; queremos ter o partner aqui durante três ou quatro dias e ele está durante umas horas e não obstante temos de pagar a uma equipa de juniores que na prática agrega muito pouco valor; gostávamos de ter cá o partner três semanas e até pagaríamos o mesmo que pagamos para ter os juniores três meses. Então, criei a minha empresa, que tenta responder a este perfil. Não temos o conceito do senior com uma bateria de juniores, temos o conceito de uma bateria de seniores. Temos trabalhado basicamente em Portugal, Espanha, França, Alemanha, Argentina, Brasil, Peru… Com grandes empresas... EDP, Somague, Parque Expo, TMN, Grupo Luís Simões, isto por cá; lá fora, por exemplo no Brasil, a Bandeirante Energia, a Excelsior, a Volkswagen… Basicamente, o que fazemos é a redefinição de políticas e procedimentos de gestão de recursos humanos para aumentar a performance da empresa.»
É por tudo isto que o antigo produtor da RTP que calcorreava Portugal em busca da memória do povo calcorreia agora o mundo quase todo. «Procuro trazer sempre uma recordação que não seja aquela recordação turística, uma obra de arte, um artesanato mais antropológico…» E o que levaria de Portugal, se não fosse português? «O que caracteriza a nossa cultura é a morbidez, este faducho, este lamento, pobrezinhos mas honrados... Se fosse um consultor estrangeiro que viesse cá, levaria, de certeza, um xaile preto.»
»»» CAIXA
Por que é que se contam anedotas de consultores?
Pedro Martins… «É uma questão engraçada. Também contamos anedotas de alentejanos, de negros... Acho que só se faz humor com aquilo de que se gosta. O humor em si, em termos psicológicos, é um sinal de reconhecimento. Aquilo de que não gostamos, ignoramos. Há muitas razões para que se faça anedotas de consultores. Em primeiro lugar, eles são diferentes; não têm um emprego como os empregados, digamos assim, normais. Depois, são pessoas que se expõem muito, o que leva a que haja ridicularização. E há mais razões, já de natureza bastante negativa… Hoje em dia, consultor deixou de ser uma profissão para ser uma ausência de profissão. Quando comecei éramos 32 em Portugal, sabíamos os números de telefone uns dos outros… Agora são milhares, não há nenhum desempregado de colarinho branco que diga que está desempregado, diz que é consultor; o cliente, se não tiver um juízo crítico forte na contratação, arrisca-se a contratar um desempregado que leu um livro ou dois, que fez uns cursos, viu uns slides… Isto dá anedotas, mais do que anedotas, autênticos dramas.»
E os consultores que contam anedotas dos consultores da Mckinsey?
Pedro Martins… «Na apresentação do meu livro de crónicas do «Semanário Económico», fiz uma dedicação à Mckinsey, por ter sido a organização que mais contribuiu para o meu sucesso profissional. Os seus consultores criam tantos problemas que depois alguém tem de resolvê-los. Estou profundamente agradecido à McKinsey, assim como à Roland Berger, à BCG, às chamadas big five… Eles que não pensem que eu tenho uma imagem negativa deles; pelo contrário, o meu negócio depende muito da ineficácia deles, com a sua standartização de serviços. Há áreas em que até são bons, mas não lhes reconheço grandes capacidades na área de desenvolvimento organizacional e gestão de recursos humanos. Faz parte do negócio deles gerir carteiras de clientes, e estando num cliente que lhes pode agregar um pelouro, que pode ser uma auditoria, uma análise estratégica, etc, eles pegam nesse relacionamento para venderem outro tipo de serviço para o qual não têm especialização. Muitas vezes, acabam por enegrecer, por enxovalhar o outro serviço, o que tinham prestado bem. Naturalmente, criam um problema que alguém depois tem de ir resolver.»
