sexta-feira, 4 de abril de 2008

Edição de Abril

Número 68 da revista «Pessoal» – edição de Abril de 2008. Na capa, o chefe Michel. Coloco abaixo o meu editorial…

O outro gabinete
Na capa desta edição aparece uma pessoa que me habituei a ver na televisão, a cozinhar, já há uns bons anos. Desde esses tempo que não o via, e agora notei especialmente duas coisas, o cabelo diferente e o facto de usar barba, ainda que muito curta. Michel, o chefe, abriu recentemente a sua empresa, um ‘atelier’ de cozinha que leva o seu nome e no qual pretende formar novos profissionais da actividade que bem conhece. Mas a entrevista não vem daí; vem, antes, de um texto a que tive acesso – que publicamos junto com a entrevista –, de alguém que assistiu a uma intervenção do chefe na última edição da «Expo’RH», o salão profissional de recursos humanos que anualmente o IFE Portugal organiza. O texto leva como título uma pergunta, «Será que os profissionais de recursos humanos detestam os práticos?», e é seguramente um convite à reflexão. Pelo menos a mim deixou-me a pensar, e levou-me a tomar a decisão de avançar com a entrevista. A um homem que, para aquilo que faz, coloca «em primeiro lugar a paixão», e só «depois a comunicação, a lógica e a técnica», e que diz que sabe gerir mas que não tem paciência, que gosta de estar no seu gabinete a trabalhar e que «gestão é noutro gabinete».
A imagem, confesso, tocou-me, mesmo sendo a minha formação em gestão (ou apesar de). Sempre valorizei mais a ideia de trabalho do que a de gestão, muito pelas experiências que tive, não só em empresas como logo na própria universidade. Embora saiba a importância de gerir. Sempre valorizei mais a ideia de trabalho porque a gestão, por vezes, ao longo da minha vida profissional, deu-me a ideia de ser apenas, digamos assim, um disfarce. Lembro-me de um gestor, num banco, que tinha sempre dois casacos; pendurava um no gabinete e depois, com o outro vestido, lá ia à vida dele, embora oficialmente o primeiro casaco pendurado nas costas da cadeira indicasse que estava algures no edifício, que por sinal era bem grande. Outro gestor, também me lembro, tinha uma frase famosa, «eu não faço, mando fazer», sendo que essa frase traduzia a sua ideia de gestão, e já agora de trabalho.
De qualquer forma, não está nestes dois exemplos, nem noutros ainda piores com que já me deparei, a pessoa que mais me marcou em termos de gestão; pela negativa. Essa pessoa foi um professor, logo no primeiro ano do curso, um professor que na altura já era um gestor relativamente conhecido, que uns bons anos mais tarde seria ministro de poucos méritos e depois novamente gestor. No início do curso dava aquela que se poderia considerar a cadeira de base, uma espécie de introdução à gestão. Era a parte teórica, com todas as turmas reunidas num auditório. O homem chegava, punha-se a escrever a matéria no quadro, alguma dizia-a em voz alta, e no fim ia-se embora, quase sem ter dirigido a palavra aos alunos (o professor da parte prática, o da minha turma, era bem diferente, até falava muito com os alunos, mas a frase dele de que mais me recordo era uma espécie de interrogação: «O que seria o mundo sem burocracia?!»).
Também me fez pensar em tudo isto um outro texto desta edição, o «ponto de vista» de Portugal. Termino com um pequeno excerto desse texto: «Para se verem livres deles, as empresas tiveram que despender enormes quantias em dinheiro, acções, stock options e pagamentos em espécie…»

quarta-feira, 2 de abril de 2008

Entrevista a Rogério Alves

Uma entrevista a Rogério Alves, que fiz em 2006 para a revista «Pessoal». Rogério Alves era então bastonário da Ordem dos Advogados. Falou-se da justiça em Portugal. Na altura, Rogério Alves dizia que daí a 15 anos se poderia julgar o que estava a ser feito. Dois anos já passaram, e se pensarmos na situação agora não parece que se possa dizer que estamos no bom caminho.

Daqui a 15 anos…

Uma reflexão sobre a justiça em Portugal. Rogério Alves, o rosto da Ordem dos Advogados, fala de uma área com «estruturas desadequadas e leis anacrónicas» mas em relação à qual tem expectativas de que o futuro traga mudanças. Não «uma transfiguração da face e do funcionamento», mas «passos seguros, firmes e significativos nesse sentido». Para julgar daqui por uns 15 anos, talvez.

