domingo, 30 de dezembro de 2007

Ética empresarial

É de finais de 2006 (rev. «Pessoal»). Um trabalho sobre um tema da moda nos últimos anos, ética empresarial. Não devia ser da moda, devia ser banal, mas pronto, é da moda e até se tornou uma espécie de negócio. Texto a seguir...

Do que é que se fala…

Do que é que se fala, afinal, quando se fala de ética empresarial? A pergunta pode colocar-se, adaptada de uma célebre lembrança de um escritor – também ele célebre – para título de uma das suas obras. Sim, do que é que se fala, ou do que é que nos falam quando o tema é a ética aplicada ao mundo das empresas?

Fala-se, é claro, de muitas coisas, e nem sempre essas mesmas coisas são convergentes. O que não é necessariamente mau, nem pelo contrário constitui um motivo para regozijo. Quando o tema é a ética empresarial, há simplesmente muito para dizer, tanto que do que ouvimos nem a décima parte se consegue aqui reproduzir. Questões de espaço, mais nada; são elas sempre as que mais força têm. Mas adiante… Comecemos com Guillermo Barrera, um especialista em novas tecnologias a viver nos Estados Unidos, depois de uma passagem por várias empresas em Portugal; é ele que refere alguns aspectos que neste âmbito considera deverem ser tidos em conta em qualquer empresa ou organização: «a existência, escrita e de domínio público, do código de valores em que a organização acredita e que defende; também a existência, em manuais de procedimentos, de orientações aos empregados, sobre como agir quando algo pareça ter aspectos questionáveis; a abertura para um empregado poder consultar o seu superior para esclarecer dúvidas quanto a aspectos éticos de algum acto que pretenda praticar». Este argentino que fala um português com sotaque do Brasil assinala, no entanto, que «a pressão excessiva para obter resultados pode induzir os colaboradores de uma organização a praticar actos que de outra forma não praticariam, se pudessem exercer livremente o seu julgamento e o bom senso», e também que «a ética empresarial apenas tem significado quando julgada à luz dos valores que a empresa em causa defende». Na sua opinião, «as empresas devem clarificar aos stakeholders – ou seja, a empregados, clientes e parceiros – qual o seu código de valores», e fala da sua própria experiência… «Fui trabalhar para a Sonae em 1989, e isso teve em grande parte a ver com o facto de eles publicarem no seu relatório anual os valores do chamado Homem Sonae. Como eu estava acostumado a isso na experiência anterior, fiquei muito bem impressionado, por ver que havia essa preocupação e que os valores estavam alinhados com os meus próprios códigos de valores pessoais. Esse alinhamento é fundamental para assegurar que as empresas e os seus colaboradores vão remar na mesma direcção.»
Maria Márcia Trigo, professora universitária na Escola de Gestão & Negócios (EG&N) da Universidade Autónoma de Lisboa, onde é responsável por dois dos MBAs executivos (um de liderança e gestão de negócios e outro de gestão de recursos humanos), prefere destacar um «aspecto crítico e fundamental», algo que funciona como «variável independente que influencia tudo o resto». Trata-se do «carácter moral do líder» da empresa, e também «a visão e a sua articulação com a acção estratégica e operacional». E concretiza, socorrendo-se de um trabalho do professor da Harvard Business School John P. Kotter, de 1996… «Destes princípios decorre o que designamos por líderes autênticos e confiáveis, em contraposição com os líderes impostores ou desonestos, ou pseudo-líderes, ou mesmo líderes-serpentes, os quais são fonte de desconfiança, tanto interna como externa, influenciando negativamente o clima organizacional da empresa – e por essa via minando a própria produtividade –, bem como a credibilidade externa». Tudo tem reflexos em termos de «competitividade e sobrevivência». Ainda segundo Maria Márcia Trigo, e no caso específico de uma empresa cotada em bolsa, «há quatro princípios orientadores do relacionamento ético entre accionistas, administração de topo, direcção executiva, conselho consultivo ou não executivo, trabalhadores, clientes e fornecedores – transparência, equidade, prestação de contas e cumprimento das leis». Só que muitas vezes o chamado governo da empresa, também denominado corporate governance, acaba por não ser ético «e a empresa multiplica-se em acções de suposta responsabilidade social, como o apoio a fundações e associações sem fins lucrativos, museus e outras actividades culturais e científicas, ajuda social continuada ou esporádica, mecenato do mais diverso, entre outras».
Já Maria Duarte Bello, consultora de imagem e também com actividade de personal and business coach, refere que «as empresas exercem a sua actividade no seio da comunidade, sendo indispensável a implementação de práticas de acordo com a legislação, só que essa obediência não assegura uma conduta ética». Maria Duarte Bello, que participa na Comissão Técnica de Responsabilidade Social (que está a elaborar a norma portuguesa da responsabilidade social), no Conselho Superior de Ética e Responsabilidade Social e ainda na Comissão Permanente de Qualificação de Práticas de Ética Empresarial e Responsabilidade Social, assinala ainda que «os responsáveis das empresas enfrentam com regularidade situações problemáticas do ponto de vista ético, situações que se agravam quando surgem dificuldades económico-financeiras ou períodos de crise». Por isso, «outro aspecto essencial é o da formação íntegra do gestor, que pode caracterizar-se por uma gestão regida por princípios éticos e que vai mais além ao dar o exemplo aos colaboradores». Contudo, «nunca perdendo de vista a vantagem competitiva, o gestor deve optar pela estratégia que consiga ser ao mesmo tempo economicamente viável e moralmente isenta de reparos; ao respeitar a ética empresarial, pode conciliar os seus princípios éticos com decisões economicamente vantajosas, ao mesmo tempo que cria uma imagem positiva da sua empresa e melhora os padrões de conduta dos colaboradores».

Moda, globalização, tecnologia e Portugal
De qualquer forma, independentemente daquilo de que se esteja a falar quando se fala de ética empresarial, é indiscutível que o tema nos últimos anos tem vindo a marcar presença no mundo das empresas, chegando até a sugerir-se que se trata de uma moda, a par de outros, como por exemplo o da responsabilidade social. Amândio da Fonseca, administrador executivo do Grupo Egor, encara tudo isto como sendo «resultado do processo de humanização das organizações e do reconhecimento da importância das pessoas nos resultados dos negócios». Na sua opinião, «a ética tornou-se uma consequência natural dos novos paradigmas da gestão», sendo que «nalguns casos estaremos perante uma buzzword com importante potencial de valorização da imagem e à qual o marketing não podia ficar indiferente, e noutros insere-se num genuíno esforço de melhoria, quer a nível individual, quer organizacional, correspondendo a uma reacção cultural em relação a factores como a corrupção ou a desumanização do trabalho». Já Maria Duarte Bello assinala que «os fenómenos da globalização e da internacionalização das empresas levam ao maior conhecimento das problemáticas empresariais, juntando-se a isso uma maior exigência de clientes, colaboradores e cidadãos em geral». Ideia que é complementada por Guillermo Barrera, quando aborda a questão das «diferenças culturais». Para ele, «se o conceito de ética empresarial tem a ver com os valores que a organização segue, estes estão também inseridos num contexto mais abrangente que são os valores da sociedade em que a organização está a actuar, inclusive com algumas facetas da religião». Por exemplo, «nas culturas orientais é perfeitamente aceitável e prática comum que um comprador ganhe comissões em compras que faz para a sua empresa, porque esta não tem instrumentos de bónus para a produtividade, mas nas sociedades ocidentais, mais mecanizadas, acredita-se que o empregado não deve receber comissões dos fornecedores, por ser pago para negociar as melhores condições possíveis para sua empresa, tendo a sua recompensa na forma de bónus ou prémios de acordo com seu desempenho». Ora, «com o advento da globalização dos mercados o problema passa a ser que as práticas conflituam consoante os valores dos mercados de origem da organização e os valores daqueles mercados em que ela actua».
Para Helena Campos, uma docente universitária e investigadora que prepara um doutoramento ligado à construção de um modelo de códigos de ética para profissionais de sistemas de informação, «a consciência da importância destes temas tem vindo a crescer nos últimos anos, sobretudo como consequência de problemas financeiros ou ambientais provocados por decisões éticas, de escândalos observados em grandes organizações internacionais, do rápido desenvolvimento tecnológico a nível global – a generalização do acesso à Internet e às tecnologias de informação –, implicando a ampla apropriação social e económica destas tecnologias, a sua difusão nos sectores de actividade e a promoção da sua correcta utilização, tão crucial na esfera social como no sector empresarial». Helena Campos fala de esta prática ser já comum em muitos países da Europa e nos Estados Unidos… «O interesse pelo assunto, após estar há mais de 30 anos em evidência nos Estados Unidos, não está a diminuir, ou seja, não se trata de um modismo mas realmente de um interesse generalizado, e que ao que tudo indica veio para ficar.» Na mesma linha, Guillermo Barrera recorda tempos em que trabalhava na empresa Digital Equipment, concretamente o ano de 1980… «Nessa altura, surgiu a primeira discussão de ética empresarial nos Estados Unidos, e as grandes empresas começaram a publicar os seus códigos de ética. Isso teve a ver com algum escândalo da época, penso que com o problema de pagarem luvas para ganharem concursos noutros países. Foram casos que envolveram empresas de aviões e tecnologia que despoletaram a discussão. Agora, com os escândalos da Enron e, mais recentemente, da HP, voltou a discussão.»
E num tempo e que «voltou a discussão», como se vão comportando as empresas portuguesas?
Maria Duarte Bello, que defende existirem «bons exemplos», contudo «pouco representativos», distingue mesmo assim «grandes empresas que desenvolvem boas práticas empresariais e que seguem filosofias e modelos já instituídos», e também «médias e pequenas empresas nas quais a proximidade é fundamental, sendo as políticas e as práticas empresariais implementadas com respeito por todos os colaboradores com maior facilidade». Já Guillermo Barrera faz notar que Portugal «é um país com uma cultura generalizada de não fazer ou de enfatizar manuais de procedimentos» e que isso leva a que «aconteçam muitos casos de agentes das organizações com comportamentos cuja ética pode ser questionada». Isto porque «a falta de um blueprint que defina a personalidade da organização, como o caso referido dos valores do Homem Sonae, pode autorizar comportamentos que, de outra forma, seriam imediatamente reconhecidos pelo próprio agente como não éticos para a sua organização». Mas nem tudo parece perdido na óptica de Guillermo Barrera, porque, por outro lado, «a cultura do país defende valores de integridade e lealdade, e isso leva a que os indivíduos exerçam seu próprio julgamento usando os valores pessoais, na falta de valores organizacionais definidos». Assim, acredita que «a generalidade das empresas em Portugal tem um comportamento ético de boa qualidade, fruto da boa formação pessoal dos seus colaboradores». Helena Campos fala em termos de gerais de um panorama desolador, mas não esquece que «já existem esforços por parte de algumas empresas de vários sectores, casos da Microsoft, da Delta e da IBM, que se uniram em prol de boas práticas empresariais, pautadas por princípios éticos e de responsabilidade social corporativa, demonstrando uma nova forma de administração». Ou seja, «existe um longo caminho a percorrer em termos da definição e da execução de comportamentos éticos e de acções de responsabilidade social corporativa em Portugal, devendo haver a preocupação de comunicar as acções desenvolvidas ao nível da responsabilidade social, para que os cidadãos tenham conhecimento do que a empresa faz a este nível, através de estratégias de comunicação, com relatórios sociais, acções de relações públicas, programas televisivos para abrir espaço de discussão, entre outras iniciativas».
Para Amândio da Fonseca, «as lacunas éticas de qualquer sociedade – de onde emanam as empresas – resultam em primeiro lugar de um défice cultural de cidadania». Assim, e no caso português, «o ambiente cívico permissivo, a ineficácia da justiça, o sentimento de impunidade dos poderosos ou as desigualdades sociais não constituem o clima mais propício para que a ética floresça, sendo que a recente ênfase colocada – ao mais alto nível – nos problemas da corrupção reflecte não apenas uma reacção de repúdio da sociedade mas também a manifestação de um sentimento colectivo de rejeição». Mais pessimista, e até um pouco em desacordo em termos de tendência, está Maria Márcia Trigo, para quem apesar de tudo «muitas empresas serão certamente exemplares». O problema – diz – é que «os empresários e os líderes de cá são influenciados por características muito portuguesas e muito valorizadas pelos portugueses». Características que rapidamente enumera: «o espírito do desenrasca, em que vale tudo para cumprir os objectivos e o tempo desperdiçado, com destaque para autênticas instituições como a cunha e o padrinho; a prática ‘louvável’ da fuga ao fisco e à lei, vista como esperteza; o princípio de que ‘o fins justificam os meios’ muito comum nas empresas mas também na Administração Pública, tanto central, como regional e autárquica; a prática de uso e abuso do poder em proveito próprio, visto como virtude, porque ‘quem rouba a ladrão tem 100 anos de perdão’ e além disso o Estado não é considerado pessoa de bem pela maioria dos cidadãos; a ausência de uma cultura de avaliação e de prestação de contas». De qualquer forma, Amândio da Fonseca, acentua a ideia de que «o contexto é de mudança», pelo que «as empresas portuguesas terão que passar a atribuir à ética uma importância que actualmente não lhe é reconhecida».