Se fosse preciso matar o presidente da FIAT, Pedro Martins não ia de calças de ganga, nem de sandálias, nem com a barba por fazer. Ia de fatinho italiano, para conseguir passar a porta de algum hotel onde o homem se hospedasse. Também teria garrafa no mesmo bar que ele; supondo até que faria aí o serviço, quando a Polícia aparecesse o mais certo era prender um dos empregados, e Pedro Martins, sempre de fatinho italiano, nem estranharia se ouvisse um pedido de desculpas pelo transtorno.
Pedro Martins tem 48 anos [texto de 2003] e é consultor. Gosta de ser discreto, embora a falar não pareça muito. Mas já lá vamos... Primeiro a discrição, principalmente a que diz usar nas empresas, para não ser logo abatido. «Quando se trata de intervenção na área organizacional, nomeadamente a consultoria, um dos meus livros de referência é o ‘Manual do Guerrilheiro Urbano’, que recomendo com frequência quando dou aulas, seja em Portugal, seja no estrangeiro.» O autor não é nenhum tom-peters norte-americano, é Carlos Marighella, brasileiro, guerrilheiro urbano, terrorista durante a ditadura militar. «Assaltava bancos, matava políticos... Escreveu um manual para ensinar os seus pares a fazer intervenção social. Um dos ensinamentos que tirei vem num dos capítulos, a que ele chama ‘Camuflagem’, que diz praticamente isto: para matar o presidente da FIAT, não posso aparecer de calças de ganga, sandálias e barba por fazer; ando de fatinho italiano para poder entrar no hotel dele, tenho garrafa no mesmo bar que ele... Para se fazer intervenção organizacional, a primeira condição é a discrição. E isso é um dos muitos erros estratégicos dos chamados processos de mudança organizacional, que não passam de processos panfletários que as pessoas anunciam muito, fazendo T-shirts, indo correr, fazendo um jornal... E depois têm de chorar, fazem muito ‘oba oba’, para usar uma expressão brasileira, mas quando se espreme não há substância. Eu perfilho do que o Carlos Marigela diz, gosto da discrição. O consultor não se pode anunciar dentro da empresa como o líder da mudança. Automaticamente está abatido. Os bons processos de mudança são aqueles de que não se fala. Muita gente que faz processos de mudança por cá, se lesse o Carlos Marighella percebia.»
O guerrilheiro quando jovem
Mas como chegou Pedro Martins até aqui, para poder dizer estas coisas? Talvez o melhor seja começar pelo princípio, pelo dia primeiro de Maio de 1955. Pedro Martins nasce em Almada, filho de um sargento do exército e de mãe doméstica. Tudo corria dentro da normalidade anormal do Estado Novo até que, já no final da década de 1960, com 13 anos, o jovem Pedro é expulso do liceu. «É uma história interessante ouvida nos dias de hoje. O meu pai dava-me sempre um presente quando eu passava de ano. Era tradição. No segundo ano do liceu – na altura ainda não havia ciclo –, o prémio que pedi foi ter explicações de inglês, porque as revistas de pop e jazz eram todas em inglês e eu achava piada a conseguir compreender as letras das canções. Então, durante as férias, fui aprender inglês. Quando chegou o terceiro ano e se começava a aprender inglês no liceu, eu já sabia alguma coisa. Isso chocou muito a professora, que preferia que eu fosse virgem na matéria. Ela, de alguma forma, exerceu represálias por eu ter aprendido durante as férias. Obrigava-me a ir todos os dias fazer os trabalhos ao quadro, sempre na expectativa de me apanhar em falta. Eu revoltei-me muito contra isso, era uma criança... Um dia disse-lhe: ‘Olhe, vá à merda, porque eu sei inglês!’ Foi o suficiente para eu ser expulso. E quando se era expulso do liceu, naquela época, só se podia entrar no ciclo seguinte, de forma que tive de fazer o resto do terceiro ano, assim como o quarto e o quinto, num colégio particular. Só depois regressei ao liceu.»