Rogério Alves não quer ser demasiado optimista, acredita é que «há mobilização política para de uma vez por todas se olhar para o problema da justiça» no nosso país. E mudar muitas coisas, mesmo que devagar. «O importante», afirma, «seria que, se me entrevistasse daqui a 15 anos, nós disséssemos que afinal valeu a pena, que temos uma justiça em 2021 bastante diferente da que tínhamos em 2006».
Quando se candidatou a bastonário da OA dizia que queria repor o prestígio da advocacia. Por que é que a advocacia estava desprestigiada?
Repor o prestígio na advocacia não decorre de que houvesse um desprestígio, decorre de a quota de prestígio não ser consentânea com a função social do advogado. É preciso que o prestígio suba ao nível da importância do advogado para o Estado de Direito. O facto de se encontrar a um nível inferior ao que é devido tem a ver com razões de vária ordem. Há tradicionalmente uma prática nociva, embora às vezes apareça com um ar até benfazejo e folgazão, de criticar os advogados, e de achincalhar a sua actividade, em vez de se exaltar a importância da profissão e da advocacia para o Estado de Direito. Portanto, temos uma razão histórica, de moda, que de inofensiva, em geral, se torna por vezes agressiva e ofensiva. Porque em determinados momentos a advocacia assume um grande protagonismo em defesa dos direitos, das liberdades e das garantias e são perfidamente utilizadas essas ideias pré-concebidas contra ela para procurar enfraquecer o seu papel cívico. Essas ideias têm a ver com a circunstância de se imputar aos advogados a vontade de atrasar os processos, os custos muito elevados ou uma menor qualidade ética, o que representa tomar a excepção por regra.
Isso acontece com profissões que têm maior relevância, por exemplo a de médico…
Não há nenhuma profissão que seja alvo deste tipo de críticas, com a intensidade e a regularidade com que a advocacia é. Um exemplo… Lançámos uma campanha sobre a advocacia preventiva e a consulta jurídica, exaltando as suas virtudes como elemento essencial para os cidadãos, de apetrechamento para que a vida lhes corra melhor, para que uma vez informados sobre os seus direitos e os seus deveres, conhecendo os limites da vinculação que assumem quando subscrevem um determinado contrato, o possam fazer após uma ponderação servida pelo conselho útil de quem os pode e deve aconselhar. E muitas pessoas perguntam: mas a consulta jurídica não tem de ser paga? Quando alguém tem sintomas daquilo que pode ser uma doença, uma dor de cabeça persistente, um pequeno sinal que não desaparece, o primeiro conselho que se lhe dá é que vá ao médico. Aí ninguém objecta «bom, mas consultar um médico implica pagar». É normal, é lógico, é óbvio. Por que é que não é na advocacia?
E a culpa do sistema judicial, qual é o seu peso?
O problema é que o advogado faz o interface entre o cidadão e a generalidade das instituições portuguesas para as quais o cidadão se dirige e das quais reclama um determinado funcionamento e um determinado resultado. Os tribunais, desde logo, mas também as câmaras municipais, outras entidades públicas, o Serviço de Estrangeiros e Fronteiras, o Registo Nacional de Pessoas Colectivas, as conservatórias de registo comercial, predial, automóvel e civil, etc. Portanto, o advogado é o intermediário entre o cidadão que requer, deseja e acha que tem direito a algo e um conjunto de serviços públicos que funciona em regra mal, tarde e cobrando preços muito caros. Embora sem qualquer responsabilidade, o advogado aparece como o rosto para o cidadão da inoperância destas entidades.
Quando participa nas cerimónias de abertura do ano judicial, como bastonário, não lhe parece que recua um pouco no tempo?
Bem, por um lado existe apesar de tudo entre os operadores judiciais, como agora se diz, alguma fraternidade. Sabemos que se não é justa a crítica feita aos advogados, imputando-lhes as causas do atraso da justiça, também não é muitas vezes justa a crítica feita aos juízes, aos procuradores e aos funcionários judiciais, imputando-lhes a causa dos atrasos da justiça.
Então onde é que está o problema?