CAIXA
Públicos problemas
Para Maria Márcia Trigo, «a chamada ‘coisa pública’ tem sido deusificada ao longo dos tempos, como sendo, independentemente de qualquer avaliação, uma coisa boa». «Empresas públicas, serviços públicos, escola pública, segurança pública, justiça, administração local, etc, tudo esteve por longos anos afastado do escrutínio público dos cidadãos, tendo acabado por criar uma cultura de relativismo acrítico em relação à Administração Pública em geral. Daqui decorre também que sendo a actividade pública uma coisa boa, então ‘não precisa de justificar a sua existência, divulgar os resultados, prestar contas, ser transparente’, etc. Ela situa-se ‘acima do bem e do mal’. Bastará analisar o discurso dos defensores acríticos do serviço público, independentemente da qualidade do serviço prestado e dos recursos que consome. O centralismo, a burocracia, a complexidade da legislação e a incultura da maioria da população – em 4,9 milhões de activos, cerca de dois terços das pessoas têm menos do que o nono ano de escolaridade – fazem o resto, reforçando uma cultura de impunidade, de tráfico de influências, da má gestão do tempo e de outros recursos escassos.» Em síntese: «os políticos, a todos os níveis, incluindo a administração local, absorvem e consomem todo esse discurso ético até à exaustão, apesar de muitos deles serem parte do problema e não da solução; as instituições públicas são pouco autónomas e muito regulamentadas, por isso preferem adoptar um discurso de rigorosos cumpridores da lei, passando para as más leis e respectiva complexidade, para os maus decisores políticos e para as más políticas todo e qualquer desvio – quando se trata de instituições com autonomia, como institutos públicos ou empresas públicas, a teia da legislação e o stop and go das decisões políticas justificam tudo; ou seja, idealizámos a Administração Pública e a sua finalidade, sem cuidarmos de perceber que, também e sobretudo aí, é na acção e pela acção que nos identificamos, nos definimos, nos valorizamos e justificamos a nossa existência.»

sábado, 29 de dezembro de 2007

Mediterrâneo RH (12)

De novo o projecto «Ágora RH» (explicação do projecto no post 1 sobre este tema); a entrevista com a representante de um país do meio do Mediterrâneo, Malta.

Maria Pia Chircop (Malta)
«Não se pode comparar competências para gerir empresas e para gerir países.»

Maria Pia Chircop está ligada à Fundação para o Desenvolvimento de Recursos Humanos (FHRD), de Malta, na qual é chief executive officer (CEO). Desempenha estas funções há cerca de dois anos, depois de ter trabalhado em várias empresas, em áreas tão diversas como finanças, gestão geral e recursos humanos (aqui durante mais tempo); trabalhou em Malta e em Itália.
Qual é a sua opinião sobre a gestão das pessoas nas organizações em Malta?
É algo cada vez mais desafiante, por causa da legislação da União Europeia. Os empregados têm muitos direitos em Malta e isso dificulta muito a vida dos empregadores, para competirem no mercado. Os sindicatos são muito fortes. A nossa economia não está brilhante de momento, e muitas empresas estão a fechar, outras estão a reestruturar-se, de forma que tudo isto representa um ambiente de desafio para os gestores de recursos humanos, com downsizings, reestruturações, enfim, com medidas que visam salvar as empresas.
Qual a importância das pessoas que trabalham na gestão de recursos humanos? Ou melhor, como são vistas de uma maneira geral?
Depende. Nas empresas internacionais são muito consideradas. Temos um bom número de empresas estrangeiras, norte-americanas e da Europa do norte. Mas noutras empresas já não é bem assim. Então as do sector público – e esse sector é o empregador número um em Malta, com cerca de 35.000 pessoas – tudo é bem diferente; quando se desenha políticas de recursos humanos, por exemplo, é impossível pensar como se se estivesse no sector privado, e muito menos como se se estivesse em multinacionais.
E o «Projecto Ágora RH»? A sua associação – ou deverei dizer fundação – está como observadora e quer integrar-se de facto…
Considero este projecto muito positivo. Ele revela experiências, empresas, pessoas, boas práticas, os cenários do emprego em diferentes países. Só pode mesmo ser enriquecedor para todos os participantes, sobretudo pela troca de conhecimentos. Creio que Malta irá participar.
Bom, Malta está no centro do Mar Mediterrâneo…
Sim, isso é verdade.
Curiosamente ouvi alguns dos participantes franceses falarem como se fossem o centro de tudo?
Mas é Malta que fica no Centro do Mar Mediterrâneo. Enfim, se eles acreditam que são o centro de tudo, se se sentem bem assim… E já viu que neste colóquio é tudo em francês… O maltês é uma língua aceite na União Europeia. Se calhar eu devia exigir tradução de todas as comunicações para maltês.
Que tipo de idioma é o maltês?
É uma língua que mistura palavras. Vivemos sob o domínio britânico…
Fala-se muito o inglês na ilha…
Sim, mas também falamos maltês. Depende… As crianças nas escolas falam inglês, as pessoas mais velhas falam maltês.
No espaço do Mediterrâneo há problemas políticos. Como podem influenciar o futuro da Europa e de África, sobretudo do norte de África?
Se olharmos uns para os outros sem pensar em política, se olharmos tal como somos, como países, de uma maneira positiva, penso que poderemos trabalhar em conjunto, aceitando a diversidade.
É a parte fácil?
Sim, em relação aos problemas políticos não podemos ser nós a fazer as coisas. Veja os muçulmanos… Não sei que diferença há entre eles e os cristãos, ou os protestantes. No trabalho somos todos iguais, temos que fazer o nosso trabalho e pronto. Há regras em cada trabalho… Claro que se uma pessoa mudar de pais terá de se adaptar.
Acha que há mais inteligência no mundo das empresas do que no mundo da politica?
Não, não creio. A verdade é que não se pode comparar competências para gerir empresas e competências para gerir países.

terça-feira, 11 de dezembro de 2007

Edição de Dezembro

Número 64 da revista «Pessoal» – edição de Dezembro. Uma edição especial, sobre o mundo português dos recursos humanos em 2007. A seguir, o meu editorial.
(clicar na imagem para aumentar)

Uma edição especial
Esta é uma edição especial. O que nos propusemos fazer foi um balanço do ano de 2007 sobre o mundo português da gestão das pessoas. Com muitos dos seus próprios protagonistas, concretamente responsáveis de empresas da área. São 31 contributos, com perspectivas de abordagem bastante diversificadas, a partir dos quais se pode ficar a perceber o que tem sido o ano que agora termina em termos de gestão das pessoas nas organizações.
O desafio podia colocar alguns problemas. Como escreve Jorge Horta Alves, responsável da SHL Portugal… «Sejamos sinceros. A tarefa de opinar sobre a gestão das pessoas, em Portugal, hoje, é missão quase impossível, pela quantidade e diversidade das organizações. São 350.000 empresas, mais os serviços públicos, mais as organizações sem fins lucrativos, de todos os tipos e dimensões e com as mais diversas origens.» Enfim, nada que não fosse possível ultrapassar, sobretudo por uma ideia que está bem expressa no mesmo texto de Jorge Horta Alves… «O que facilita um pouco a tarefa é que só uma minoria dessas organizações, talvez 10%, tem aquilo a que se pode chamar, com propriedade, gestão. E, como já alguém disse, talvez 10% destas tenham gestão de recursos humanos. Caímos assim num domínio de 3.000 a 4.000 organizações com sistemas integrados ou parciais de gestão das pessoas.»
E surgiram os 31 contributos. Abordando os tópicos mais variados. A famigerada «flexissegurança», colocada aqui entre aspas porque nesta revista aparece sempre com dois ésses para não cair no desagradável erro ortográfico (flexisegurança) que já invadiu um país tão esquecido daquela regra de o ésse entre duas vogais se ler como um zê; as leis laborais, principalmente a nova lei do trabalho temporário; os modelos de gestão das pessoas, velhos e novos; a maneira como essas mesmas pessoas são tratadas nas organizações portuguesas… Isto e muitas outras coisas passam pelo conjunto de textos que constituem o tema principal desta edição, que resolvemos abreviar para «RH 2007».
De resto, procurámos manter a edição o mais possível colada à estrutura habitual. Daí que surjam como sempre os espaços de opinião, um perfil – no caso de uma gestora de uma instituição que se dedica à formação de executivos e que está integrada numa universidade –, uma reflexão a que desde há muito chamamos «RH» (curiosamente sobre «flexissegurança»), um tema em foco (a formação, concretamente a questão das escolas profissionais) ou os ‘hobbies’ de uma mulher das empresas e a ligação que têm com o seu trabalho.
E por ser uma edição com um balanço do ano… O nosso também. É bom. Agora sabemos mais coisas. Conhecemos mais pessoas. Assistimos, maravilhados, surpreendidos, espantados, condescendentes, zangados, a coisas que, passe a redundância, nos maravilharam, nos surpreenderam, nos deixaram espantados, que mereceram a nossa condescendência, que fizeram com que nos zangássemos. Com tudo isto crescemos. Por isso o balanço é bom. E dá-nos força para continuar.

sexta-feira, 23 de novembro de 2007

Um engenheiro no mundo da gestão

O texto que coloco a seguir é um perfil de Manuel van Hoof Ribeiro (foto de Artur Henriques), um engenheiro com um percurso bem relevante no mundo da gestão, digamos assim, global; mas também com um percurso relevante na gestão de recursos humanos (na passagem da década de 1970 para a de 1980, presidiu inclusive à Associação Portuguesa dos Gestores e Técnicos dos Recursos Humanos – APG). Escrevi este perfil em 2003.

A viagem na vertical
Um perfil de Manuel van Hoof Ribeiro

Já não faltava muito para chegar a Revolução de Abril, mas o velho Estado Novo português parecia coisa para lavar e durar, mesmo que no país poucos vislumbrassem maneira de alguma vez ele aparecer de cara verdadeiramente lavada. Uma noite, em Lisboa, um homem caminha mais a mulher. É sócio da AIP e pensa levá-la lá a jantar; lá, quer dizer, «ao restaurante que lá havia». De repente, pára um carro; gente importante, um almirante e o guarda-costas, qual dos dois o mais conhecido. A mulher assusta-se.