Ia-se compondo assim o retrato do guerrilheiro quando jovem. Pedro e o Estado Novo… «Era o obscurantismo, parecia que não nascia o Sol, que a PIDE impedia. Acima de tudo, era um tempo ridículo. Nem guardo imagem de opressão, guardo do ridículo. Dois ou três exemplos.... Eu bem cedo tornei-me activista político, ligado ao Partido Socialista na clandestinidade. Saí já depois do 25 de Abril, em 1977… Mas ainda durante a ditadura havia uma coisa chamada Sociedade de Estudos e Documentação, um organismo que ficava na Avenida Duque d’Ávila que era praticamente o organismo do Partido Socialista na clandestinidade. Era muito curioso... Havia aspectos folclóricos, por isso digo que era um tempo ridículo. Havia colóquios e só dois jornais iam fotografar. O ‘República’, da oposição, que fotografava a mesa, e ‘A Época’, da PIDE, ou antes, controlado, que fotografava a assembleia... E era preciso ter licença de isqueiro, como se fosse uma arma, ter um atestado de boa conduta, tirado nas juntas de freguesia. Havia polícias à paisana… Se andasse sem licença, podia ir preso por posse de arma incendiária. Eu, por exemplo, fui chamado à PIDE porque encomendei um livro de Psicologia, de França, que tinha uma capa vermelha. O ‘pide’, que era absolutamente ignorante, perguntava-me por que é que eu tinha comprado um livro francês de capa vermelha. Dizia que só podia ser uma coisa subversiva.»
Já com ventos de liberdade a soprarem no país, por vezes até a altas velocidades, Pedro Martins atravessa o Tejo e chega ao ISPA, o Instituto Superior de Psicologia Aplicada. Mais problemas… O rapaz que haveria de inspirar-se no discreto Marigela teimava em contrariar a discrição. «Lembro-me da primeira aula, na Rua da Emenda, frente à sede do Partido Socialista, num edifício que não tinha janelas. Passávamos muito frio e a forma de tentar enganar o frio era comermos rebuçados, uma coisa de muitas calorias. Na primeira aula, perguntava-se aos alunos o que é que eles queriam ser, porque é que iam para lá, e na época só havia duas áreas, a de clínica e a pedagógica, porque a psicologia do trabalho tinha sido extinta com o 25 de Abril; considerava-se que era defender os interesses do patronato, e como a política dominante era a do MRPP aquilo tornava-se politicamente incorrecto. Quando tive de falar, disse que queria ser psicólogo social; foi a risada geral, um anfiteatro de 400 alunos, coitado do bimbo que não percebe que não há psicologia social… Houve um professor, um homem que me marcou para o resto da vida, Lourenço Tavares, que me perguntou, ‘mas se não há, como vai?’ E eu disse, ‘Não há , mas eu vou criar...’» Daí a três anos, Pedro Martins, pela Associação de Estudantes, estava no Conselho Pedagógico do ISPA. Votando minoritariamente, fez a proposta de criação do curso de Psicologia Social. «A força dominante da comissão de gestão era no sentido contrário, mas exercemos um ‘lobby’ directo junto do ministro…» Pedro Martins acabaria por pertencer à primeira turma de futuros psicólogos sociais, porque no quarto ano é que se tinha de optar por uma das áreas.
Entretanto, já trabalhava desde os 17 anos, a meias com a militância política. Primeiro foi produtor na Rádio Renascença, depois na RTP, de onde saiu em 1980, acabado o curso, directamente para consultor. «Sou da pré-história da RTP, ainda do tempo da televisão a preto e branco. Fui produtor e depois assistente de realização... E fui professor; convidaram-me para criar uma cadeira de produção e realização televisiva, que não havia no curso de Comunicação Social da Universidade Nova de Lisboa. Dos programas que produzi o que considero ter sido mais interessante foi ‘A Memória de um Povo’ – três anos e meio a produzir, calcorreando o país em busca de elementos etnográficos e antropológicos da cultura popular portuguesa, pelas aldeias... Desde cedo que me habituei a não estar em casa, como agora acontece na minha actividade de consultor. Na época, estávamos às vezes um mês fora, por exemplo à procura de um registo de uma canção em mirandês que só um velhote sabia... Mas também havia bimbalhada como agora, outro tipo de bimbalhada, variedades, o TV Clube, coisas com a Madalena Iglésias, a Maria de Lurdes Resende e com uma que cantava a música da Robialac, não me lembro do nome dela, mas sei que era a mulher do presidente da Robialac… Bimbalhada sempre houve e sempre vai haver.»