O problema naturalmente estará em alguns desses profissionais, mas está sobretudo em estruturas desadequadas, métodos arqueolosados e leis anacrónicas.
Quem é que pode fazer com que as coisas mudem?
O poder político.
Não seria de esperar que existisse uma sensibilidade maior dos políticos, grande parte da área do Direito, para a necessidade de resolver os problemas da justiça?
Se alguma coisa se adquiriu ao longo dos últimos anos foi essa consciência de que é urgente intervir na área da justiça. Temos o país mobilizado para a reforma do sector, o poder político mobilizado, inclusive o presidente da República, mesmo não tendo funções executivas. Se algo se adquiriu nos últimos anos foi de que a justiça é um sector absolutamente prioritário, e antes não era assim. Se se lembrar do que eram as prioridades há 10, 15, 20 anos, as prioridades após o 25 de Abril, nomeadamente quando havia a canção que falava de paz, pão, habitação, saúde, educação, a justiça não estava lá. Hoje toda gente entende que a justiça é um factor de garantia de qualidade das regras de jogo num Estado de Direito democrático. É uma garantia de combate à corrupção, ao desvio de poder, ao compadrio, à injustiça de uma maneira geral. É um certificado de qualidade do Estado. Uma justiça a funcionar atrai investimento, nacional e estrangeiro, e confere ao cidadão a consciência de que tem de cumprir os seus deveres e de que pode exercer os seus direitos. Não é por acaso que, ao contrário do que acontecia há alguns anos, está a ser movimentada a generalidade dos diplomas, há alguma intervenção nas estruturas, questiona-se o recrutamento, a selecção e a formação de magistrados e advogados, prevê-se uma alteração sensível no mapa judiciário. Portanto, estamos no momento crucial da reforma do judiciário.
Com vários grupos a defenderem os respectivos interesses…
Mas isso é inevitável.
Enfim, nem será o mais correcto dizer «os respectivos interesses», talvez mais «a respectiva situação»…
Vários grupos defendem os seus interesses, os advogados defendem os interesses dos cidadãos. Os advogados não têm interesses grupais que possam ser considerados nocivos no debate sobre a reforma da justiça. Estão na justiça, no sistema judiciário, nos sistemas administrativos, para defender direitos que são de terceiros, os seus clientes, os cidadãos. Para garantirem uma investigação criminal de qualidade mas com garantias, justiça nos concursos públicos, justiça e equidade no tratamento das entidades públicas e privadas, para garantirem ao fim e ao cabo aquilo em que nos países anglo-saxónicos se insiste, e se insiste, e se insiste, que é «the rule of law». Esse é o interesse da OA e dos advogados, enquanto associação pública, que deve colaborar no aperfeiçoamento das leis e do sistema judicial, na defesa dos direitos, das liberdades e das garantias, e por isso no prestígio da advocacia. Juízes independentes, procuradores autónomos, advogados livres e independentes, estas são as condições essenciais para o bom funcionamento do sistema de justiça.
E estamos a que distância desse cenário?
A distância ainda é grande, e este é um dos óbices fundamentais à reforma do sistema de justiça. Ele está muito impregnado de debate político-partidário.
Não lhe parece que vai continuar a estar?
Talvez não.
Não estaremos perante uma fatalidade?
Não é uma fatalidade, pode é vir a acontecer, mas não será por ser uma fatalidade, será porque os agentes políticos – a acontecer – não se terão unido para a contrariar. Não há grandes divergências em matéria de políticas de justiça entre os partidos portugueses, nomeadamente entre os dois principais. Ambos sabem que a reforma do sistema judiciário é uma reforma complexa, demorada e que produz frutos a médio e longo prazo, sem embargo de produzir alguns também a curto prazo. Porque quando se fala, por exemplo, numa reforma dos métodos mediante a introdução da informática, a desmaterialização, isso é uma boa ideia mas que carece de terreno para ser executada, de estruturas, de formação de pessoal. Ora, isto exige um plano de médio e longo prazo que seja consensualizado entre os principais partidos, que tenha as contribuições das pessoas do Direito – advogados, magistrados… –, que tenha a contribuição das entidades que queiram participar neste debate – associações sindicais, associações patronais, etc… –, mas que uma vez encetado não sofra demasiados solavancos nem desvios na sua rota. Agora se o governo que entrar daqui a meia-dúzia de anos quiser pôr tudo em causa para implementar a sua própria política, destruindo o que estava em curso, não consegue construir à mesma velocidade com que destrói.