Também, não era para menos. O guarda-costas já tinha as suas histórias, contudo bem menores do que as do almirante, nem mais nem menos do que Henrique Tenreiro, uma figura bem colocada no aparelho do Estado. Estamos no início da década de 70. Cerca de quarenta anos antes...
... pelo Verão de 1931, nascia em Lisboa, na zona dos Anjos, o homem a quem o almirante haveria de sair ao caminho. O nome, Manuel van Hoof Ribeiro. O pai era português; a mãe, belga, da Flandres. «O meu pai casou tarde, já teria quarenta anos. Era um homem de negócios, com uma vida cheia de aventuras, na Turquia, na Rússia, em Paris...» Foi aí que conheceu a futura mulher, uma então candidata a cantora que frequentava o Conservatório. Ela abandonara a burguesia flamenga para se instalar na cidade-luz sob a tutela de um parente que leccionava no Conservatório. Se o choque já tinha sido grande em Berlaar, a aldeia da família materna de van Hoof Ribeiro, o choque pela opção artística da rapariga, maior ainda foi quando se soube que estava de abalada para Portugal para casar com um português. Era demais para a família, que chegara a ser uma das mais ricas da Bélgica mas que estava debilitada pela primeira guerra mundial; família que viria a perder praticamente o resto da fortuna durante a segunda. «Os alemães tiraram metade; depois os aliados ficaram com a outra metade.»
O pequeno Manuel vive feliz em Lisboa com os pais. «O meu pai continuava com os negócios, mas menos viajante. A minha mãe ficava por casa, dedicando-se ao canto e ao piano.» Aos quatro anos, Manuel vai para a Escola Alemã, na zona de Palhavã, na altura frequentada pelos filhos de famílias tradicionalmente germânicas. Fica aí até aos onze anos, quando passa para o Liceu Camões (1943). Durante esse período, apanha grande parte da segunda guerra mundial. «Os poucos portugueses formavam um grupo na escola alemã... Andávamos à pancada com os alemães, eles a defenderem o Hitler, e nós, nem se pense que falávamos no Salazar, nós defendíamos o Carmona.» A guerra marca-o, muitos colegas alemães são chamados, rapazes de quinze e dezasseis anos. Vários deles acabam por morrer. «'Mortos em combate', era o que anunciavam.»
Os pais separam-se quando Manuel tem dez anos. É um choque para o rapaz. «As férias em família acabaram. Davam-me dinheiro e eu ia de férias...» Manuel refugia-se junto dos amigos, passa a frequentar as casas das famílias deles. O divórcio é um rude golpe para a mãe, que raramente sai de casa. Manuel mora com ela, em Lisboa. O pai está no Estoril e começa a dar sinais de estar doente. Morreria duas décadas depois, em 1965. «O meu pai viveu em diversas casas e em hotéis. Lembro-me dele de charuto na boca; lembro-me depois dos exames pulmonares, de o ver já no final da vida sempre com uma garrafa de oxigénio atrás. Aos dezasseis anos, tomei conta dos negócios dele, têxteis, importação/ exportação. Desfiz-me do negócio em 1975, um prédio na Rua dos Fanqueiros, que antes se tinha chamado Rua da Princesa; as ruas da baixa perdem e ganham valor de cem em cem anos.»
No Liceu Camões, o jovem Manuel começa por não se destacar muito com os livros. É atleta de bom nível do então Lisboa Ginásio Clube e isso dá-lhe «notoriedade». Mas as coisas acabam por compor-se na parte final dos estudos secundários e entra no Instituto Superior Técnico, em Engenharia Química Industrial, surpreendendo alguns dos amigos, que o viam a seguir Medicina. «Não podia ir para fora durante muito tempo, porque tinha de estar junto do meu pai. Procurei uma piscina e encontrei a do Técnico, onde cada banho custava dez escudos. Uma fortuna. Sugeriram-me que me inscrevesse na associação, pagando cem escudos; foi o que fiz. Foi o meu primeiro contacto com o Técnico, e acabei por ir para lá fazer os estudos superiores.»
É depois do primeiro ano do curso que conhece a mulher. Anda numa lufa-lufa, os negócios do pai, explicações, ginástica no Lisboa Ginásio Clube, voleibol na equipa do Técnico. E o namoro com a futura mulher, o que lhe dava «bastante trabalho». Chega a campeão nacional de Voleibol («era bem melhor na ginástica, mas como fazia parte da equipa que ganhou sete ou anos campeonatos seguidos...) e mais tarde, na ginástica, lesiona-se mesmo antes da convocatória para os Jogos Olímpicos de 1948, em Londres. O curso toma-lhe seis anos, dois dos quais divididos com a tropa. «Tinha que ter boa nota no curso de oficiais milicianos para depois não ser colocado fora de Lisboa.» Fora de Lisboa, que podia ser, por exemplo, a Índia, onde as coisas começavam a estar quentes. Fica em terceiro lugar e opta por Queluz. «Colegas meus acabaram por morrer na Índia. Havia canhões, mas não havia balas.» Colegas, assinale-se, engenheiros, que «tinham ido colocar explosivos para rebentar pontes, aquando da retirada»; isto quando «os indianos tinham pontes militares para colocar a seguir».

A longa tropa virtual
Em 1957, o engenheiro químico industrial Manuel van Hoof Ribeiro entra numa das referências do país em termos empresariais, ou antes, na referência, a CUF.«Foi no dia um de Setembro. Fui para Alferrarede, para a União fabril do Azoto». Normalmente entrava-se pelo Barreiro, mas o jovem engenheiro tinha outros planos. «Em Alferrarede era mais fácil, tratava-se de uma fábrica nova, davam casa, água, electricidade... Pude casar um mês depois de ir para lá. Tínhamos uma cama, uma mesa, cadeiras, mais nada; agora é diferente, os jovens casam e têm electrodomésticos, mobília... Quando recebi pela primeira vez um director, fiquei envergonhadíssimo com aquela frugalidade; fui a correr comprar uma bebida para lhe oferecer...»
Viaja pelo estrangeiro, França, Itália, não sem problemas... «Saí dos Altos Estudos Militares de forma irregular. O general director, que me tinha feito ficar mais uns meses como tradutor de alemão, acedeu a libertar-me do serviço sem quaisquer exigências burocráticas.» Manuel van Hoof Ribeiro queria casar, tinha a viagem de fim de curso e o convite da CUF. Sai, na moto em que se deslocava habitualmente, mas sem o documento comprovativo da decisão do general director. «'Pronto, vai-te embora e não te estampes com essa porcaria de duas rodas, e quanto ao casamento vê lá onde te vais meter', disse-me ele.» A falta do documento não atrapalha a viagem de finalistas, nem a primeira viagem pela empresa. Só que à terceira... «Fui interceptado quando solicitava o passaporte militar no quartel de Queluz; disseram-me que continuava ao serviço. E a minha mulher, grávida de oito meses, no carro, à minha espera...» Lá consegue o passaporte, mas por azar as portas de armas tiveram de ser encerradas; «ordens superiores». Falava-se numa movimentação de tropas nos quartéis da região de Lisboa. «Acabei por ter de saltar o muro.» A partir daí, usa passaporte militar provisório, pedindo sucessivas revalidações. Continua na tropa... «Ainda pensei que chegava a coronel, por antiguidade, mas alguém terá travado o processo e parei em tenente. Há pouco tempo, ao solicitar a reforma definitiva, pediram-me perto de três mil euros para contarem o tempo em que cumpri o serviço militar. Não discuti, tropa é tropa, e além disso o primeiro-ministro disse que estamos de tanga; paguei.»
Manuel van Hoof Ribeiro acaba por mudar-se para o Barreiro, em 1959. Agora está numa fábrica de adubos... Antes planeava, agora também executava. «A sensibilidade era outra...» A progressão é rápida. Em 1962 está ligado ao Centro de Estudos da CUF, também no Barreiro, que depois passa a Centro de Projectos. À frente, Vístulo de Abreu, um homem que viria a revelar-se fundamental para o jovem engenheiro. Em 1963, um grupo de quadros da CUF, entre eles van Hoof Ribeiro, cria dentro do grupo a Profabril, procurando utilizar o custo/ benefício das dezenas de técnicos existentes. «Fazíamos projectos, fiscalizávamos serviços... O sucesso foi grande nos primeiros anos.»
Entretanto, tinha ganho dinheiro com acções da União Fabril do Azoto. Tinham sido colocadas no mercado a 500 escudos, baixando depois para 125. Manuel van Hoof Ribeiro acredita e compra nos 300 escudos; vende-as alguns anos depois a 1.250 escudos. À conta desses ganhos, compraria uma casa em Cascais, onde ainda mora; uma casa que viria a causar-lhe algumas dores de cabeça.
Sai da Profabril em 1969. «Não me sentia bem com a saída do Vistulo; saí.» É convidado pela Casa Bensaúde, que tem posições maioritárias em trinta e três empresas. «O Banco Totta & Açores vem daí... Tinha o Banco Micaelense, companhias de seguros, a SATA, bancas para navios, companhias de navegação, a Parceria Geral de Pescas...» É aí, na Parceria Geral de Pescas, que está pela parte do Estado o almirante Henrique tenreiro, o homem do bacalhau. A família Bensaúde tinha oferecido um navio bacalhoeiro ao Estado, com a intenção de que fosse baptizado com o nome de recém-falecido Vasco Bensaúde, a figura tutelar da família. O navio arde no Mar da Palha, o Estado recebe o dinheiro do seguro, ainda por cima de uma das companhias da família. Manuel van Hoof Ribeiro, ao ver que tinham de pagar o navio oferecido, não se contém e manda «umas bocas» num jornal. É então que, uma noite, ao caminhar com a mulher em Lisboa, lhe sai o almirante Tenreiro ao caminho, de guarda-costas e tudo. «Bom, o almirante chamava-lhe secretário particular...»

Era só para arranjar mesa
Afinal, o almirante do bacalhau queria só «certificar-se de que o senhor engenheiro e a esposa arranjavam mesa», e queria certificar-se de guarda-costas e tudo. Almirante que voltaria a atravessar-se no caminho de Manuel van Hoof Ribeiro, depois do 25 de Abril. Mas antes, a casa de Cascais... «Eu vivia numa casa em Lisboa. Faltavam-me oitocentos contos para pagar tudo; tinha de os entregar daí a quinze dias ao empreiteiro, ou então perdia o que lhe tinha entregue, 2.600 contos.» Ia pedir emprestado a um banco e tudo estava combinado... «Era administrador de seis empresas do grupo, estava em Londres a tratar de negócios de fuel óleo.» Dá-se o golpe de Estado em Portugal, o 25 de Abril. Quando regressa, dirige-se ao banco com o qual negociara o empréstimo, mas tudo se complica; negam-lhe o empréstimo com o argumento de ser fascista. «Informaram-me de que era fascista, porque tinha comprado uma moradia em Cascais... Foi o que me disseram no Crédito Predial Português.» Pedir dinheiro no banco do grupo, nem pensar, porque «daria primeiras páginas nos jornais». Vale-lhe Manuel Ricardo Espírito Santo, a quem conta o episódio; este manda-o à dependência do seu banco no Saldanha e tudo se resolve. «Quando lhe telefonei para agradecer pessoalmente, informaram-me de que tinha sido levado para a prisão de Caxias.»
A confusão instala-se no país. Manuel van Hoof Ribeiro mantém-se no escritório da Rua do Ouro e na companhia de seguros de que era presidente. Num Sábado, telefona-lhe um director... «’Também fomos nacionalizados', disse-me, e eu respondi-lhe que ia logo para lá.» Foi e só regressou a casa na Terça-feira de manhã. «A certa altura, toca o telefone no meu gabinete; atendo e perguntam do outro lado: 'então, camarada, está tudo bem?'». Não responde logo, pelo que lhe perguntam o nome; respondeu e passado pouco tempo tinha as forças do COPCON na empresa com o mandato de captura do costume, em branco. Os trabalhadores defendem-no, exigem que fique, pelo que é nomeado director-geral, mantendo o salário; a presidência é entregue a «um tipo de barbas». Aliás, «nessa altura cresceu a barba a quase toda a gente». Pouco tempo depois, num Domingo de manhã ... «Estava a dormir, telefonam da Cova da Moura; ou ia para lá ou mandavam-me buscar sob prisão.» Foi. «'Então o senhor deu guarida ao almirante Tenreiro, que vai abandonar o país num navio seu?’, disse-me um tenente.» Tudo acaba por esclarecer-se... Tenreiro preso no quartel do Carmo desde o 25 de Abril, conseguira sair coma ajuda do guarda-costas/ secretário particular, tentando abandonar o país num dos navios da SNAB (Sociedade Nacional de Arrastões Bacalhoeiros); Manuel van Hoof Ribeiro tinha sido tomado por presidente do conselho de administração da sociedade, daí a acusação. «Eu era presidente da assembleia-geral, mas o tenente não via qual a diferença.» Mesmo assim, ainda lhe pedem que investigue as actividades passadas do almirante na sociedade, porque é que andava de BMW, quanto ganhava e por aí adiante. «Claro que não investiguei nada, coloquei o problema ao conselho de administração, para ver como é que saíamos daquilo...»
Manuel van Hoof Ribeiro acaba por demitir-se de todos os seus cargos no grupo em 1975. «Apresentavam-me para assinar papéis que não eram assináveis...» Fala com Vístulo de Abreu e meses depois está na Companhia Nacional Petroquímica, onde fica apenas uns meses. Nobre da Costa, antes de ser primeiro-ministro, ainda como secretário de Estado da indústria, chama-o para a Siderurgia Nacional, onde fica até 1980. «Havia uma enorme desorientação, tinha de se trabalhar muito, tive de ser um bocado bruto, mas a empresa passou a ganhar dinheiro.»
Entretanto, tinha sido convidado para a Associação Portuguesa de Gestores e Técnicos dos Recursos Humanos (APG) pelo seu amigo e antigo colega da CUF e da ginástica, Raúl Caldeira. Chega a ser vice-presidente e depois presidente. É um pouco a passagem pela APG que o leva a integrar a equipa do Ministério do Trabalho, no sexto governo provisório. «Na altura, a opinião da APG em matérias laborais era tida como fundamental...» No governo de Pinheiro de Azevedo, acaba por fazer o dia de greve que ficou histórico, «o único dia de greve que fiz na vida». Era chefe de gabinete do secretário de Estado do Emprego, Manuel Tito de Morais, que «receava a parte prática...» No 25 de Novembro, chega a andar de metralhadora.
Em 1984, depois de três ou quatro anos a trabalhar como consultor, assume a presidência da EPAL, que passa depois a empresa lucrativa, «alimentando todo o grupo IPE», isto quando lhe pediram, ao entrar, para «ver se mantinha aquilo a perder apenas 500.000 contos por ano». Sai em 1988, após um processo bastante doloroso que envolveu vários nomes do governo PSD (ver caixa), que o obrigou inclusive a pedir à Alta Autoridade Contra a Corrupção uma investigação às suas próprias actividades à frente da empresa, algo inédito.
O IPE, a holding estatal, não o coloca em nenhuma empresa. «Diziam que ainda ia ter de esperar, depois do que acontecera na EPAL.» É quase uma década de Indefinição em que faz «uma espécie de mestrado» em Inglaterra e dá aulas como docente de licenciaturas no ISEL, instituto de que chega a ser vice-presidente; além de continuar a trabalhar como consultor. Em 1997, já depois do ocaso político de Cavaco Silva, o presidente da República Jorge Sampaio conversa com ele no Palácio de Belém. Quer saber por onde anda. Meses depois é o primeiro-ministro António Guterres que o chama, sonda-o sobre o que gostaria de fazer. Manuel van Hoof Ribeiro diz que não é boy. Guterres, muito sério, informa-o de que só se preocupa em recrutar profissionais. «Eu acreditava mesmo naquilo dos jobs for the boys... Levei uma lição.» Dois meses depois, é o ministro das obras públicas, João Cravinho, que manda chamá-lo; «ia para o Algarve, de carro, e telefonou-me a chefe de gabinete, a dizer-me que voltasse para Lisboa imediatamente». Cravinho fala-lhe de diversas empresas do Estado e acaba por convidá-lo para a presidência da Brisa, a empresa das auto-estradas, onde entra no dia dois Setembro. Tinha de preparar a privatização. «Durante quinze dias, dormi noite sim, noite não, sempre em reuniões e mais reuniões com analistas financeiros.» A privatização da empresa, dividida em quatro fases, é um sucesso. Manuel van Hoof Ribeiro chega a ser vice-presidente da ACECAP, a entidade europeia ligada às auto-estradas, cargo que abandonou recentemente. Em 2001, deixa a presidência da Brisa, pouco antes de estar presente na inauguração da auto-estrada para o Algarve. E regressa ao universo onde entrou em 1957 e onde nunca teve contrato anteriormente, nos termos da «cultura de confiança» que existia. É administrador não executivo da SGPS José de Mello. Aos setenta e um anos, volta a ter o mesmo patrão. Sai de casa diariamente pelas dez da manhã, para fugir ao trânsito, e regressa pelas cinco da tarde. Em casa, a mesma comprada pelos tempos da Revolução, cheia de recordações de uma vida que tem sido sempre uma viagem na vertical, de cabeça bem levantada, consegue estar on-line com o escritório; isto graças a um sistema «todo moderno» que não o assusta nem um pouquinho. Vai buscar os netos ao ténis, leva a mulher (que o «atura» há quarenta e cinco anos) à ginástica e mantém a mania de andar de mota, tal como a de fazer o pino. É um homem tranquilo consigo próprio, mas parece intranquilo com o país; vá lá alguém pôr-se a dizer que não tem razões para isso...

