domingo, 15 de abril de 2007

A nossa educação

Coloquei no meu outro blog (Floresta do Sul), um texto sobre o livro «Trinta Anos de Democracia – E Depois Pronto», de Clara Pinto Correia. Fi-lo a propósito de se aproximar mais um aniversário do 25 de Abril. Pouco tempo depois da saída do livro, entrevistei Clara Pinto Correia; o tema não era o livro em si, mas a educação que temos em Portugal – é a entrevista que está abaixo.




Entrevista a Clara Pinto Correia
Esta duvidosa pátria

Uma professora universitária com um percurso assinalável tanto em Portugal como nos Estados Unidos, e ao mesmo tempo uma das figuras mais notáveis da literatura portuguesa, com uma obra tão vasta quanto diversificada. Clara Pinto Correia, autora de um sermão sobre o Portugal democrático, concentrada aqui naquilo que vai sendo a nossa educação, mas sem perder de vista, obviamente, uma pátria a que há muitos, muitos anos, alguém chamou ditosa.

O sermão chama-se «Trinta Anos de Democracia – E Depois Pronto», foi editado pela Relógio D´Água» e de Portugal apresenta uma visão lúcida, sem meias palavras e, obviamente, clara, ou não defendesse a autora que uma das competências a desenvolver nas escolas é a capacidade de expressão. A nossa educação, por Clara Pinto Correia.
Portugal aparece em vários relatórios como o país da União Europeia com a mais alta taxa de abandono escolar e um dos piores níveis de qualificação profissional. Mais, o ensino universitário parece fornecer cursos que não são suficientemente relevantes para as necessidades do mercado de trabalho. Tem alguma explicação para termos chegado a esta situação?
Todas as explicações possíveis são apenas tentativas de aproximação ao fenómeno, mas, a esse título, posso avançar pelo menos duas. As vicissitudes da má preparação universitária para o mercado de trabalho real, sobretudo a nível do ensino público, prendem-se certamente com o facto de esta área não ter sofrido qualquer remodelação em 30 anos de democracia. Abriram universidades novas, com cursos novos, mas não se procedeu a qualquer mudança estrutural profunda que implicasse mesmo uma postura e um estado de espírito inovadores em relação ao ensino superior: mantiveram-se as coutadas, os territórios, a animosidade entre grupos que exploram áreas aparentadas e entre os quais deveria antes existir um espírito feliz de colaboração, toda a gente se agarrou com unhas e dentes ao seu pequeno estatuto e, a partir daí, a prioridade foi sempre evitar que pessoas novas pudessem fazer sombra às pré-existentes. Nunca se instituiu, minimamente, o espírito de meritocracia que deveria presidir à vida académica, o de progredir na carreira quem merece pela qualidade da sua investigação e da sua docência, sendo afastado quem não se dedica suficientemente à causa. Em consequência, temos uma vida académica pobre e com muito pouca flexibilidade. A taxa de abandono escolar e a má preparação profissional terá de certeza a ver com a falta de cuidado com que se abriu o ensino para todos, logo a seguir à Revolução, e se subiu a escolaridade obrigatória até ao nono ano. É muito bonito termos acesso gratuito ao ensino até um nível adiantado, mas é impossível oferecer este ensino com eficácia e qualidade se não se fizer um investimento maciço nas infra-estruturas e nos recursos humanos. Em consequência, Portugal ficou cheio de escolas pré-fabricadas extremamente feias e desconfortáveis – algumas, aliás, já a começarem a cair, como aconteceu com a escola onde andam os meus filhos –, com turmas ridiculamente sobrelotadas, pouquíssimo suporte técnico das bibliotecas aos laboratórios, entregues a professores que não estão todos devidamente qualificados para o esforço enorme que se lhes pede, nem recebem da sociedade reconhecimento suficiente para tornarem a sua profissão gratificante, e ainda por cima auferem um ordenado que certamente não atrai os mais brilhantes e mais qualificados. Para piorar o cenário, a maior parte destes barracões pré-fabricados foi construída em zonas periféricas, distantes dos centros urbanos – onde, obviamente, o valor imobiliário do terreno é muito maior –, em áreas de armazéns, realojamentos e zonas industriais. A separação dos alunos do meio em que vivem e o seu isolamento em lugares incaracterísticos no meio de parte nenhuma é obviamente propícia à criação de bolsas de criminalidade e de transacções ilegais, que não contribuem, decerto, para a estabilidade emocional de ninguém. Junte-se a isto que nunca houve uma reflexão suficientemente séria, consistente e continuada sobre o que é que se pretendia ensinar aos alunos até ao nono ano, veja-se a confusão monumental que são os livros de texto despejados sem critério de crivo de qualidade para o mercado e compreenda-se, urgentemente, que a situação é verdadeiramente explosiva e precisa de uma verdadeira volta.