A desmaterialização, o recurso generalizado a meios informáticos, as instalações condignas, por exemplo, não deveria ser mais resultado de decisões de gestão do que de decisões políticas?
Não. Há decisões de gestão e decisões políticas. Não é uma decisão de gestão o formato do sistema de recursos. E esse formato acarreta a dotação dos tribunais superiores em número de magistrados, em meios, etc. O mesmo para a estruturação da investigação criminal, para a estruturação dos meios de garantia de contraditório num julgamento. Têm é de, face a um processo democratizado, garantístico e que efectivamente consiga garantir o contraditório, as estruturas onde tudo isso se desenvolve ser as adequadas. Depois há incorporação de gestão. Eu não posso alterar uma lei para artificialmente e mediante a ablação dos direitos dos cidadãos reduzir os números de processos. Mas tenho de ter gestão no tribunal-edifício para os processos que existem. E uma das coisas que é fundamental é introduzir-se a figura do gestor do tribunal.
Parece algo óbvio, e o mesmo para uma escola, ou um hospital…
Aliás, eu tenho dito isso e repetido. Fala-se tanto na gestão hospitalar, na gestão das universidades, e não se fala na gestão dos tribunais. O gestor do tribunal devia ter meios para resolver pequenos-grandes problemas que com uma solução relativamente fácil e não muito cara desbloqueariam muito o funcionamento do sistema.
Quem é que gere um tribunal?
Há um sistema rotativo entre os juízes, que dá origem ao chamado presidente do tribunal. Mas o juiz não existe para ser presidente do tribunal, existe para julgar. Não deve estar com uma sobrecarga administrativa sobre os seus ombros. Depois, há os chefes das secretarias, os secretários judiciais, com competências diferentes, mas às vezes um pouco misturadas. Devia haver um gestor do tribunal.
Mais uma vez, trata-se de mudanças óbvias. Isto não revela que tem havido ao longo dos anos um autismo completo dos diversos responsáveis?
Nesta matéria tem havido. É imprescindível a figura do gestor do tribunal – pelo menos nos tribunais maiores, porque não quer dizer que houvesse uma receita única –, com um orçamento do tribunal. Não faz sentido que para comprar papel ou toner seja necessário autorizações superiores infindáveis. A agilização dos procedimentos é fundamental. Hoje, este tipo de decisões às vezes nem se sabe quem é que as pode tomar.
E por que é que acredita que desta é que as coisas vão mudar?
Eu não quero ser demasiado optimista. Mas vejo mobilização política para de uma vez por todas se olhar para o problema da justiça. Não estou à espera de que aconteçam milagres, de que haja uma transfiguração da face e do funcionamento da justiça portuguesa. Estou é à espera de que se comecem a dar seguros, firmes e significativos passos nesse sentido. Temos de ter a noção de que estamos a trabalhar para o tal médio e longo prazo, procurando extrair no curto prazo o máximo de benefícios, que também são possíveis. Basta que se crie a ideia de que a justiça vai efectivamente ser mais rápida para que a litigância de má fé seja desencorajada, pensar hoje que poderá haver uma penalização mais intensa dessa litigância. O importante seria, se me entrevistasse, enfim, na minha reforma, daqui a 15 anos, o importante seria que nós disséssemos que afinal valeu a pena, que temos uma justiça em 2021 bastante diferente da que tínhamos em 2006.
E se continuarmos com a de 2006, o que é que isso pode originar, em termos de funcionamento da sociedade portuguesa? As coisas irão funcionando…
Funcionando vão… Dou um exemplo… A OA tem feito uma intensa campanha em prol da alteração da acção executiva e de dotá-la de meios capazes para a pôr a funcionar. A acção executiva é o meio a que se recorre para obrigar o devedor a pagar aquilo que foi condenado a pagar. A execução é um privilégio privativo do Estado que diz «sim senhor, o senhor não lhe pagou a si e eu vou-lhe cobrar, e se ele não pagar a bem, paga a mal, porque eu faço-lhe uma penhora, faço-lhe a venda do bem e com o dinheiro que resultar pago». Ora, esta acção executiva foi destroçada desde 2003 para cá.