CAIXA
As águas e o pântano
Em 1984, Manuel van Hoof Ribeiro toma posse como presidente da EPAL. Chegara a falar-se na presidência da Quimigal, o grupo que resultava da privatização da «sua» CUF. Pediram-lhe para «ver se mantinha aquilo sem passar dos 500.000 contos anuais de prejuízo». A empresa vivia tempos difíceis. Sucedem-se as greves, falta água em Lisboa, chega a morrer gente nos hospitais. Manuel van Hoof Ribeiro não demora muito tempo a perceber o que se passa; a empresa está tremendamente politizada, nas mãos de «um partido, o PCP». Resolve actuar. Afasta directores e rodeia-se de pessoas em quem confia. Sabe que em 1987, a continuarem as coisas assim, não haverá capacidade para abastecer Lisboa. Sabe também que a Baixa Pombalina pode abater, por assentar em estacas que só se conservam dentro de água, isto com a água já desviada pelas mexidas no subsolo. Desenvolve o plano de que resultam os projectos da nova captação de água no Castelo do Bode e a nova estação de tratamento de água da Asseisseira. Ao mesmo tempo, implementa mudanças na gestão da empresa, que até aí navegava ao sabor das confusões políticas da época. Mete-se também a perceber a situação da Baixa Pombalina, propondo soluções, mas sente-se «boicotado por responsáveis da tutela». Surge à baila, na comunicação social, uma empresa onde estão nomes de vários responsáveis governamentais e outros «futuros políticos». Os projectos para o arranque de um modelo matemático da rede de distribuição, «com mais de cem anos e sucessivas roturas», na Baixa Pombalina não avançam. São tempos «terríveis», em que «vi como única solução, perante as situações escandalosas com que me deparei, («referiam os media na altura, que se tratava de uma empresa privada que estava instalada numa secretaria de Estado»), pedir à Alta Autoridade Contra a Corrupção um inquérito às minhas próprias actividades na EPAL». «Tomei a decisão depois de conversar com o então ministro da tutela.» Foi um longo processo, onde o organismo liderado por Costa Brás deu razão a Manuel van Hoof Ribeiro, o que não evitou a este nem a saída da EPAL nem um ataque cardíaco. Um secretário de Estado deixa o governo de Cavaco Silva, sendo substituído pelo seu anterior chefe de gabinete, que recebe van Hoof Ribeiro. «Quando entrei, ouvi apenas: ‘quando quiser, pode sair’...» Manuel van Hoof Ribeiro diz que acabou por ter «o apoio de políticos e de jornais» e que «talvez inclua estas aventuras num livro que pretende publicar».

sexta-feira, 2 de novembro de 2007

Edição de Novembro

Número 63 da revista «Pessoal» – edição de Novembro. Na capa, António Quina, o homem que criou a empresa «a vida é bela». Coloco a seguir o meu editorial.
(clicar na imagem para aumentar)
A felicidade
Como é habitual em Novembro, esta edição da «Pessoal» será distribuída no «Encontro Nacional» da Associação Portuguesa dos Gestores e Técnicos dos Recursos Humanos (APG). Além dos vários canais em que a revista circula, desde a banca ao universo de sócios daquela associação, estará numa realização que conta já com 40 anos de história; o «Encontro Nacional» da APG começou a ser realizado ainda antes de eu ter nascido.
A primeira edição aconteceu cerca de dois anos e meio depois da fundação da associação, em 1964. Foi nos dias 10 e 11 de Março de 1967, no Hotel Praia Mar, em Carcavelos, e o tema foi o seguinte: «As Perspectivas da Direcção de Pessoal». Raúl Caldeira, o primeiro presidente da APG, falou-me em tempos desses dois dias de Março de 1967; fê-lo numa entrevista, assim… «Fizemos um encontro, os primórdios dos encontros de hoje, 20 pessoas, uma sala, havia um que discutia um assunto, apresentava-se meia dúzia de temas e por aí adiante. Fizemos um escaparate com os livros de cada um, para divulgar os livros profissionais que havia, os que cada um tinha, mas a certa altura começámos a ver que havia lá um parceiro que ninguém conhecia, que andava a meter o nariz nos livros. Quem é? Quem não é? Viemos a saber que era um inspector da PIDE. A PIDE andava um bocado de olho, em cima de nós também, mas não nos incomodaram assim muito fortemente, a não ser nestas pequenas coisas, nestes jogos baixos. (…) Enfim, foram as dificuldades próprias do nascimento de um movimento associativo.»
Agora, 40 anos depois daquela primeira realização que até um PIDE bisbilhoteiro meteu, a APG vai realizar o seu quadragésimo «Encontro Nacional». O tema parece-me um pouco afastado daquilo que às vezes se espera no mundo das empresas, onde palavras horríveis como sinergia, pró-activo ou ‘executive’ fazem as delícias de muita gente. «Performance e Felicidade – A Convergência Possível», é o tema. A comissão organizadora, numa passagem de um texto que acompanha o programa, escreveu… «Será que a performance e a felicidade das pessoas nas organizações são incompatíveis? A resposta não é óbvia, nem tão pouco linear. Com facilidade apetecia-nos dizer que não, que não são incompatíveis! Estamos a falar de temas complexos, subjectivos, multi-variáveis. Desde logo, no que toca à felicidade, não há uma única definição para o termo, e na vida como na literatura há mais interrogações do que certezas ou modelos categóricos. Há o ‘ser feliz’ e o ‘estar feliz’. O encarar a felicidade como um somatório de bons momentos ou a existência de um contínuo de bem-estar. Há os interesses e as preferências pessoais muito diversificados. Nas organizações, nas empresas, pela sua natureza e pelo seu propósito, há uma legítima preocupação em criar valor, conseguir resultados; para tal, em que se atinja elevadas performances. As pessoas têm os seus interesses e objectivos individuais. As empresas também. Conseguir importantes plataformas de convergência entre estes interesses diversificados é, seguramente, um bom caminho para a elevada performance e um importante contributo para a felicidade das pessoas.»
Para uma edição como esta, distribuída onde se fala de felicidade, nada melhor do que irmos buscar para capa um autêntico empreendedor da felicidade: António Quina, o criador da empresa «a vida é bela», de quem publicamos um perfil. Mas a edição tem muito mais coisas; destaco duas: um dossier sobre a Organização Internacional do Trabalho e uma reflexão sobre a relação dos gestores e dos economistas com o ambiente (em tempos de Nobel para Al Gore de uma história ambiental de Rodrigues dos Santos, mas é apenas coincidência). Podia, é claro, destacar mais coisas; ficam para descobrir nas páginas seguintes.

domingo, 28 de outubro de 2007

Mediterrâneo RH (11)

Depois de algum tempo de interrupção, mais um pouco do projecto «Ágora RH» (explicação do projecto no post 1 sobre este tema - ver arquivo, Abril de 2007); a pequena entrevista com o representante da Hungria.

Peter Soltész (Hungria)
«A sensibilidade dos políticos europeus está a aumentar.»

Peter Soltész é professor na Universidade de Budapeste, dedicando muita atenção às questões ligadas à educação. Tem trabalhado em projectos europeus (ao nível da Comissão Europeia) e noutro tipo de projectos internacionais que o têm levado a muitos países mediterrânicos (por exemplo, a França e a Tunísia).
Um húngaro que fala num colóquio sobre o Mediterrâneo pode parecer uma coisa estranha. Há alguma ligação da Hungria com esta região?
A Hungria não pertence ao Mediterrâneo, mas eu estou pessoalmente envolvido com esta região. Passei vários anos na Tunísia, como professor de matemática, e trabalhei muito em França. Por isso tenho projectos em que estou a participar, em diversas equipas; interesso-me muito pelo que se passa nesta região. O director-geral deste projecto, François Silva, é um velho amigo meu e pediu-me para olhar para este projecto de fora. Outra razão da minha presença é que estamos a tentar fazer um projecto similar a este, que será para as regiões do leste e do centro da Europa. O senhor é professor universitário em Budapeste, de Matemática. Mesmo assim, peço-lhe que me descreva como é feita em geral a gestão das pessoas na Hungria?
Não é fácil fazer essa descrição. A Hungria mudou o regime há 16 anos, saiu de uma ditadura comunista para a democracia. Penso que escolheu um caminho doloroso de privatizações da propriedade pública e das empresas. Não houve obstáculos aos investidores estrangeiros que quiseram ir para Hungria, nem houve obrigação de reinvestir uma parte dos lucros. Eles podiam retirar todos os lucros que estavam a ter, lucros rápidos, e depois era só ir embora. Isto ainda acontece e vai conduzir-nos a algo doloroso, com graves consequências. As grandes empresas, multinacionais, não têm interesse em ter recursos humanos motivados, em desenvolver estratégias coerentes. A única preocupação que têm é recruta, mas sem desenvolver as pessoas, e isso é uma caricatura da gestão de recursos humanos, é uma aposta em escravos de baixo preço, nada mais.
Estar na União Europeia não ajuda a Hungria em nada?
Enfim, as grandes empresas já foram vendidas, não há quase nada na mão do governo.
Não venderam nada a húngaros?
Nalguns casos sim, vendeu-se a quem pôde investir, mas a maioria dos que podiam investir eram estrangeiros. Ficou pouca coisa nas mãos de húngaros. Há uma franja da população que começa a ter espírito empreendedor, mas a maior parte dos empreendedores da Hungria de hoje são de fora.
Qual é para si o maior problema do espaço do Mediterrâneo, um espaço que conhece bem?
Os países do Magreb saíram de uma colonização. Isso significa um gap económico e cultural entre os dois lados do Mar Mediterrâneo, algo que continua a ser importante e que os europeus supostamente devem ajudar a eliminar; e por isso eu gosto tanto do «Projecto Ágora RH». Mas há outros projectos que apareceram na sequência da Cimeira de Barcelona.
No Mediterrâneo, vê mais um apelo à partilha ou uma mania irritante de erguer muros?
Eu acho que graças a projectos como este, envolvendo países europeus e países do Magreb, a Comissão Europeia poderá encontrar mais uma área de cooperação. Espero que o esforço prossiga e que se acabe com as fronteiras.
Pensa que pessoas de empresas e universidades estão mais avançados do que os políticos nesta matéria?
Espero que os políticos estejam tão preparados nesta área como os professores universitários e os empreendedores. Creio que a sensibilidade dos políticos europeus está a aumentar.
Por falar em políticos, na Hungria houve problemas por causa de se ter descoberto que o primeiro-ministro era um mentiroso?
É difícil falar dos políticos húngaros, pois a situação do país é crítica. Penso que na Hungria temos uma profunda crise moral, económica e política. Deve-se a muito factores, mas o principal foi as privatizações, que já referi. Elas não foram feitas para os húngaros e as consequências disso são más. O actual governo teve de tomar duras medidas e a população não estava preparada para a queda do nível de vida que tinha. Os preços crescerão muito depressa, a indústria será afectada, a maioria da população também, a classe média então será afectada duramente. Vamos ter grandes problemas.
Se a Hungria não estivesse na União Europeia o que é que poderia acontecer?
Não teria sido possível ver os problemas claramente agora. A Comissão Europeia tem critérios que é preciso cumprir, isto se a Hungria se quiser juntar ao sistema monetário europeu. E todas as estatísticas económicas mostram que a Hungria está muito longe de cumprir os critérios.
Portanto, está pessimista em relação ao futuro…
Estou moderadamente optimista. Acho que podemos confiar nas pessoas, que trabalharão. A Hungria passou por crises profundas crises na sua História. Pense no que aconteceu em 1956; depois da invasão, o país foi devastado pelo exército soviético, não sei quantas pessoas morreram, 200.000 foram forçadas a ir para fora. Eu espero que depois de dois ou três anos as pessoas sejam capazes de sair desta profunda crise. Por isso estou moderadamente optimista. Claro que ao ver neste projecto um país como a Eslovénia sinto alguma inveja. As privatizações deles funcionaram, e a entrada na União Europeia foi um êxito.

segunda-feira, 8 de outubro de 2007

O professor de José Mourinho

Esta excelente entrevista não foi feita por mim. Apenas a propus e acompanhei. É da autoria da jornalista Ana Leonor Martins e foi publicada na revista «Pessoal», que dirijo, em finais de 2004 (algumas passagens têm de ser contextualizadas, por exemplo a referência aos «galácticos» do Real Madrid ou a José Peseiro treinador do Sporting). É uma entrevista com Manuel Sérgio na qual se fala sobretudo do seu antigo aluno José Mourinho e das suas notáveis competências.

