segunda-feira, 30 de abril de 2007

Mediterrâneo RH (6)

Mais uma entrevista do projecto «Ágora RH» (explicação do projecto no post 1 sobre este tema). Um vizinho, o representante de Espanha…

Juan José Alvarez (Espanha)
«Os povos andam sempre à frente dos políticos.»

Juan José Alvarez, docente universitário, é membro da Associación Española de Dirección de Personal (AEDIPE). Trabalhou na Telefónica durante 25 anos, na área de recursos humanos, nomeadamente ligado à formação de quadros, tendo também nessa área participado em inúmeros projectos internacionais, nomeadamente de empresas de telecomunicações.
O Mar Mediterrâneo é mais um espaço de encontro ou uma fronteira?
Para nós, latinos, os que estamos em Espanha, em Portugal, em Itália, a emigração tão rápida como está a acontecer é um problema. A emigração é inevitável; a França teve muita emigração, a Inglaterra, muitos países. Em Espanha, e em parte em Portugal, em muito pouco tempo mudámos, deixámos de ser países que enviam emigrantes para passarmos a ser países que recebem imigrantes; ora, quando isto acontece a um ritmo tão forte traz problemas sérios. Em muito pouco tempo, chegaram a Espanha quase três milhões de pessoas. E a Espanha, pela situação económica, pode mais ou menos ir gerindo as coisas, mas as repercussões sociais, políticas e culturais são problemáticas. Um país não assimila de repente gente de outras culturas, por isso eu vejo o futuro como problemático. Isto por um lado. Por outro, a Europa, tendo a Espanha mesmo em frente de África – um pouco como acontece com Portugal –, acaba por ser o el dorado, o sonho, o desenvolvimento. E nessa medida há que ser compreensivo… Por muitas barreiras que se coloquem, o problema da emigração não se vai resolver, não é por aí.
Para que se fazem projectos como o «Ágora RH»?
Bom, há que conviver. É liquido que temos que conviver, que comunicar, que conhecer as diversas culturas. Há que dialogar, relacionar-se… Todos estes eventos, a meu ver, são importantes. Os países ribereños do Mediterrâneo, da ribera do Mediterrâneo, devem encontrar-se. Creio que este é um bom caminho para encontrar um espaço comum de diálogo, e dessa forma procurar solucionar problemas que nos afectam a todos.
Há muito mais comunicação entre as pessoas das empresas, e também das universidades de todos esses países, do que entre políticos. Por que é que isso acontece?
Os povos andam sempre à frente dos políticos. É um facto, a História nunca se moveu por decisões políticas, os políticos vão atrás. As leis só solucionam o que já dura de antes. A política tenta solucionar problemas que já estão na rua. O que afecta os povos, isso os políticos vão lá, com as leis. Neste caso, o discurso político está a mudar. Fala-se em criar um espaço novo, a partir da Cimeira de Barcelona…
Em 2010...
Pois, e isso pode querer dizer algo. Mas é necessário que os povos se conheçam, que rompam clichés, estereótipos, que falem, que se saúdem, e sem estarem à espera dos políticos. Aqui há um começo, uma base, algo que depois pode ser sancionado, aprovado no campo da política.
Neste espaço do Mediterrâneo, o nível de desenvolvimento dos países é muito diferente. Se compararmos a Europa com o Magreb… Isto poderá mudar alguma vez?
Diz-se muito, na área dos recursos humanos e da formação – e eu estou nessa área –, diz-se que a formação é a pedra de toque para qualquer sociedade. Todas as mudanças chegam pela mente; se não se muda a mentalidade, não se muda nada. As grandes mudanças são as que nascem das ideias, com as pessoas, com o conhecimento. Fala-se muito de conhecimento; é o grande instrumento de transformação social. E aqui, neste projecto, vê-se a satisfação desta gente dos países mediterrânicos…
Como encara a Espanha a presença de Portugal no espaço do Mediterrâneo? Portugal que é um país sem um metro sequer de areia que toque o Mar Mediterrâneo?
Bom, eu sou sonhador… Acredito que a Península Ibérica devia estar muito mais unida. É certo que houve problemas históricos, e depois há a língua… Que não pensem os portugueses que eu não quero aprender português. Não, é que o português é mais difícil para mim, para entender, do que o francês, muito mais. Ler até leio, e consigo ver a RTP, mas entender… O que eu acho é que as relações entre Espanha e Portugal têm de avançar. Estou convencido de que seria preciso, provavelmente, uma união. A mim tanto se me dava que o governo estivesse em Madrid ou em Lisboa. Os problemas são semelhantes. Mesmo sem união, Portugal e Espanha deviam colaborar estreitamente em todos os assuntos.