Por quê?
Porque a estrutura legal que foi escolhida para a acção executiva não tinha correspondência em meios no terreno.
Isso é incompetência…
Sim, e má decisão e erro de cálculo grave. Eu próprio na altura alertei várias vezes, não tanto em relação à qualidade científica da reforma, mas quanto à sua implausibilidade. Cheguei a sugerir à ministra de então que suspendesse a entrada em vigor do diploma ou pelo menos o aplicasse transitoriamente só em algumas comarcas. Porque se eu digo que os bens penhorados vão para um armazém, tem de haver um armazém, ou melhor, vários armazéns; porque não se vai levar um fax da Moita para Viana do Castelo porque aí é que existe armazém, alguém tem de pagar o transporte. E se se cria um corpo de agentes que vai executar os actos materiais tendentes à cobrança coerciva, eles têm de existir, têm de estar formados, devidamente distribuídos pelo país, preparados; mas não estão. Depois, se se diz que a partir de agora o requerimento executivo é enviado por e-mail, tem de haver no destino alguém que pegue no e-mail, alguém que o abra, que abra o processo e o faça andar; pois não tinha. A OA ergueu a sua voz contra isto. O governo tinha alguma inércia na abordagem do problema, e nós fomos insistindo, num tema porventura pouco mediático – mediáticos, mesmo mediáticos, são os processos criminais. Ou seja, houve uma chamada de atenção muito intensa, um grito de revolta da advocacia portuguesa, em nome dos seus clientes, que diziam: «senhor doutor, o tribunal condenou o senhor B a pagar-me tanto, ele não paga e nada acontece, e continua a haver desculpas de que o solicitador de execuções ainda não tem o processo, que ainda não há isto, que não há aquilo». O governo lançou algumas medidas tendentes a suavizar o problema, que tiveram algum efeito, mas a OA disse logo que era claramente insuficiente, e agora o governo prepara mais algumas medidas. O ritmo é este.
Imaginando que a situação da justiça tendia para níveis ideais, iria haver lugar para todos os advogados que temos?
Quanto melhor a justiça funcionar, melhor para os advogados. Para conseguirem resolver os problemas às pessoas, que ficam satisfeitas quando isso acontece. Os advogados vivem do seu trabalho, da resolução de problemas. Não há dúvida de que Portugal tem um número de advogados que se pode considerar excessivo, mas também muitos desses advogados não estão no exercício efectivo da profissão.
Como concilia o papel de bastonário com o trabalho de advogado?
Eu posso exercer a minha actividade de advogado, mas o tempo é muito menor porque há um consumo horário muito grande pela OA. Utilizo muito do meu tempo em actividades da OA, representando-a, reunindo com colegas, fazendo o despacho diário. Acrescenta-se à actividade profissional tout court uma actividade muito absorvente, porque o volume de trabalho que a OA tem é copioso, e desconhecido da generalidade dos cidadãos.
O advogado, enquanto profissional liberal, não estará em vias de extinção perante a prevalência cada vez maior dos grandes escritórios, em que os advogados que aí trabalham se aproximam cada vez mais do trabalhador por conta de outrem?
Ao trabalho em grandes sociedades de advogados por vezes é associado esse risco. Creio que compete aos advogados, na sua organização societária, garantir a independência. Não podemos confundir o que se passou agora em Espanha, em que o modelo da actividade dos advogados em sociedades foi assimilado para efeitos nomeadamente assistenciais ao modelo do trabalho por conta de outrem; isso não significa que o advogado perca a sua independência quando trabalha numa sociedade. E eu estou certo de que a consciência da generalidade dos advogados tem justamente sentido único, não perder a independência.
Qual é a situação a nível de processos disciplinares na OA?
A OA tem competência disciplinar exclusiva sobre os advogados. No que diz respeito a matéria disciplinar, não no que diz respeito a responsabilidade civil ou a responsabilidade criminal. Para haver um processo, pode haver uma queixa ou não, pode haver uma deliberação do próprio órgão disciplinar que instaura um processo mesmo sem haver queixa, se assistir ou tiver conhecimento de uma prevaricação. Muitos outros processos nascem de queixas.
Queixas de quem?