Tendo em conta a análise que fez, como convive com o nosso meio universitário, onde está integrada, e com o facto de os seus filhos estudarem numa escola pública?
Com o meio universitário, procuro conviver da forma mais saudável e produtiva possível, se bem que em grande medida tomar uma atitude destas implique a quadratura do círculo. O meio é malsão, por excelência. Séculos e séculos de coutadas, intrigas, consanguinidades e golpes palacianos não se descartam das instituições com facilidade, e a imutabilidade deste aspecto da vida universitária fica bem demonstrada com a sobrevivência intacta destas supra e infra estruturas depois da Revolução. A única atitude saudável é não dar por nada disto, viver-se alheado das intrigas de corredor, passar-se pouco tempo no café e, sobretudo, não alimentar falatórios. Com o tempo e a energia que poupamos se nos recusarmos a pertencer à parte medíocre e videirinha do sistema, podemos fazer coisas muito úteis, muito giras, que nos dão imenso gozo a nós, e também aos nossos destinatários. Desde que regressei dos Estados Unidos, montei de raiz uma licenciatura e um mestrado, uma série de intercâmbios sobretudo com universidades norte-americanas, um laboratório de investigação, um programa de interface com as escolas secundárias, uma pós-graduação em História da Ciência, um centro de investigação em que se trabalha a sério, um encontro de Verão na Arrábida com vários especialistas internacionais, uma sessão de conferências anuais abertas ao grande público na Culturgest, uma colecção de livros especificamente de História da Ciência, e comecei agora a leccionar um workshop de Escrita e Comunicação para Biólogos que tem sido muito estimulante para mim e para os alunos. Claro que, de certa forma, tenho o benefício de estar a trabalhar numa universidade privada, onde as condições de trabalho poderão ser fisicamente mais limitadas mas, em contrapartida, a nossa margem de manobra é muitíssimo maior. Pelo que oiço contar aos meus colegas e amigos das universidades públicas, estou bastante protegida da influência nefasta da intrigalhada de gabinete e da falta de nível de uma actividade que se pauta toda única e exclusivamente pela fixação de progredir na carreira. Fiz questão de prestar provas de agregação na Universidade de Lisboa, em 2004, e o muito que vi e ouvi nessa altura deixou-me sinceramente perplexa em relação aos parâmetros pelos quais a maioria dos nossos catedráticos parece aferir o valor das pessoas. Mas também percebi que há imenso espaço e bons recursos humanos para levar a cabo projectos de grande qualidade. E utilidade, repito. A universidade funciona pior quando só está virada para si própria. Acredito na importância da torre de marfim que protege o conhecimento académico, mas a torre não pode ser confundida com a totalidade do edifício.