Manuel Sérgio
O professor de José Mourinho

Se há meia dúzia de anos se dissesse que um português, treinador de futebol, ia ser o oitavo gestor mais bem pago da Europa, poucos acreditariam. E que com uma equipa sem grandes nomes do futebol internacional seria possível ser campeão europeu, a mesma coisa. Mas a verdade é que isso aconteceu. Manuel Sérgio, fundador da ciência da Motricidade Humana e professor de José Mourinho na faculdade, explica o que faz do seu antigo pupilo «um homem capaz de liderar uma empresa, um partido político ou até um exército».

Para além de ter sido professor de José Mourinho, Manuel Sérgio é também seu amigo pessoal, sendo inclusivamente quem assina o prefácio do primeiro livro do actual treinador do Chelsea, de Inglaterra, um homem que considera um «líder nato». Mas a conversa não se ficou por José Mourinho, nem pelo desporto. Foi também para o mundo das empresas, para a política, para as questões da educação, entre outros temas. Descubra, por exemplo, por que é que em 2004 ainda temos «dirigentes desportivos incompetentes», «administradores ignorantes» e «políticos com discursos que cheiram a bolas de naftalina».
O desporto foi durante muito tempo encarado como algo menor. Como tem visto a sua evolução?
Durante muito tempo, o desporto foi considerado como mera recriação. Veio para Portugal trazido pelos estudantes das boas famílias que iam para Inglaterra estudar. Foram eles os primeiros intérpretes do desporto em Portugal, os filhos da burguesia e um ou outro da nobreza. O desporto nasce do ócio e no século XIX a Inglaterra era um país desenvolvido. Quem trabalhava de sol a sol não tinha tempo para fazer desporto.
Mas hoje em dia está longe de ser algo meramente recreativo, nomeadamente o futebol, que é um negócio que envolve milhões...
O desporto é indiscutivelmente um dos aspectos do capitalismo vigente. Como tal, a sua alma é a mercadoria.
Mercadoria?
Sim, os jogadores. Eles são vendidos para o clube fazer dinheiro e a formação é para ir buscar mais jogadores, que mais tarde também serão vendidos. O desporto tem que dar lucro e rege-se por aquilo que é vigente numa qualquer empresa. Os grandes clubes são empresas que proporcionam espectáculo, mas que têm que dar lucro. Exige-se produtividade e rentabilidade aos jogadores e também aos dirigentes.
Esses conceitos, tal como os de liderança, performance ou excelência, entre outros, aparecem mais na linguagem do meio empresarial. Mas a verdade é que, a este nível, o desporto tem sido muitas vezes apontado como exemplo a seguir pelas empresas...
É verdade. Veja-se o caso do José Mourinho, que foi meu aluno. Ele é um exemplo para muitos administradores de empresas que não têm a capacidade que ele tem de liderar um grupo. O Mourinho é um líder nato, um génio. Ele está para o treino como o Pelé e o Maradona estão para a prática. O Mourinho tem uma perspicácia invulgar a analisar as situações. É um homem que consegue ver aquilo que os outros não vêem. Ele olha e vê o futebol que se desenvolve no campo e nunca se engana nas substituições que faz. Depois, mesmo sendo um rapaz novo, consegue impor-se aos jogadores. Eles acreditam nele e fazem o que ele diz. E isso torna-o invulgar. Diria mesmo excepcional.
Mas, curiosamente, enquanto jogador nunca se distinguiu...
Nem precisava. Não é preciso ser-se um bom jogador para se ser um bom treinador. As qualidades exigidas são outras. O treinador tem que ser um líder. Um jogador pode ser o melhor tecnicamente, mas se não tiver capacidade de liderança nunca será um bom treinador.
E como aluno, José Mourinho já se distinguia dos outros?
Na cadeira que eu leccionava, Filosofia das Actividades Corporais, no Instituto Superior de Educação Física, da Universidade Técnica de Lisboa, teve quinze. Não é uma má nota, mas havia melhores. O que sempre o distinguiu foi o facto de ser uma pessoa que pensava e que levantava perguntas. Era muito extrovertido. Mas o José Mourinho tem uma outra faceta, que é pena que a maioria não conheça: ele é muito amigo do seu amigo.
Há quem diga que ele tem uma postura pouco humilde e até arrogante...
Mas no entanto é um homem com um grande sentido de família. O mundo da alta competição é outra coisa. Tudo o que prevê, ele acerta. E ganha tudo. Se diz que vai ganhar o campeonato é porque vai. Há-de errar noutras coisas, mas no trabalho não. Ele é um exemplo para muita gente, porque tem qualidades naturais de líder.
Não se pode aprender a ser um bom líder?
Um indivíduo pode saber muito de liderança, mas isso só não basta. Se eu não tiver coragem e se não me souber impor quando é preciso nunca serei um bom líder. Há coisas que não vêm nos livros, que estão em cada um de nós. O grande líder é o grande homem. É preciso estudo e qualidades humanas. Tudo em nós é inato e adquirido simultaneamente. Se eu não tiver determinadas qualidades, por mais livros que leia, nunca serei um líder.
Que qualidades são essas?
No caso do Mourinho, é o indivíduo em si. Ele é extremamente inquieto, quer sempre saber mais. É um homem de estudo, que se actualiza permanentemente. Tem qualidades excepcionais, que são dele e que não se aprendem. Simultaneamente, é um homem de coragem. A primeira coisa que ele faz quando chega a um clube é impor-se aos chamados «donos do balneário» e demonstrar que ali quem manda é ele. E se não lhe obedecerem são excluídos. Desde garoto que é um líder.
Acha que José Mourinho conseguia ter sucesso num clube como o Real Madrid?
Por acaso, já falámos sobre isso. Deve ter sido há uns dois anos, mas lembro-me perfeitamente de ele ter dito que o Real Madrid era o único clube do mundo para onde não gostaria de ir porque de certeza que se incompatibilizaria com quase todos os jogadores.
Mas se ele é tão bom líder como diz, não deveria conseguir impor-se em qualquer balneário?
Ele é um líder excepcional. O problema é que os outros também se consideram os melhores do mundo. Como têm muitas exigências publicitárias, andam sempre de um lado para o outro e não treinam como deviam. Estou convencido de que a má carreira do Real Madrid tem a ver com isso. Aquele balneário devora qualquer treinador, porque os jogadores não treinam, e se não treinam não há entrosamento entre a equipa.
Ou seja, mesmo uma equipa composta por indivíduos excepcionais, que são os melhores na sua área, pode não ter sucesso...
Claro. O treinador do Real Madrid teria que deixar quatro ou cinco estrelas no banco. Se calhar não tem é força para isso.
Mas José Mourinho fez isso no Porto, nomeadamente com o Vítor Baía...
Absolutamente. E se calhar faria o mesmo no Real Madrid. Para ele, o melhor jogador do mundo não lhe serve se não tiver força psicológica. Ele consegue descobrir qualidades nos jogadores, mesmo que não sejam os melhores tecnicamente. Numa empresa, o trabalhador tem que ser honesto e cumprir o seu dever. Não é isso que se está a passar no Real Madrid.
E acha que Mourinho não era capaz de impor disciplina no balneário dos «galácticos»?
Ele não me disse que não era capaz, disse é que tinha que se incompatibilizar com quatro ou cinco jogadores. Repito, o Mourinho tem qualidades de liderança invulgares, sem as quais não se pode ser um bom treinador de futebol, nem um bom dirigente ou um bom administrador. Primeiro, é preciso estudar e saber o que na prática se faz no ramo em que se trabalha. Em segundo lugar, tem que se ser corajoso. São as qualidades naturais de que falava há pouco.
E essas qualidades existem nos treinadores portugueses?
Há uma nova geração de treinadores, licenciados em Desporto, que trouxe o estudo para o futebol. O Mariano Barreto, actualmente a treinar o Marítimo, e o José Peseiro, que também foram meus alunos, são mais dois exemplos de estudiosos deste desporto.
Mas o treinador do Sporting, por exemplo, não conseguiu bons resultados nas primeiras jornadas do campeonato e nas conferências de imprensa aparenta sempre uma grande fragilidade...
E teve melhor nota do que o Mourinho, o que só prova que isso não quer dizer nada. É preciso ver que eu leccionava Filosofia do Desporto. O Peseiro não tem a coragem e a perspicácia inata do Mourinho para ver os problemas.
Acha que com Mourinho como treinador o Sporting teria outro tipo de resultados no início do campeonato?
Acho que no mínimo ele já teria criado uma revolução qualquer no Sporting. Ou então já lá não estava, porque de certeza absoluta que não aguentava uma coisa daquelas.
O que quer dizer com «uma coisa daquelas»?
Em primeiro lugar, era ele a decidir que jogadores contratar e não a direcção, como me parece que aconteceu. Não se pode construir uma equipa com critérios meramente económicos. E isso é o que acontece quando os dirigentes não percebem nada de futebol.
Na sua opinião, José Mourinho daria um bom dirigente de uma empresa?
De certeza que sim. E até um bom general de um exército.
E um líder de um partido político?
Também.
Então, um verdadeiro líder é capaz de liderar em diferentes contextos...
É evidente que depois é preciso estudo. Em 2004, quem não estuda não sabe. O Mourinho tem as qualidades inatas para liderar em qualquer área. Mas depois precisaria de se preparar. Volto a dizer, é preciso juntar o inato ao adquirido.
Mas o nível de pressão e de exigência muda consoante o contexto. Treinar em Inglaterra, por exemplo, não é o mesmo que treinar em Portugal...
O José Mourinho terá sucesso em qualquer lugar onde se lhe dê funções de liderar o treino. Claro que, e citando Ortega Y Gasset, «eu sou eu e a minha circunstância». Ele pode ter uma circunstância de tal maneira adversa que não o deixem trabalhar, mas caso contrário evidentemente que triunfa.
O que é que mais influencia o rendimento das equipas?
Ter os ordenados em dia. Isso passa-se com qualquer empregado. Normalmente, uma equipa vencedora tem por trás uma organização administrativo-financeira que permite que as qualidades dos jogadores apareçam e que a equipa se desenvolva sem problemas de outra ordem. E isso pressupõe a existência de dirigentes de qualidade.
E existem dirigentes de qualidade no futebol português?
São raros. Ao ouvi-los falar, percebe-se perfeitamente que não são competentes. E é por isso que depois desenvolvem uma competição desmesurada e passam a vida a insultar-se uns aos outros.
Por que é que isso acontece em Portugal?
Possivelmente porque somos um país onde a educação ainda está um pouco atrasada. Temos muitos dirigentes de clubes que são pessoas sem cultura para liderar seja o que for. E no futebol, como em qualquer área, a cultura é a mola do desenvolvimento.
Também falta essa cultura aos dirigentes das empresas?
Em alguns casos, sim. Acho que há dirigentes que se esquecem de que têm que trabalhar todos os dias e que o seu trabalho não se resume a assinar papéis, que têm que se actualizar. Os dirigentes deviam levar uma vida de estudo, tal e qual como um professor universitário. Não existe eficiência sem informação.
As universidades não terão alguma culpa nessa falta de espírito de investigação?
Eu sou professor universitário há muitos anos, já dei aulas em universidades estrangeiras, e posso-lhe dizer que na faculdade nós dependemos muito de nós próprios. Os alunos têm o dever de estar actualizados. Independentemente dos defeitos do sistema de ensino, é preciso ser-se uma pessoa diligente, atenta e estudiosa. E é isso que eu acho que alguns dos nossos administradores e gestores não são.
O desporto tem alguma coisa a ensinar ao mundo das empresas, nomeadamente a esses administradores e gestores?
O desporto copiou mais das empresas do que as empresas do desporto. Vivemos numa sociedade altamente competitiva e o desporto hoje reproduz e multiplica as taras dessa alta competição.
Mas em aspectos como a motivação e a rentabilidade das equipas o desporto de alta competição se calhar obtém melhores resultados…
Isso depende da direcção e do treinador. Do mesmo modo, uma fábrica ou uma empresa que tenha uma administração competente pode obter melhores resultados do que um clube de futebol. Mas também é verdade que se exige mais no desporto e que nos clubes com elevados níveis de exigência se paga muitíssimo mais do que nas empresas. O Figo ganha para aí uns 200 mil contos por mês. Depois tem é a vida muito mais controlada. Na ciência da lógica eu aprendi uma frase do Hegel que considero genial. «A verdade é o todo».
Considera que é o nível de remuneração que faz a diferença?
Não há nenhuma empresa que pague aos seus trabalhadores o que o Real Madrid paga aos seus jogadores. E apesar de existirem outros critérios de motivação, duvido que haja algum mais importante do que este.
Sendo assim, qual destes dois mundos – desporto e empresas – pode ensinar mais ao outro?
No nosso tempo, esse espírito de quem pode ensinar mais ou menos acabou. Porque todo o real é complexo, há um trabalho de interdisciplinaridade que tem que se fazer. Hoje ninguém se pode considerar mais do que o outro porque é sempre possível aprender-se mais. É importante não esquecer uma célebre frase de Abel Salazar, que dizia que «o médico que só sabe Medicina, nem Medicina sabe». Ou seja, para se ser um bom médico é preciso ter-se uma cultura que permita o exercício da Medicina. Isso vai para além da especialidade. Da mesma maneira, para se ser um bom homem do desporto tem que se aprender com as empresas, e para se ser um bom administrador tem que se aprender com o desporto. Em todos os momentos existe necessidade de um saber interdisciplinar, de diálogo. A cultura é isto. É ter o espírito do tempo. Para se desenvolverem, as pessoas têm de se relacionar.
Quais as principais mais-valias de cada lado?
As qualidades do desporto e das empresas são as mesmas. Até porque dependem fundamentalmente de pessoas e as qualidades pessoais não vêm nos livros. Podem é ser aprimoradas. Ninguém diz ao Mourinho, nem está escrito em lado nenhum, em que altura é que tem que substituir um jogador, nem quando é que tem que ser mais rígido. Ao dar-se uma ordem, é preciso que os outros a reconheçam enquanto tal.
Por exemplo, nos Estados Unidos os treinadores actuam como coach de empresários. Isso não quer dizer alguma coisa?
Isso acontece porque o desporto permite que as qualidades de liderança sejam mais evidentes. O desporto tem uma exposição mediática extraordinária. E os donos das empresas, nos Estados Unidos, depressa vêem que um determinado indivíduo tem características que lhes podem ser úteis. Isso não aconteceria se o indivíduo não estivesse tão exposto. Mas é verdade que homens com a capacidade de liderança que o desporto exige têm muito a ensinar aos administradores das empresas, desde que se actualizem permanentemente. O meio do desporto exige que o treinador tenha essas qualidades.
Até porque os resultados são do mais objectivo possível…
Pois... Ao fim de 90 minutos o resultado está à vista. É a tal exposição mediática. Mas é preciso ter noção de que quer um clube, quer uma empresa só progridem se, com humildade, estiverem atentos ao desenvolvimento dos outros clubes ou da outras empresas e perceberem o que se passa à sua volta. Um dos males do nosso tempo é que há uma grande incultura. Estamos a caminhar para a sociedade do conhecimento e, em 2004, ainda temos administradores ignorantes, tanto ao nível das empresas como nos clubes.
São sobretudo esses os líderes que existem nas empresas portuguesas?
Há bons e maus. É como em todo o lado. Não conheço bem a nossa realidade empresarial para fazer esse julgamento. Mas acredito que hoje os grandes líderes já estão capacitados de que estão na sociedade do conhecimento e que a rentabilidade será tanto maior quanto maior for a informação de que dispõem.
Um meio que conhecerá melhor é o da política, uma vez que já foi presidente do Partido de Solidariedade Nacional e deputado na Assembleia da República. Que tipos de líderes temos aí?
Acho que existe uma classe dominante na política que está perfeitamente ultrapassada e que diria ser bem de uma sociedade de há 40 anos. Há uma repetição constante dos valores republicanos, socialistas e laicos. Em 2004, exige-se mais. É preciso ir mais além.
Se calhar falta a actualização de que falava há pouco...
Os nossos políticos estão completamente a leste. Se calhar, precisavam de aprender com as empresas. Já se sabe o tipo de discurso de determinadas pessoas, mesmo antes de abrirem a boca. Como dizia Heraclito, «ninguém se banha duas vezes no mesmo rio», mas os tipos da política estão sempre com a mesma conversa. Só que o mundo avança todos os dias…
Estamos a assistir ao aparecimento de uma nova geração de políticos. É de esperar outro tipo de discurso?
Eu espero muito do José Sócrates.
O que é que o distingue dos outros?
Acho que é um indivíduo que sabe que não sabe. É um homem ansioso de saber e atento ao seu tempo, enquanto que os outros me pareciam pessoas de outra época, com um discurso, com perdão da expressão, que cheira a bolas de naftalina. Não é que não seja útil, mas é incompleto. Toda a gente sabe que é preciso liberdade, igualdade e fraternidade.
Está a dizer que são pouco objectivos...
Claro. É preciso ir para além desta retórica oca sem aplicação prática ao tempo em que vivemos. Mas isto não quer dizer que não existam bons políticos. Há é uma classe dominante que aparece a toda a hora e que não traz nada de novo. A política portuguesa é dominada pelas mesmas caras há anos. Em Cuba é Fidel Castro, mas aqui também são sempre as mesmas pessoas que aparecem.
Não é uma comparação um bocado extrema?
É dura. E eu sei perfeitamente que todos eles são adversários do Fidel Castro. Claro que isso não está em causa. O que quero dizer com isto é que estamos sempre a ouvir a mesma conversa. O mundo avança, mas continua a haver um discurso meramente retórico, que só em 1910 é que era formidável. A teoria tem que partir da prática. Há políticos que nunca trabalharam fora desta área. Isso é trágico, porque assim não sabem o que é a vida. E como somos um povo com défice de educação, que não tem espírito crítico, não se faz uma crítica daquilo que se ouve. As pessoas são monopolizadas pelos discursos agradáveis. É como se estivessem numa igreja a ouvir um padre.
Para terminar, enquanto professor, o que é que sempre se preocupou em transmitir aos seus alunos?
O desejo de querer sempre saber mais. Aquilo que mais me agrada, embora já tenha 71 anos, é estar a falar com alguém que eu sinto que é de hoje. Por isso, actualização permanente foi sempre o que mais exigi dos meus alunos e é o que mais exijo do desporto. Não é o saber muito, é o saber bem na área de cada um. É preciso ter ânsia de actualização e consciência de que não se sabe tudo. Só consegue desenvolver o conhecimento quem for humilde e quem conseguir reconhecer os seus limites. Há muita gente com a minha idade que parou. Mas eu sou um saudoso do futuro e não do passado.
***
Manuel Sérgio Vieira e Cunha nasceu em Lisboa, no dia 20 de Abril de 1933. Licenciado em Filosofia, pela Universidade Clássica de Lisboa, e doutor e professor agregado em Motricidade Humana, pela Universidade Técnica de Lisboa, aos 22 anos tinha apenas a instrução primária. É professor catedrático reformado da Faculdade de Motricidade Humana (FMH) e presidente do Instituto de Estudos Interculturais e Transdisciplinares do Instituto Piaget. É sócio fundador da Sociedade Internacional e da Sociedade Portuguesa de Motricidade Humana, foi quem criou a ciência da Motricidade Humana. Tem participado em inúmeros congressos, conferências e palestras em Portugal e no estrangeiro, nomeadamente no Brasil, onde leccionou nos cursos de graduação da Faculdade de Educação Física e nos doutoramentos da Faculdade de Educação, da Universidade Estadual de Campinas (1987 e 1988). Foi também no Brasil que recebeu a medalha de mérito desportivo, outorgada pelo presidente José Sarney. Para além da vida universitária, foi director do primeiro curso de treinadores de futebol de salão (1985), presidente da Assembleia Geral e vice-presidente da Direcção do Clube de Futebol «Os Belenenses», presidente da Assembleia Geral da Associação de Basquetebol de Lisboa e presidente do Conselho Fiscal da Associação de Andebol de Lisboa. Foi ainda o primeiro presidente do Partido de Solidariedade Nacional (PSN), tendo sido deputado na Assembleia da República durante a VI Legislatura.