De clientes, da parte contrária, de outros advogados, dos tribunais, de juízes, de colegas, enfim… E muitas dessas queixas não têm relevância disciplinar. Como aliás acontece com a maior parte das participações disciplinares em Portugal. O direito à indignação verteu-se muito no direito à queixa e no direito potestativo de impor ao visado um processo – «tem um processo a correr contra ele». Há uma forma muito lesta de as pessoas apresentarem participações disciplinares. Claro que isso depois dá origem a um processo, a uma autuação, a um contraditório, às oportunidades de defesa, ao julgamento, e tudo isso atrasa a tramitação dos processos. Portanto, a resposta em termos de velocidade, apesar do trabalho absolutamente fantástico que os órgãos disciplinares da OA desenvolvem, é que temos de apostar muito mais na profissionalização desse sector, ou seja, na contratação de mais advogados para colaborarem com os órgãos disciplinares da OA na tramitação, na movimentação e no despacho dos processos.
Na sequência da Declaração de Bolonha, a OA vai aceitar para o ingresso no estágio para o exercício da advocacia a licenciatura em Direito de três anos, ou só para quem fizer o chamado «três mais dois», ou seja, licenciatura mais mestrado?
A OA tem como opção básica os «três mais dois». Parece-nos a mais razoável. A OA não quer aceitar a inscrição de licenciados em Direito se a licenciatura tiver apenas três anos. Entendemos que devem manter-se os cinco anos de formação básica, que serão estruturados de acordo com os dois modelos alternativos que têm sido discutidos, «quatro mais um» ou «três mais dois». Parece-nos contudo que, de entre os dois, o «três mais dois» será porventura o mais adequado, fazendo da licenciatura uma via de acesso a carreiras profissionais que não a magistratura nem a advocacia. Por exemplo, funcionários judiciais, funcionários de conservatórias, registos e notariado, quadros das polícias, do Ministério dos Negócios Estrangeiros, da administração seriam licenciados em Direito. O acesso à advocacia e às magistraturas deveria impor mais dois anos de frequência, mesmo que nesses dois anos não fosse obtido o mestrado, fosse admitido um grau intermédio de dois anos de frequência para além da licenciatura, o qual permitisse a emissão de um diploma habilitando à inscrição na OA. Manter-se-ia cinco anos de estudos, três de licenciatura e dois de formação superior orientada para uma determinada profissão.
As pessoas da área jurídica estão sensibilizadas para a mudança que irá acontecer?
Ainda não há muita sensibilidade.
Mas vai haver uma mudança…
Sim. Aqui é uma mudança imposta, à força. Creio que ainda não há muita sensibilidade. Mas é preciso distinguir… As pessoas com responsabilidades, nomeadamente, neste caso, no governo, na OA, no Centro de Estudos Judiciário, nas universidades, estão já despertas para a situação. Temos vindo a trabalhar na procura de soluções que possam depois ser transpostas para a lei. A lei vai ter de contemplar inúmeras matérias. O que define quem entra na OA é a lei, de forma que a OA coloca sobre a mesa as condições que considera inafastáveis relativamente ao acesso à profissão. Já o cidadão português não está muito sensível para o processo de Bolonha, que por vezes é tratado como se fosse apenas uma mudança de nomenclaturas e de duração de cursos, quando vai muito para além disso. Pressupõe uma igualização dos sistemas de formação em toda a Europa, que faz com que os alunos possam ter equivalências nos vários países da União Europeia, através dos créditos que vão obtendo. Impõe ou pressupõe uma formação virada para o exercício de uma determinada actividade profissional, de uma determinada competência. Obriga a rever o velho molde académico do ensino universitário, aquilo a que se chama um ensino um pouco sebenteiro. E impõe como lógica uma formação contínua para além dos graus de formação, ou seja, que após a formação inicial dada pelos dois ciclos previstos – licenciatura e mestrado – haja uma formação contínua.
E as universidades da área de Direito, como estão a lidar com a situação, sendo também elas próprias tradicionalmente associadas ao ensino sebenteiro que mencionou?
Vai haver grandes surpresas, porque muitas universidades, mesmo as mais tradicionais, estão a fazer um grande esforço de conversão. São dirigidas hoje por pessoas muito sensíveis ao espírito de Bolonha, capazes de apreender as obrigações derivadas desta resolução e dos diplomas actualmente em vigor.