Quanto a ter os meus filhos numa escola pública… Pelo que me diz respeito, não andei a fazer a Revolução para depois trancar a sete chaves os meus meninos num ambiente rarefeito e protegido da realidade, onde não entram, entre aspas, os pobres, os ciganos, os pretos, nem o que quer que seja que possa trazer consigo inquietação e diferença. Quero que eles conheçam desde cedo o país tal como ele é, e sobretudo que se familiarizem desde cedo com um fenómeno que para a minha geração é novo e surpreendente, ao ponto de nem sabermos muito bem como lidar com ele, mas que para a geração dos meus filhos vai ter que ser um dado adquirido: o Portugal de hoje já é um grande ponto de confluência de emigração vinda de todos os quadrantes do mundo, e essa tendência vai acentuar-se. Dito isto, tenho também a certeza absoluta de que os professores das escolas públicas são, por regra, muitíssimo melhores, e melhor preparados, do que os professores das escolas privadas. Existem grandes marcas de bom ensino secundário privado, como o Charles LePierre ou o Saint Julian's, mas dizem respeito a um sistema de ensino importado do estrangeiro e replicado em Portugal com todas as suas idiossincrasias específicas. E eu diria que estas são as excepções, e não a regra. Por regra, frequentar o ensino privado tem a ver sobretudo com garantir aos pais que os filhos estão mais protegidos e são mais vigiados, que as aulas começam impreterivelmente no início de Setembro e há prolongamentos de várias denominações até ao fim de Julho e que, se necessário, o horário é das oito da manhã às oito da noite. Ou seja, a qualidade da docência não é uma prioridade. Nada nos garante que apareçam a dar aulas pessoas sem licenciaturas, sem estágios, eu diria até sem outras qualificações que não a de serem amigos ou familiares da direcção. E isso é sinistro, até porque é muito pouco policiado. Tal é o medo que os portugueses de hoje têm do mundo que está à volta deles.
No seu livro «Trinta Anos de Democracia – E Depois, Pronto», a certa altura é particularmente crítica em relação às universidades portuguesas, o que acabou agora de reforçar. Conhecendo as universidades portuguesas, e conhecendo também o meio universitário norte-americano, peço-lhe que identifique as principais diferenças e, já agora, as implicações?
O meio universitário norte-americano é extremamente flexível, tem uma liberdade total de manobra porque o que determina a validade ou não de cursos e de universidades é a qualidade dos alunos que de lá saem, oferece aos alunos a possibilidade de cumprirem uma formação muito mais livre e pessoalizada, e, principalmente, está tudo montado para funcionar, e funcionar muito bem. Chegamos lá a uma universidade pública – quando aqui as públicas são sempre as mais pobrezinhas e com menos meios – e a biblioteca geral é uma torre de 12 andares pejada de livros, enquanto à volta do campus há residência universitária atrás de residência universitária. E há sempre, obrigatoriamente, um serviço de saúde gratuito para todos os alunos, professores e funcionários. A atribuição de moradas de e-mail a toda esta gente é automática, e toda a divulgação interna ou externa funciona em pleno. O ambiente geral é extremamente descontraído e o ensino está muito mais vocacionado para treinar os alunos para conseguirem pensar e serem rápidos a resolver problemas. Há empregos especiais dentro de cada campus para permitir aos alunos receberem salários ou dispensarem propinas, e uma grande actividade tanto de docentes como de discentes. Última benesse: ninguém tem o emprego assegurado para o resto da vida até atingir o full professorship, sendo necessário várias provas e peritagens de qualidade até se chegar lá – pelo que ninguém pode pôr-se a dormir à sombra dos louros e deixar de estar alerta. São muitas lições de qualidade para absorver e digerir.
Ainda em relação ao seu livro… A sua visão de Portugal é particularmente desgostosa, de qualquer forma apresenta no final algumas coisas que todos poderíamos começar a fazer. Em relação à educação, é capaz de também apontar algumas coisas que pudéssemos começar a fazer, cada um de nós?
Sem dúvida. Encorajar os alunos a ler livros. Incluir hábitos de leitura e de expressão oral e escrita nos programas dos cursos. Conceber e implementar métodos criativos de avaliação contínua que desencorajem o empinanço e encorajem o raciocínio. Incluir os alunos nas actividades tanto da investigação dos docentes como na manutenção dos materiais necessários para o curso. Premiar boas actividades extra-curriculares e os alunos que as frequentam. Manter um horário regular de atendimento aos alunos, e encorajá-los a tirarem partido dele. Isto para começar, e já seria muito bom.
E se fosse ministra responsável por essa área, quais seriam as suas prioridades?