Saído do ISPA e da RTP, Pedro Martins aterra na Cegoc. O primeiro contacto profissional com a consultoria marca-o muito. Manuel Tavares da Silva, seu professor, agora já falecido, orienta-o no estágio; é o seu primeiro patrão, o do «primeiro salário». Marca-o a ele e a toda uma geração de psicólogos sociais. Pedro Martins fica apenas um ano na consultora e depois torna-se free-lancer em consultoria. «A minha empresa chamava-se Certo Modo. Por esses anos, ser consultor era quase o mesmo que hoje ser gay ou bailarino, ou coisa assim do género; era uma ave rara que tinha um estatuto de igualdade por gentileza, mas na realidade não tinha. Os clientes tinham muita dificuldade em pedir o que queriam, diziam sempre de certo modo isto, de certo modo aquilo...» A empresa dura três ou quatro anos. A HayGroup instala-se em Portugal e convida Pedro Martins para director. Estamos em 1990. Pedro Martins aceita e fecha a sua empresa, como lhe exigem. Fica seis anos, saindo para ajudar a instalar a William Mercer em Portugal. «Fui o primeiro director da empresa em Portugal. Éramos dois, eu em Recursos Humanos e o Frederico Machado Jorge em Benefícios…» Em 1998, sai e cria de novo uma empresa própria, a PM International Consulting.
Consultoria atípica
Agora, de novo com empresa própria, a ser consultado por terras da Europa e das Américas, com um Jaguar à porta de casa e tudo, Pedro Martins já pode fazer balanços. Sobre a passagem pelas gigantes da consultoria, por exemplo… O homem da discrição, de repente, deixa-a de lado e não poupa nas palavras. Assim... «Foi nelas que aprendi a ser consultor...» Mas o que faz, já agora, um director da William Mercer? «Tem de ganhar dinheiro, ganhar, ganhar, ganhar... Em 1998, o mais baixinho ganhava 200 contos. O mais alto, que era eu, ganhava 3.200» E como se pagava tudo isto? «O negócio da consultoria, eu falo de negócio, os clientes são principalmente multinacionais… Eu aprendi nessas empresas de consultoria muito e hoje aquilo que faço é exactamente o contrário do que elas fazem. Não há faculdades de consultoria, nem de gestão de recursos humanos. Nem de gestão há. Aprende-se fazendo. Através dessas empresas tive acesso a colegas extremamente qualificados e a clientes extremamente exigentes. Foi uma oportunidade de desenvolvimento pessoal que não teria noutra circunstância. A segunda pergunta, pagar a todos, explica porque faço o oposto delas agora. Não vem mal nenhum ao mundo que a consultoria seja um negócio, seria absurdo pensar em filantropia. O negócio das grandes… Você tem uma âncora, geralmente os partners, indivíduos experientes, qualificados, com prestígio no mercado, que asseguram a confiança do cliente e as fontes principais de desenvolvimento de trabalho que é a venda de projectos, a apresentação de relatórios, a discussão de pontos críticos, de divergências que possam existir… Mas onde as grandes multinacionais ganham dinheiro não é com os partners, é com o batalhão de juniores e middle consultants que têm salários baixos e, proporcionalmente, fees elevados. Isso gera mais-valias. Qualquer negócio que hoje seja exercido por uma multinacional tem de ter essa metodologia. Depois, é muito diagnóstico, muito diagnóstico, muitas vezes supérfluos, e a conclusão que um partner tira é aquela que tem como valor agregado do trabalho de consultoria.»
E na própria empresa, o que faz o admirador do guerrilheiro Marigela?