Por que é que a justiça tem sido ultimamente tão mediatizada?
A justiça sempre foi muito aliciante para os media, para a comunicação, para notícias de jornal; houve casos antigos que atraíram muitas atenções, o da herança Sommer, antes do 25 de Abril, depois vários outros como o da Dona Branca ou o caso Melancia. Só que nunca se chegou ao ponto em que se está actualmente. Isso resulta da convergência de vários factores. Em primeiro lugar, hoje há muito mais comunicação, mais televisões, mais rádios, há muitos jornais também, portanto, há mais meios de divulgação. Em segundo lugar, a justiça entrou realmente na ordem do dia, muito a reboque de algumas figuras públicas que estiveram e estão envolvidas em processos judiciais. A circunstância de haver uma figura pública, arguida num processo judicial faz desde logo atrair a atenção para esse processo. Ele é seguido quase como folhetins sucessivos de uma determinada sequência de actos. Para as televisões, para as rádios e para a imprensa é matéria apelativa, atractiva, matéria que vende. E como o assunto está na ordem do dia, há pessoas envolvidas e a matéria em si está sobre a mesa da discussão – a matéria da justiça e da investigação criminal – criou-se aqui uma convergência de factores que arrastou para uma mediatização dos próprios agentes, porque a mediatização arrasta o debate, o debate implica uma presença de pessoas nos meios de comunicação para debater, os debates por seu turno suscitam respostas, réplicas. E, por último, há uma outra razão, que é importante… Ao contrário do que era a tradição em Portugal, começou a escrutinar-se de forma sistemática a actividade dos agentes judiciais. Começaram a ser debatidas publicamente sentenças de tribunais, promoções do Ministério Público, alegações de advogados, tomadas de posição sistémicas, críticas avulsas, tudo foi lançado no debate público. E depois é como aquilo que ateia. Porque quando alguma coisa ateia, depois gera resposta, réplica, controvérsia, e isso só por si auto-alimenta a manutenção dos media.
E nesta evolução qual será agora a tendência?
Bom, a mediatização teve a vantagem significativa de trazer o assunto para o debate. E foi importante que a opinião pública portuguesa tomasse consciência, por exemplo, da importância da investigação criminal, dos meios relativos a essa mesma investigação. São assuntos de interesse público, da vida dos cidadãos. Não pode ser indiferente a qualquer cidadão a forma como o Estado se organiza para combater a criminalidade organizada, ou como é que ele, cidadão, se defende de uma investigação abusiva, ou como se articula a reserva da intimidade da vida privada, como se articula o direito ao bom nome, à reputação, à vida familiar, com a necessidade do Estado de por vezes se intrometer na vida das pessoas para defender interesses que têm a ver com o combate à criminalidade organizada, etc. Se isto irá em crescendo ou não, é difícil prever, mas acredito que a justiça se irá manter como tema, embora porventura mais em lume brando, ainda durante alguns anos.
Como é que comenta a participação dos media nos próprios processos?
Não há uma participação efectiva… Essa questão suscita várias preocupações. Em primeiro lugar, é preciso distinguir investigação jornalística de investigação criminal. Há uma investigação que é feita pelos media, pelos jornalistas, e há uma outra que é feita pelos órgãos próprios da polícia criminal e dirigida pelo Ministério Público e com intervenção do juiz de instrução quando é caso disso. Depois, há necessidade de cumprir a lei e de respeitar a ética e a deontologia. Os julgamentos na praça pública derivam muitas vezes de um comportamento por parte de alguns órgãos de comunicação social que viola as regras éticas, que não promovem o contraditório, que divulgam de forma abundante indícios de culpabilização, criando uma imagem de culpa relativamente a determinadas pessoas, e não compensam essas notícias com elementos que as contradigam e até com uma eventual absolvição. A absolvição quase nunca é notícia, os indícios de culpa são sempre muito mais notícia.
No caso Apito Dourado, o arquivamento de alguns processos foi notícia…
Mas o arquivamento não é a absolvição. E aí muitas vezes procura-se criar a convicção de que o arquivamento foi errado. Muitas vezes, as pessoas têm alergia aos arquivamentos.