Depende de se estamos a falar de toda a educação ou apenas de ensino superior. A minha política para o ensino superior seria sobretudo vigiar com mão de ferro a remodelação dos cursos de acordo com as decisões de Bolonha, no sentido de impedir fraudes, evitar a simples compactação em vez da abertura do espectro e manobrar do sentido de as universidades públicas respeitarem as decisões da comissão que está encarregue de definir as linhas-mestras para o desenvolvimento destes novos cursos em Portugal, em vez de abusarem da autonomia universitária para fazerem o que mais lhes convém. Também seria importante agilizar e flexibilizar o processo de abertura de novas licenciaturas, de novos mestrados, e investir bastante na criação de verdadeiros programas de doutoramento. A educação, em geral, precisava de investimentos ainda mais dramáticos, que vão da estimulação da carreira docente à promoção de reintegração da escola na sociedade, passando pela criação de boas redes de bibliotecas, pelo encorajamento de colaboração entre universidades e ensino secundário para demonstração ao vivo de processos estudados nos livros de texto, pelo incentivo à frequência de bons cursos de formação contínua para os professores, pela recriação da figura do médico escolar que tem um gabinete na escola e aí funciona em blocos horários fixos para apoio directo a alunos e professores, pela introdução obrigatória de pelo menos um profissional de acompanhamento psicológico de pais, alunos e professores por escola, pelo melhoramento sério da qualidade das instalações e dos acessos, pelo oferecimento de actividades de ocupação dos tempos livres dignas desse nome, por assegurar o apoio de um especialista em ensino especial por ano, ou pela redução do tamanho das turmas ou a adopção do formato de dois professores por turma. Além de tudo isto, como já disse antes, seria preciso controlar o desatino dos livros de texto e definir com seriedade e eficácia o que é fundamental ensinarmos aos meninos e jovens na sua escolaridade obrigatória. E fazer esta parte bem feita. Com muito menos matéria, e muito mais incentivo ao entendimento, à reflexão e à capacidade de síntese e de expressão.
Por que é que temas como este da educação – tal como outros, a inovação ou a produtividade, cuja necessidade de promoção parece igualmente óbvia – são tão caros aos políticos dos mais diversos quadrantes, acabando quase sempre no esquecimento depois da época de eleições?
Porque toda a gente sente na pele, de uma maneira ou de outra, que o nosso ensino funciona mal. Portanto, prometer melhorias nesta frente é uma fórmula garantida para atrair simpatias eleitorais. A seguir, como mexer em todo este castelo de cartas é extremamente complicado, a tendência, de facto, é para não se fazer grande coisa.
Falou há pouco das decisões de Bolonha. Qual a sua opinião sobre este processo?
Estamos a falar de um fenómeno que vai abranger toda a Europa comunitária, portanto a minha opinião pessoal não é relevante. Relevante é que isto vai mesmo acontecer, e nós temos que estar preparados com boas ofertas de bons cursos, para podermos atrair todos os estudantes de países mais ricos e diferenciados mas que não tenham um clima tão bom como o nosso.
Acaba por ser uma grande reforma para o ensino, no caso o ensino superior, e vem da Europa. Acha que poderá acontecer o mesmo noutras áreas – por exemplo, na fiscalidade, ou na justiça –, acabando por ser a Europa a disciplinar-nos?
Não acho. Tenho a certeza. Só espero é que por «Europa» possamos realmente entender «todos nós».
No seu livro começa por escrever: «Eu tinha 14 anos no 25 de Abril./ Foi muito bom.» Só que umas linhas a seguir vem um «mas» e a tal visão desencantada. Imagine que daqui a 10 anos escreve um outro livro, um outro sermão, sobre o que terá sido Portugal… Imagine que começa por dizer: «Eu tinha 25 anos quando Portugal entrou para a então denominada Comunidade Económica Europeia.» Consegue, agora, ter alguma ideia do que poderia, ou poderá, escrever a seguir?