sexta-feira, 5 de outubro de 2007

Edição de Outubro

Número 62 da revista «Pessoal» – edição de Outubro. Na capa, alguns dos actores da Companhia Teatral do Chiado juntamente com Luís Macedo, que na companhia assume, entre outros, o papel de gestor de recursos humanos. Deixo a seguir o meu editorial. (clicar na imagem para aumentar)

O homem que olha para lá do horizonte
Uma vez, já vai para uns cinco anos, aconteceu em Lisboa um debate que tinha como título algo parecido como «os novos desafios dos recursos humanos»; não sei se era exactamente assim, mas andava lá perto. Um dos participantes foi o meu amigo Artur Fernandes, que tem vindo a colaborar na «Pessoal» desde o início desta nova série, começada no Verão de 2002, quando o senhor Scolari andava pelas terras do oriente a tentar ser campeão do mundo em futebol sem que se imaginasse que cinco anos depois haveria de ao comando da selecção portuguesa dar um soco num jogador de uma selecção adversária e ainda por cima no estádio do meu clube. Bom, naquele debate, lembro-me de que o Artur, que na altura era director de recursos humanos de um banco, a certa altura falou de a mãe dele, muitos anos antes, lhe ter dito várias vezes: «meu filho, deves ir trabalhar para um banco»; a justificação era a seguinte – «é lá que está o dinheiro».
Nesta edição procurámos conhecer a banca. No habitual ‘dossier’. Não na perspectiva de sabermos se «é lá que está o dinheiro», porque isso creio que toda a gente sabe, mas na perspectiva de percebermos o que se faz na banca no nosso país em termos de gestão de recursos humanos. No ‘dossier’ pode ler-se uma longa entrevista de um dos responsáveis pela área no maior banco português (José Manuel Dias, da Caixa Geral de Depósitos) e outras três mais curtas e dois depoimentos (igualmente de responsáveis de recursos humanos de instituições bancárias). A ideia com que se fica – pelo menos a ideia com que eu fiquei – é a de que se trata de um sector onde deve valer a pena trabalhar (se bem que eu tenha sempre, como dizer?, um pé atrás, como já aqui contei, porque a seguir à faculdade trabalhei num banco e acabei por me despedir depois de ter sido atropelado à porta e de nem quererem saber se eu tinha morrido ou não; provavelmente não me consideravam – longe disso – um talento). Mas deste ‘dossier’ fica mesmo a ideia de que vale a pena lá trabalhar. E talvez essa seja a explicação para a ideia de lá é que estar o dinheiro, fruto do sucesso da banca em geral, que certamente assenta na gestão das suas pessoas.
Fora disso, outros temas da edição… O teatro, a gestão de recursos humanos no teatro (que puxámos para a capa), com uma entrevista a quem tem essa função na Companhia Teatral do Chiado; Scolari e Mourinho, líderes tão diferentes mas ao mesmo tempo tão iguais; a formação de executivos; os recursos humanos da construção civil; a indústria de relocation; uma interessantíssima «estória» de recursos humanos, de um jovem capaz de seguir os seus sonhos e de por eles correr todos os riscos; o perfil de uma directora de recursos humanos que tem em mente uma carreira internacional; a aversão ao mérito o nosso país. E mais coisas… Inclusive um texto final que me impressionou: os trabalhos do Américo, um verdadeiro provedor do mundo rural, quadro de um banco como os entrevistados do ‘dossier’, um homem que no espaço tantas vezes escondido e esquecido do interior conseguiu à custa de uma actividade discreta, quase invisível, transformar a vida de muitas pessoas, para melhor, bem melhor – é ele que na pequena foto [o editorial, na revista, tem uma pequena foto no centro do texto] central olha para lá do horizonte, no alto de uma serra, quem sabe a pensar em novos projectos capazes de levarem mais pessoas a ser felizes.

quarta-feira, 5 de setembro de 2007

Gestão e futebol

Uma entrevista de 2003, feita por mim e pelo jornalista Humberto Simões (revista «Pessoal»). O entrevistado terminou por estes dias a sua ligação ao Sporting. Há quatro anos pensava o futebol português da forma que a seguir se pode ficar a conhecer…

Rui Meireles
Um gestor no mundo do futebol

Chegado há poucos anos ao futebol, vindo do mundo das empresas, Rui Meireles faz uma análise sóbria e fundamentada da situação do futebol português, do que representa e do que poderá vir a representar como negócio, e não só. As suas funções no Grupo Sporting têm a ver com o que denomina de «Não Futebol». Mas o futebol, no Sporting, como na generalidade dos clubes, é a base. Até porque sem ele não se poderia falar de «Não Futebol».