Aquela história dos poderosos…
Exactamente. Muitas vezes, quando se anuncia o arquivamento não é para dizer «afinal, o senhor não era culpado», é para transmitir a ideia inversa, «o senhor, que todos achamos que é culpado, viu o seu processo ser arquivado». E esta manipulação das ideias, esta força terrível que a comunicação social tem para formar a consciência colectiva relativamente a pessoas e a comportamentos, e que muitas vezes pode ser utilizada para tentar condicionar os tribunais, tem de se conter em regras éticas e deontológicas muito precisas e tem de ser sancionada quando causa estragos na personalidade de alguém. Esse será o debate do século XXI, indiscutivelmente.
Por que é que o segredo de justiça é violado?
Porque há quem o viole.
Mas o que é que leva a isso? A violação é feita de forma sistemática…
É verdade. O segmento de processos e o número de processos em que é noticiada violação do segredo de justiça é pequeno. Há milhares de processos que estão neste momento a coberto do segredo de justiça e dos quais não se fala. Depois, há uma segunda questão… Às vezes, a violação do segredo de justiça serve determinados interesses – mas isso teria de ser analisado em concreto –, para tentar antecipar conclusões, tentar transmitir a ideia de culpa, ou de inocência. E depois ainda há um problema grave, que é o de haver segredo de justiça a mais, ou seja, o segredo de justiça dura tempo a mais em processos a mais. E o que dura tempo a mais em processos a mais é mais facilmente violado. Porque há demasiada informação a coberto do segredo de justiça que não devia estar, há demasiados processos ainda sob a alçada do segredo de justiça que não deviam estar… Atinge-se mais facilmente um alvo grande do que um alvo pequeno e cientificamente bem protegido. Mas faço uma pequena advertência… Às vezes as pessoas falam em violação do segredo de justiça em coisas que não o são, porque falar-se no assunto não quer dizer que se esteja a falar do processo. Se alguém receber uma carta considerada difamatória e for à televisão dizer «fulano tal escreveu-me esta carta, vou participar dele porque ele escreveu isto e isto e isto». Bom, essa carta depois vai instruir no processo, processo que fica em segredo de justiça, mas toda a gente conhece o teor da carta. Portanto, às vezes também se confunde um bocadinho violações do segredo de justiça com informações sobre um processo que está em segredo de justiça mas que elas próprias não estão em segredo de justiça. Agora que há violações do segredo de justiça, há. Que por vezes elas têm intenções mais ou menos óbvias, têm. Que por vezes têm como intenção básica condenar pessoas na praça pública, têm, porque lançam suspeitas sobre quem não se pode defender. Daí que a discussão sobre as relações entre os ‘media’ e a justiça e a investigação criminal, e os limites a impor do ponto de vista ético e deontológico, com todo o respeito pela liberdade de expressão à actividade jornalística e à actividade dos demais agentes, seja fundamental.
Pode dizer-se que na justiça o mais difícil tem sido guardar segredo?
Não diria isso. O que há é segredos a mais. E quando há muitos segredos para guardar, é natural que haja mais fugas. Por outro lado, não tem havido um combate eficaz a essa violação.

Rogério Alves (n. Lisboa, 1961), casado e pai de dois filhos, é licenciado em Direito pela Universidade Católica Portuguesa (UCP), exercendo a actividade de advogado desde 1987. Foi vogal do Conselho Distrital de Lisboa da Ordem dos Advogados entre 1993 e 1995 e membro da Comissão Nacional de Estágio (em representação do Conselho Distrital de Lisboa) nesse triénio. Foi ainda presidente do Conselho Distrital de Lisboa da mesma ordem entre 2002 e 2004, sendo o actual bastonário (triénio 2005/ 2007). É autor de diversos textos de opinião sobre questões jurídicas e outras questões da actualidade, publicados em diversos órgãos de comunicação social, proferiu várias palestras e conferências sobre questões ligadas ao direito e à justiça (nomeadamente em universidades) e participou em diversos debates, seminários e iniciativas similares como orador convidado. Foi orador no curso sobre «Jornalismo Judiciário» da UCP (2003/ 2004) e no curso de pós-graduação em «Mediação e Justiça Restaurativa» do Instituto Superior de Educação e Ciências (2004). É professor convidado da UCP para reger o seminário de «Retórica Forense», do quinto ano do curso de «Direito». É presidente da Assembleia Geral do Sporting Clube de Portugal. [texto de 2006]