Embora as pessoas mais sérias e responsáveis do país estivessem convictas de que essa era a nossa melhor via de crescimento, e mesmo admitindo que o dito país não tinha, à época, muito mais para onde se virar, penso que o nosso lamento de hoje só pode ser o eco do lamento dos vários países mais periféricos da União Europeia: enquanto se estabeleciam acordos e protocolos de homogeneização, ninguém se lembrou de celebrar a importância da diferença. Um país mediterrânico não deve parecer-se com um país do norte da Europa, assim como um país do leste não tem nada a ganhar em parecer-se com a Turquia, tal como não é conveniente que exista nenhuma outra nação semelhante aos Estados Unidos, embora seja bom os Estados Unidos existirem. Não é que a Alemanha ou a França ou a Dinamarca tenham vícios horríveis de carácter infecto-contagioso, mas é tão-somente que o interesse e a riqueza numa confederação de estados reside exactamente na fruição das especificidades de cada estado-membro. Portugal, com a sua característica passividade e a sua proverbial insistência doentia na visão de curto prazo, absorveu muitos defeitos sem absorver virtudes, esbanjou dinheiro onde devia ter investido economias, entregou-se de bandeja aos interesses alheios, e acabou transformado num lugar amorfo, desfigurado, sem personalidade, onde o Algarve é igual a qualquer estância balnear ranhosa de Espanha ou de França ou mesmo de Malta, o conceito de «parque natural» parece ser o de terras deixadas ao abandono sem qualquer espécie de guia ou sinalização, a máfia do betão ganhou fortunas a erguer torres de apartamentos e condomínios de luxo, ao mesmo tempo que destruía para sempre paisagens milenárias, e quando vamos a ver o que é que pomos na mesa ao fim do dia as azeitonas vêm da Grécia, os figos secos de Itália, o queijo vem da Escandinávia e o vinho é francês, para não falar das rolhas das garrafas que já há muito tempo que deixaram de ser fabricadas com a nossa cortiça em favor de um polímero sintético de aspecto e textura semelhantes, com patente registada na Califórnia e fábricas a funcionar na Coreia e na China. Houve quem ainda sonhasse com o papel fundamental de charneira que os portugueses iriam ter na interface entre a Europa e legados culturais riquíssimos, como o do Brasil, ou riquezas naturais vastíssimas, como as de Angola e Moçambique. Como também neste domínio ninguém fez nada, os brasileiros voltaram-se rapidamente para os espanhóis, os moçambicanos adoptaram o inglês como língua oficial, e dificilmente se encontra uma empresa a funcionar em Angola que não seja maioritariamente norte-americana. Para os portugueses, o que é que ficou? Alguns empregos precários em multinacionais estrangeiras, ao que parece.
Gostava também de pedir-lhe que comentasse três situações. Primeira, no seu livro refere o êxito dos portugueses no estrangeiro, citando por exemplo a actual presença massiva de emigrantes nossos no Luxemburgo, ou o do segundo filho de D. João I, o infante D. Pedro, um incansável e bem sucedido viajante; refere também o antigo primeiro-ministro Durão Barroso («abandonou o barco antes de ele ir ao fundo»), mas sem que lhe mereça nenhuma nota o facto de ter chegado à presidência da Comissão Europeia.
Chega-se à presidência da Comissão Europeia por circunstâncias casuísticas que têm muito pouco a ver com a qualidade da pessoa em causa, e que eu nunca consideraria elogiosas. Na altura, a casuística requeria alguém de um país pequeno, para a Europa não poder ser acusada de estar sempre nas mãos dos franceses ou dos alemães. Também convinha que fosse alguém sem grandes cartas para dar, de forma a ser facilmente manipulável. Estando nesse momento os partidos mais conservadores no poder, encontrava-se totalmente excluída a possibilidade de a presidência ser entregue a toda e qualquer personalidade oriunda do bloco socialista, ou com ele aparentada. E, pior ainda, estando nesse momento a Europa a tentar uma política de aproximação aos Estados Unidos em plena crise iraquiana, o ideal era mesmo alguém que apoiasse a intervenção norte-americana no Iraque, tivesse tropas estacionadas no terreno e até tivesse estado pouco tempo antes nos Açores a fazer de mestre de cerimónias ao serviço de George W. Bush. Olhando para as coisas desta maneira, a presidência em causa é mais digna de condolências do que de parabéns. E, para todos os efeitos, é uma fuga para a frente, ao melhor estilo D. Sebastião em Alcácer-Quibir: o país está em crise, não há dinheiro, o povo protesta, os invasores rondam, que fazer, meu Deus, que fazer? Então, por que não saltar fora e ir antes espadeirar para o estrangeiro? É feio, no mínimo.