Modelo de gestão, práticas contabilísticas, recursos humanos, auditoria interna, Comissão do Mercado dos Valores Mobiliários, Segundo Mercado, realidade empresarial, subscrição pública, fundo de jogadores, oferta pública de subscrição, organização, performances económico-financeiras, contas auditadas, business plan plurianual, cultura de empresa... Estas e muitas outras expressões podem ser encontradas nas respostas de Rui Meireles, misturadas com outras que soarão de certeza mais familiares ao grande público; por exemplo, academia, Figo, futebol, jogadores, Hugo Viana, plantel, camadas jovens, Quaresma, Liga, Simão, dirigentes, treinadores, árbitros, incumprimento fiscal, branqueamento de dinheiro, contas paralelas, SAD, empresários, pressão dos sócios, pressão sobre os árbitros, indiciamento de suspeitas... Para ler, mesmo sem dicionário.
Pode explicar-nos as suas funções na Sporting – Sociedade Desportiva de Futebol, SAD?
Actualmente, desempenho as funções de Director Geral para a área do Não Futebol, funções que estão interligadas com as funções de Administrador Executivo numa outra sociedade do Grupo Sporting, a Sporting Gestão, a qual tem como actividade a gestão e a coordenação dos serviços que são partilhados pelas empresas do Universo Sporting, como a gestão de recursos financeiros, a contabilidade, os recursos humanos, a informática, os aprovisionamentos, a auditoria interna, a assessoria jurídica e o desenvolvimento de novos projectos. No âmbito das funções desempenhadas na Sporting SAD, sou o representante da sociedade, junto da Comissão do Mercado dos Valores Mobiliários (CMVM) e da Euronext Lisboa, nas relações com o mercado.
Vindo do mundo das empresas, que contraponto faz entre ele e o mundo do futebol?
Quando em finais de 1995 cheguei ao Sporting Clube de Portugal, com a missão de colaborar no processo de reorganização do clube, inicialmente para a área financeira mas que posteriormente se estendeu a outras áreas, confrontei-me com uma realidade empresarial distinta dos demais sectores económicos. A forte componente emocional de que se revestiam as decisões de gestão e a coexistência de uma estrutura mista, composta por dirigentes amadores com o poder de decisão e uma estrutura desportiva altamente profissionalizada, constituíam os dois principais factores diferenciadores entre o mundo das empresas a que estava ligado e o mundo da actividade desportiva e do futebol em particular.
Como se concilia a gestão com o mediatismo que o futebol envolve?
No contexto nacional, o futebol é seguramente a actividade económica com maior mediatismo. Não conheço outra que ocupe tanto espaço na programação das televisões (telejornais e programas desportivos), que tenha jornais, sites e programas de rádio diários a falar sobre ela. Esta visibilidade, que poderia ser utilizada como uma alavanca importante de promoção do futebol, é grande parte das vezes utilizada para dar cobertura a polémicas entre os agentes do futebol. Neste capítulo, ninguém está isento de culpa; entidades gestoras do futebol (Liga, Federação e Associações), órgãos de comunicação social, dirigentes, jogadores, treinadores, árbitros, etc., todos têm a sua quota parte de responsabilidade no actual status quo do futebol. É evidente que neste cenário, praticamente de «guerrilha» e de descrédito, em que vive o futebol português, a missão do gestor é claramente mais difícil. Como é fácil de perceber, a ocorrência de situações de incumprimento fiscal, de branqueamento de dinheiro, de contas paralelas, de incumprimentos contratuais, de concorrência desleal, constituem factores de perturbação da gestão de qualquer sociedade, que no caso do Futebol, pelo mediatismo que envolve, assume proporções muito maiores.
Como inverter esse discurso de «guerrilha» entre os agentes do futebol?
De forma praticamente isolada, o Sporting tem trilhado um caminho e desenvolvido um discurso em prol da credibilização do futebol e da ética e da verdade desportiva. Se por um lado exige transparência de contas e de processos, por outro tem sido inovador; o pioneirismo na constituição de uma sociedade desportiva por apelo à subscrição pública, a criação de um fundo de jogadores e a obtenção de um empréstimo obrigacionista através de uma oferta pública de subscrição assumem-se como etapas que visam contribuir para um novo modelo para o futebol português. Considero que o Sporting está no caminho certo para a promoção do futebol e da verdade desportiva e tenho esperança de que esta forma de estar contagie outros agentes do futebol. É para mim claro que a não inversão das práticas e do discurso de suspeição pelo qual enveredam alguns agentes do futebol português conduzirão à falência daquele que é o desporto mais popular em Portugal.
Que contraponto faz entre o seu trabalho, que não é mediatizado, e o de muitas outras pessoas do clube e da SAD, dirigentes inclusive, que estão constantemente a aparecer na comunicação social?
O modelo de gestão da SAD valoriza e cultiva a participação dos colaboradores na missão e nos projectos da sociedade como se estes fossem inteiramente seus. O facto de algumas pessoas terem mais ou menos mediatização em nada afecta a estratégia que é seguida e que assenta no mobilização de todos na procura das melhores soluções para os desafios da competição que a sociedade tem de enfrentar.
Apesar de tudo o que se diz do futebol, também há quem diga que poderá ser uma boa escola para as empresas. Jorge Valdano, que entrevistámos há alguns meses em Madrid, por exemplo, tira daí muitos ensinamentos para os executivos das empresas. Qual a sua opinião?
Não li a entrevista de Jorge Valdano, pelo que não conheço o contexto em que a afirmação foi feita. Aquilo que posso dizer é que a gestão de uma sociedade desportiva ou de um clube – a forma não é relevante – encerra um conjunto de especificidades próprias do negócio. Por exemplo, gerir recursos humanos numa sociedade desportiva não é o mesmo que gerir recursos humanos em qualquer outra actividade empresarial. A mediatização, a idade e os elevados salários auferidos pelos jogadores exigem uma gestão diferente daquela que é utilizada em outros sectores de actividade. Outro aspecto diferenciador é a relação praticamente institucionalizada de intermediação desenvolvida pelos agentes do futebol, vulgo empresários, na contratação de jogadores e treinadores. Importa referir que a Sporting SAD, pelo pioneirismo que tem assumido em várias frentes, tem sido frequentemente solicitada para vários trabalhos universitários sobre temas diversos (organização, modelo de gestão, práticas contabilísticas, formas de comunicação, relações com o mercado, etc.).
Quem gere o capital humano? Existe a figura do Director de Recursos Humanos?
Dada a especificidade do capital humano numa sociedade desportiva de futebol, a sua gestão não é assegurada pelo Director de Recursos Humanos do Grupo Sporting, mas sim e directamente pelo Administrador Executivo com o pelouro do futebol.
Os casos de indisciplina com jogadores, como os que tantas vezes têm acontecido nos últimos tempos, poderiam ter tido desfechos mais favoráveis com uma cuidada gestão de recursos humanos?
Não entendo que os casos de indisciplina no futebol sejam mais frequentes ou mais graves do que aqueles que ocorrem em outras actividades empresariais. O que acontece é que a mediatização de um problema de indisciplina no futebol atinge normalmente repercussões desproporcionadas, que transformam um pequeno delito disciplinar num acontecimento público de lesa pátria. Muitas vezes, a forma como a comunicação social trata os casos de indisciplina ocorridos com jogadores é nocivo para o futebol português.
Qual a importância das SAD? Que mudanças trouxe o seu aparecimento?
As sociedades desportivas foram criadas na perspectiva de que um novo enquadramento legal para os clubes poderia ser um primeiro passo para a modernização e a profissionalização das estruturas organizativas do futebol, para acabar com o amadorismo dominante nos dirigentes da maioria dos clubes e das organizações que gerem o futebol, criar processos de gestão mais sólidos e responsáveis e um maior rigor económico-financeiro. Como penso ser evidente, não é pelo facto de um clube de futebol se transformar em sociedade desportiva que passa a ser melhor gerido e a ter melhor desempenho desportivo e melhores performances económico-financeiras. O factor diferenciador são as pessoas e a capacidade destas para mudarem práticas, processos e formas de estar no futebol. O quotidiano futebolístico tem demonstrado que entre dirigentes de clubes e administradores de sociedades desportivas não existem formas de actuação diferenciadas; dificilmente se pode dizer que um é melhor ou pior do que o outro. Como disse, a criação das sociedades desportivas foi um primeiro passo para a mudança que se impõe efectuar numa indústria com a importância do futebol. Há que dar os restantes passos para que o futebol se torne numa actividade em que todos os parceiros concorram em pé de igualdade, de forma transparente e credível, em que as suas contas são públicas e auditadas, em que os agentes que gerem o futebol o façam de forma transparente e credível aos olhos dos restantes agentes desportivos e da opinião pública em geral.
Por que critérios de gestão se rege uma SAD? Pelos mesmos que uma empresa tradicional?
Como disse anteriormente, não é pelo facto de ser uma SAD que os critérios de gestão são diferentes dos praticados num clube ou diferentes dos praticados numa empresa pública ou numa empresa familiar. No caso concreto da sociedade desportiva do Sporting, existe um business plan plurianual, o qual foi tornado público no Verão passado, aquando da subscrição pública do empréstimo obrigacionista, no qual são claramente determinados os objectivos desportivos, económicos e financeiros para os próximos cinco anos. A sociedade está cotada no Segundo Mercado da Euronext de Lisboa, tem auditorias permanentes e divulga publicamente as suas contas todos os semestres. Estou seguro de que o futebol só tinha a ganhar se todos os clubes que disputam as competições profissionais de futebol enveredassem por uma lógica de gestão empresarial e que facultassem informação de qualidade sobre os desempenhos económico, financeiro e desportivo.
Havia uma ideia generalizada de que as SAD trariam equilíbrio às contas. Que comentários isto lhe sugere? E como explica os prejuízos?
A paixão pelo futebol e a vontade de ganhar a qualquer preço tem levado os dirigentes de clubes e os administradores das sociedades desportivas a gastarem mais do que aquilo que podem e a gerar défices crónicos de tesouraria e prejuízos avultados. Salvo raras excepções, a emoção tem-se sobreposto à razão, e os resultados estão à vista, com a maioria dos clubes/ SAD a evidenciarem estruturas económico-financeiras largamente deficitárias. Os clubes e as SAD não podem continuar a ser geridos de fora para dentro, com a pressão dos sócios a intrometerem-se numa gestão que se precisa racional e dentro das capacidades efectivas dos clubes/ SAD. A compra de um jogador ou a demissão de um treinador, ou mesmo de um dirigente, não pode estar dependente de uma maior ou menor pressão dos associados. Esta situação é mais gritante quando se trata de sociedades desportivas em que a administração tem de prestar contas aos accionistas.
A redução dos salários dos jogadores é uma das soluções para sair da crise? A solução não deverá passar por algo mais estrutural?
O futebol profissional está numa situação económico-financeira extremamente difícil, sendo a actividade da maioria dos clubes/ SAD largamente deficitária, com custos incomportáveis para os proveitos gerados, assumindo particular importância os custos com o pessoal. Face à relevância que os salários dos jogadores representam na estrutura de custos de um clube/ SAD, constitui uma prioridade reduzir este tipo de encargos, mas esta não é nem poderá ser a solução para todos os males de que padece o futebol. No caso concreto da sociedade desportiva do Sporting, e sem colocar em causa a continuidade na senda dos êxitos desportivos de acordo com o historial do clube e as expectativas dos seus sócios e dos seus simpatizantes, foi definido um conjunto de metas que estamos em crer conduzirão a sociedade ao equilíbrio económico-financeiro; a saber: encontrar soluções criativas geradoras de mais e maiores receitas correntes; haver um esforço continuado na racionalização e no controlo das despesas correntes, com especial ênfase nas relacionados com fornecimentos e serviços externos e com custos com o pessoal; prosseguir o esforço de rentabilização do investimento efectuado na Academia Sporting, em detrimento de investimentos em novos jogadores, prática já conseguida na época desportiva finda; implicar, na sequência da implementação do modelo estratégico e organizativo, a estrutura directiva nas grandes linhas aí definidas, criando uma verdadeira cultura de empresa.
Até onde poderão ir as receitas dos clubes/ SAD? Para além da tradicional bilheteira, dos sócios, da televisão, da venda de jogadores?
Não obstante o período de forte recessão económica em que o país se encontra, e a consequente retracção das empresas e dos particulares em investir no futebol, esta é claramente uma área onde os gestores do futebol têm de ser mais criativos e inovadores. Outro aspecto com enorme importância para a maximização das receitas tradicionais e para o aparecimento de novas fontes de receita está muito dependente da mudança de atitude dos agentes do futebol; o discurso de pressão sobre os árbitros, o indiciamento de suspeitas que depois não são provadas, tudo isso é mau para o futebol. O modelo de desenvolvimento do Grupo Sporting em geral e da sociedade desportiva em particular passa pela exploração de outras áreas de negócio, satélites do futebol, conseguindo desta forma angariar receitas menos dependentes da performance desportiva.
No caso do Sporting, a aposta segura que parece estar a ser feita na formação será mais para vender, e assim ganhar dinheiro, ou para fazer uma boa equipa e assim também ganhar dinheiro?
O Sporting fez um forte investimento numa academia de futebol, convicto de que no futuro uma percentagem elevada dos jogadores do plantel principal serão oriundos das camadas jovens formadas naquelas instalações, as quais são reconhecidas, por todos aqueles que nos têm visitado, como das melhores da Europa. Tradicionalmente, o Sporting tem formado excelentes jogadores, dos quais Figo, Simão, Hugo Viana e Quaresma são os nomes mais sonantes e de maior projecção nacional e internacional. Com a criação de melhores condições de trabalho, como aquelas que são proporcionadas pela Academia Sporting, o desafio a que nos impomos é aumentar a cadência de geração de novos talentos, quer estes se destinem ao plantel principal, quer se destinem a ser cedidos definitivamente a outros clubes nacionais ou internacionais.
E no caso do futebol português em geral?
Penso que de uma forma geral a tendência é para que os clubes portugueses sejam essencialmente clubes formadores, capazes de gerar talentos, para posteriormente os cederem a clubes/ SAD de maior capacidade financeira. Tradicionalmente, os clubes/ SAD chamados de pequenos e médios formam jogadores para serem absorvidos no mercado interno, nomeadamente pelos três grandes do futebol português. Este mercado interno, que num passado recente rendeu mais valias significativas e encaixes financeiros avultados para os pequenos e médios clubes, tem vindo progressivamente a resfriar. Penso ter chegado o momento de estes clubes/ SAD equacionarem a existência de um mercado intermédio, pouco movimentado até aqui, e que resulta das operações que possam fazer entre si, tal como acontece nas principais ligas europeias. Considero que a dinamização de um mercado interno de transferências, inclusive entre os três grandes, só seria benéfica para a evolução do futebol português. Em suma, não nos podemos agarrar aos mercados tradicionais, há que correr em busca de novos mercados.
O negócio do futebol poderá proporcionar bons rendimentos a outras entidades que não os clubes e as SAD? A que tipo de entidades? Bancos por exemplo...
É caso para dizer que não só os bancos, mas todas as entidades a montante e a jusante dos clubes/ SAD ganham dinheiro com o negócio futebol, excepto os próprios clubes/ SAD, o que, parecendo um contra-senso, não é mais do que a realidade do futebol português. Quando anteriormente me referia à necessidade de os clubes/ SAD serem criativos na angariação de novas receitas e de maximização das existentes, tinha como pressuposto a necessidade de procurar junto das entidades que se movimentam à volta do futebol novas áreas de negócio, ou seja, melhor utilização e valorização dos conteúdos futebol.
Aparentemente, o nosso mercado não tem capacidade para gerar negócio para tantos clubes/ SAD, ao dividir-se o bolo por todos a cada um caberá uma pequena fatia. Por outro lado, é necessário haver um número significativo de participantes para haver campeonato. Como resolver este paradoxo?
A capacidade de geração de negócio é diferenciada, depende de vários factores, como a dimensão da massa adepta, o currículo desportivo, a antiguidade, etc., pelo que a divisão do negócio não é, naturalmente, igual. Tal como em outros ligas por esse mundo fora, a distribuição da riqueza é variável; a riqueza gerada por Manchester United, Bayern de Munique, Real Madrid, Barcelona, Inter de Milão, entre outros, não é igual à gerada por outros clubes/ SAD que com eles competem. Tal como nos mais variados sectores económicos existem grandes, médias e pequenas empresas, também no futebol existem grandes, médios e pequenos clubes/ SAD, com capacidades diferenciadas para gerar negócios e também com estruturas de custos diferentes. Um outro aspecto sobre o qual importa reflectir tem a ver com o número de equipas que participam no campeonato da primeira liga (agora designada por Superliga). Será que o actual modelo de 18 equipas é o mais aconselhável do ponto de vista de geração de negócio ou seria aconselhável uma liga com menos clubes/ SAD, eventualmente a três voltas, ou uma liga fechada? Provavelmente, nestes dois modelos alternativos os jogos seriam mais competitivos, com maior entusiasmo, maiores receitas, melhor racionalização dos custos; importa encontrar o modelo que melhor sirva os interesses dos clubes/ SAD. Em conclusão, aquilo que não me parece razoável é que países de dimensões geográficas e populacionais tão díspares como Portugal, Espanha, França, Itália e Alemanha tenham praticamente o mesmo número de clubes/ SAD a disputar o campeonato da primeira liga.
Em relação à cotação em Bolsa, porque não estão as SAD no Primeiro Mercado?
Aquando da subscrição pública das acções das sociedades desportivas do Sporting e do Porto, coroadas de grande êxito, a Euronext Lisboa tornou público ter deliberado favoravelmente a admissão destas duas sociedades ao Mercado de Cotações Oficiais. Entendimento diferente teve a Comissão do Mercado dos Valores Mobiliários, entidade a quem compete a última palavra nesta matéria, que se pronunciou de forma negativa, fundamentando a sua recusa no facto de as duas sociedades não terem dois anos completos de actividade, pelo que não seria possível aos investidores conhecerem as respectivas situações económico-financeira, dificultando a avaliação do risco inerente ao investimento em acções. Em meu entender, este posicionamento da CMVM prendeu-se mais com razões de falta de confiança sobre a solidez da competitividade do futebol profissional português, do que com razões de natureza técnica. Esta decisão foi inclusivamente entendida como um entrave ao projecto de credibilização e modernização do futebol encetado pelo governo, quando impôs aos clubes que se constituíssem como sociedades desportivas. Na sequência das reformas estruturais levadas a cabo na Euronext Lisboa, a sociedade desportiva do Sporting foi recentemente abordada no sentido de vir a ser cotada no Mercado de Cotações Oficiais. Este é um tema que tem vindo a ser estudado no âmbito do processo de reestruturação do Grupo Sporting, não tendo ainda sido tomada uma posição definitiva.
A cotação das acções das SAD do Sporting e do Porto valem sensivelmente metade do valor que tinham à data de constituição. Como explica isso?
Penso que a tendência da evolução da cotação das acções do Sporting e do Porto não diverge da tendência generalizada dos mercados bolsistas nacional e internacional. No caso concreto do sector económico do futebol, além fronteiras a situação não é diferente; veja-se o caso da cotação dos clubes ingleses, que têm no Manchester United o seu expoente máximo, e cuja performance bolsista tem conhecido um movimento descendente. A forte recessão económica e as expectativas futuras desfavoráveis dos investidores têm condicionado o registo de uma melhor performance bolsista. Em termos nacionais, seria importante que mais SAD pudessem ser cotadas em Bolsa, fortalecendo um mercado que actualmente apenas tem três sociedades desportivas, a do Sporting e a do Porto no Segundo Mercado e a do Sporting de Braga no Mercado sem Cotações.
Acha uma boa solução os sucessivos aumentos de capital?
Os aumentos de capital têm que ser entendidos como uma solução pontual e de reforço dos capitais de uma sociedade e não como uma solução de cobertura dos desequilíbrios financeiros consecutivamente gerados por deficiente gestão. Entendo que o aumento de capital deve ser visto como uma solução para dar cobertura a medidas de recuperação de uma sociedade, em que os gestores têm de dar sinais evidentes de mudança e de tomada de acções correctivas, sob pena de não conseguirem a aderência dos actuais e de novos accionistas.
A sociedade desportiva do Sporting deve ser controlada pelo clube?
A legislação em vigor limita a um mínimo de 15% a participação directa do clube fundador e a 40% o seu limite máximo. No caso concreto da sociedade desportiva do Sporting, os estatutos prevêem mecanismos de blindagem que asseguram ao clube o controlo, em assembleia-geral, de um determinado conjunto de deliberações. As sociedades desportivas, umas mais do que outras, e o mercado futebol do ponto de vista empresarial, têm uma história relativamente curta, pelo que penso ser prematuro, nesta fase, admitir-se a possibilidade de as sociedades desportivas não serem controladas pelo clubes.
Os sócios do clube poderão afastar-se gradualmente com a proliferação da SAD?
Penso que não. Aquilo que tenho verificado é que os sócios dos clubes estão cada vez mais identificados com a nova realidade das SAD. Por outro lado, e contrariamente aquilo que se fazia constar de que a criação das SAD levaria à perda da paixão pelo futebol, julgo que nada mudou neste aspecto. A paixão está bem viva e em nada foi afectada pelo facto de se ter mudado a forma de gerir o futebol.
Que análise faz do futebol português, tanto ao nível competitivo como ao nível da gestão?
Conforme referi anteriormente, o actual modelo de competição poderá não ser o mais ajustado para uma maior competitividade desportiva, para o engrandecimento do espectáculo, para arrastar multidões aos estádios. Entendo, também, que a envolvente que rodeia as competições condiciona essa mesma competitividade. A existência de uma opinião pública crítica em relação às instituições do futebol, quer pelas constantes tricas entre os vários agentes desportivos, quer pelas frequentes notícias de falta de transparência de processos, quer pelas práticas de perpetuação de poderes, em nada contribuem para o aumento da competitividade, antes pelo contrário. Em termos de gestão, e de um modo geral, o futebol português evidencia desequilíbrios financeiros crónicos, falta de organização, deficiente informação interna para gestão, insuficiência e deficiente informação para o exterior e inexistência de planos de negócio a médio e longo prazos. Esta é uma área onde a diferenciação entre os clubes/ SAD que disputam uma mesma competição é maior e que carece de uma intervenção urgente e corajosa das instituições reguladores. Como parece ser evidente, há uma manifesta concorrência desleal se uns clubes/ SAD são mais rigorosos e cumpridores do que outros. O actual momento poderá ser decisivo para se imporem as mudanças e as medidas correctivas com vista à indústria do futebol do amanhã, que se pretende competitiva, credível, transparente e mobilizadora. É neste contexto que poderá fazer sentido o sector do futebol ser considerado politicamente como um sector em reestruturação, com a inerente criação de condições favoráveis à inovação e ao aumento da competitividade.
Acha que as entidades, clubes, SAD ou seja lá o que for, com equipas de futebol profissional, serão alguma vez verdadeiras empresas?
A sociedade desportiva do Sporting já funciona como uma empresa e haverá outras SAD que também já o fazem. No entanto, a maioria dos clubes/ SAD ainda não conseguiram dar este salto qualitativo. Mais importante do que funcionar como empresa é a necessidade de os clubes/ SAD e restantes agentes desportivos evidenciarem disciplina empresarial segundo princípios e regras comuns e transparentes e de evidenciarem uma abordagem comum na prestação de informação financeira, com vista à credibilização das estruturas do futebol. Tem de haver claramente uma mudança de atitude por parte dos agentes desportivos, sob pena de mais tarde se virem a lamentar de não o ter feito em devido tempo.