«Em 1997, fiz um survey aos clientes do mercado internacional, a perguntar se estavam satisfeitos com a consultoria que lhes era prestada, nomeadamente pela empresa a que eu pertencia, a William Mercer. A resposta foi clara: não, porque o custo/ benefício é baixo; queremos ter o partner aqui durante três ou quatro dias e ele está durante umas horas e não obstante temos de pagar a uma equipa de juniores que na prática agrega muito pouco valor; gostávamos de ter cá o partner três semanas e até pagaríamos o mesmo que pagamos para ter os juniores três meses. Então, criei a minha empresa, que tenta responder a este perfil. Não temos o conceito do senior com uma bateria de juniores, temos o conceito de uma bateria de seniores. Temos trabalhado basicamente em Portugal, Espanha, França, Alemanha, Argentina, Brasil, Peru… Com grandes empresas... EDP, Somague, Parque Expo, TMN, Grupo Luís Simões, isto por cá; lá fora, por exemplo no Brasil, a Bandeirante Energia, a Excelsior, a Volkswagen… Basicamente, o que fazemos é a redefinição de políticas e procedimentos de gestão de recursos humanos para aumentar a performance da empresa.»
É por tudo isto que o antigo produtor da RTP que calcorreava Portugal em busca da memória do povo calcorreia agora o mundo quase todo. «Procuro trazer sempre uma recordação que não seja aquela recordação turística, uma obra de arte, um artesanato mais antropológico…» E o que levaria de Portugal, se não fosse português? «O que caracteriza a nossa cultura é a morbidez, este faducho, este lamento, pobrezinhos mas honrados... Se fosse um consultor estrangeiro que viesse cá, levaria, de certeza, um xaile preto.»
»»» CAIXA
Por que é que se contam anedotas de consultores?
Pedro Martins… «É uma questão engraçada. Também contamos anedotas de alentejanos, de negros... Acho que só se faz humor com aquilo de que se gosta. O humor em si, em termos psicológicos, é um sinal de reconhecimento. Aquilo de que não gostamos, ignoramos. Há muitas razões para que se faça anedotas de consultores. Em primeiro lugar, eles são diferentes; não têm um emprego como os empregados, digamos assim, normais. Depois, são pessoas que se expõem muito, o que leva a que haja ridicularização. E há mais razões, já de natureza bastante negativa… Hoje em dia, consultor deixou de ser uma profissão para ser uma ausência de profissão. Quando comecei éramos 32 em Portugal, sabíamos os números de telefone uns dos outros… Agora são milhares, não há nenhum desempregado de colarinho branco que diga que está desempregado, diz que é consultor; o cliente, se não tiver um juízo crítico forte na contratação, arrisca-se a contratar um desempregado que leu um livro ou dois, que fez uns cursos, viu uns slides… Isto dá anedotas, mais do que anedotas, autênticos dramas.»
E os consultores que contam anedotas dos consultores da Mckinsey?
Pedro Martins… «Na apresentação do meu livro de crónicas do «Semanário Económico», fiz uma dedicação à Mckinsey, por ter sido a organização que mais contribuiu para o meu sucesso profissional. Os seus consultores criam tantos problemas que depois alguém tem de resolvê-los. Estou profundamente agradecido à McKinsey, assim como à Roland Berger, à BCG, às chamadas big five… Eles que não pensem que eu tenho uma imagem negativa deles; pelo contrário, o meu negócio depende muito da ineficácia deles, com a sua standartização de serviços. Há áreas em que até são bons, mas não lhes reconheço grandes capacidades na área de desenvolvimento organizacional e gestão de recursos humanos. Faz parte do negócio deles gerir carteiras de clientes, e estando num cliente que lhes pode agregar um pelouro, que pode ser uma auditoria, uma análise estratégica, etc, eles pegam nesse relacionamento para venderem outro tipo de serviço para o qual não têm especialização. Muitas vezes, acabam por enegrecer, por enxovalhar o outro serviço, o que tinham prestado bem. Naturalmente, criam um problema que alguém depois tem de ir resolver.»
Sem comentários:
Enviar um comentário