Segunda situação… Escreveu um livro onde se nota a cada frase uma notável capacidade de expressão, algo que atrás defendeu como uma das competências a promover nas escolas. Ao mesmo tempo, um grupo de deputados portugueses, creio que com formação superior, cada um deles habituado à vida parlamentar, não conseguiu escrever uma pergunta minimamente clara para colocar num possível referendo sobre a constituição europeia, acabando por arranjar uma coisa absolutamente macarrónica.
Talvez algum outro cientista-escritor-divulgador como eu tenha suficiente generosidade e espírito de missão para organizar um workshop de Escrita e Comunicação para Deputados.
Terceira situação… Diz a certa altura no seu livro: «Quando vejo na capa de um dos últimos números da revista ‘Xis’ o título em letras muito grandes ‘Ter limites ajuda as crianças a crescer de forma mais equilibrada’, até fico toda arrepiadinha.»
É espantoso que seja preciso anunciar ao público uma coisa tão óbvia, tão auto-explicativa e tão exemplarmente intuitiva. Todos os pais e todas as mães de todo o mundo sempre souberam que, para educar as crianças, é preciso impor-lhes limites, e impô-los com toda a clareza, dureza e persistência. Até nova ordem, somos animais. Como tal, nascemos egoístas, auto-centrados e mais completamente focados no nosso prazer e na nossa sobrevivência a todo o custo, pois essas são as leis naturais da sobrevivência do mais apto. Formar civilizações, organizar sociedades, viver em comunidade, tudo isto é contra-intuitivo do ponto de vista evolutivo; e a evolução é um processo dinâmico que está em curso há biliões de anos. Nós aprendemos a viver assim, e desta forma inventámos o pensamento e a cultura, porque a tanto fomos obrigados para sobrevivermos aos tigres de dente de sabre, aos mamutes e à Idade do Gelo. Toda a aventura humana é um longo e complexo processo de aprendizagem. E esta aprendizagem começa a contar a partir do momento em que nascemos. Deixados entregues a nós próprios, alguma vez andávamos em pé, tomávamos banho, ou aprendíamos sequer a usar linguagem articulada? Aquele título daquela capa de revista era estritamente do foro do senso comum. Claro que já o Mark Twain dizia que o senso comum é muito pouco comum. Só que eu acho que, nos nossos dias, depois da emancipação feminina, e no pano de fundo globalizado em que funcionamos, e mais ainda depois da introdução do politicamente correcto e de todas as paranóias com os maus tratos infligidos às crianças, o senso comum não é só cada vez menos comum. É mesmo um sexto sentido preciosíssimo em vias aceleradas de extinção.
O que é que verdadeiramente a levou a escrever um sermão, e a publicá-lo em livro, sobre os 30 anos de democracia de Portugal?
Notar que as pessoas andavam com cada vez mais medo de pensarem por si próprias, e mais ainda de defenderem publicamente o que andavam a pensar. A auto-censura poderá não ser tão brutal como a censura, mas a prazo é certamente muito mais degradante.

Clara Pinto Correia nasceu em Lisboa, em 1960. Licenciada em Biologia pela Faculdade de Ciências da Universidade de Lisboa e doutorada na mesma área pelo Instituto Abel Salazar, prosseguiu uma carreira universitária e de investigação nos Estados Unidos. Destacou-se como escritora desde bastante jovem, publicando a um ritmo assinalável e explorando vários géneros, desde o romance (como o fabuloso «Adeus Princesa», adaptado ao cinema pelo realizador Jorge Paixão da Costa) à divulgação científica, passando pela crónica ou pela literatura infanto-juvenil. É professora na Universidade Lusófona de Humanidades e Tecnologias.

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