CAIXA
O gestor
Rui Bacelar Meireles, nascido há 43 anos em Lisboa, é licenciado em «Gestão e Administração Pública» pelo Instituto Superior de Ciências Sociais e Políticas (ISCSP).
Entre 1986 e 1997, fez parte dos quadros de uma consultora da área de auditoria, tendo chegado à categoria de senior manager. Realizou trabalhos em mais de meia centena de empresas, em Portugal e em Moçambique, nas áreas de auditoria e consultoria de gestão, tendo ainda sido membro do conselho fiscal de várias empresas e responsável por artigos técnicos num semanário de informação económica.
Em 1995, ingressou no Sporting Clube de Portugal, como assessor do conselho directivo, para colaborar no processo de reorganização interna e no desenvolvimento do projecto «Grupo Sporting». Em 1997, com a constituição da Sporting SAD, ingressou nesta sociedade como director financeiro, sendo mais tarde promovido a director geral para a área «Não Futebol». Desde Outubro de 2002, acumula estas funções com as de administrador executivo da Sporting Gestão, sociedade do Grupo Sporting que tem como actividade a gestão e a coordenação dos serviços que são partilhados pelas empresas do Universo Sporting. No âmbito das funções desempenhadas na Sporting SAD, é o representante da sociedade junto da Comissão do Mercado dos Valores Mobiliários (CMVM) e da Euronext Lisboa.
Quando arranja tempo fora da actividade profissional, joga futebol e squash, além de montar a cavalo. [texto de 2003]