sexta-feira, 27 de abril de 2007

Um perfil

Publiquei recentemente no portal «RHonline» uma entrevista com o consultor Pedro Martins. A propósito desta entrevista, recordei-me que dele escrevi um perfil em 2003 para a revista «Pessoal». Li o texto agora e procurei melhorar um ou outro pormenor da redacção da altura; pode ler-se a seguir…

Pedro Martins
O discreto guerrilheiro

Se fosse preciso matar o presidente da FIAT, Pedro Martins não ia de calças de ganga, nem de sandálias, nem com a barba por fazer. Ia de fatinho italiano, para conseguir passar a porta de algum hotel onde o homem se hospedasse. Também teria garrafa no mesmo bar que ele; supondo até que faria aí o serviço, quando a Polícia aparecesse o mais certo era prender um dos empregados, e Pedro Martins, sempre de fatinho italiano, nem estranharia se ouvisse um pedido de desculpas pelo transtorno.

Pedro Martins tem 48 anos [texto de 2003] e é consultor. Gosta de ser discreto, embora a falar não pareça muito. Mas já lá vamos... Primeiro a discrição, principalmente a que diz usar nas empresas, para não ser logo abatido. «Quando se trata de intervenção na área organizacional, nomeadamente a consultoria, um dos meus livros de referência é o ‘Manual do Guerrilheiro Urbano’, que recomendo com frequência quando dou aulas, seja em Portugal, seja no estrangeiro.» O autor não é nenhum tom-peters norte-americano, é Carlos Marighella, brasileiro, guerrilheiro urbano, terrorista durante a ditadura militar. «Assaltava bancos, matava políticos... Escreveu um manual para ensinar os seus pares a fazer intervenção social. Um dos ensinamentos que tirei vem num dos capítulos, a que ele chama ‘Camuflagem’, que diz praticamente isto: para matar o presidente da FIAT, não posso aparecer de calças de ganga, sandálias e barba por fazer; ando de fatinho italiano para poder entrar no hotel dele, tenho garrafa no mesmo bar que ele... Para se fazer intervenção organizacional, a primeira condição é a discrição. E isso é um dos muitos erros estratégicos dos chamados processos de mudança organizacional, que não passam de processos panfletários que as pessoas anunciam muito, fazendo T-shirts, indo correr, fazendo um jornal... E depois têm de chorar, fazem muito ‘oba oba’, para usar uma expressão brasileira, mas quando se espreme não há substância. Eu perfilho do que o Carlos Marigela diz, gosto da discrição. O consultor não se pode anunciar dentro da empresa como o líder da mudança. Automaticamente está abatido. Os bons processos de mudança são aqueles de que não se fala. Muita gente que faz processos de mudança por cá, se lesse o Carlos Marighella percebia.»

O guerrilheiro quando jovem
Mas como chegou Pedro Martins até aqui, para poder dizer estas coisas? Talvez o melhor seja começar pelo princípio, pelo dia primeiro de Maio de 1955. Pedro Martins nasce em Almada, filho de um sargento do exército e de mãe doméstica. Tudo corria dentro da normalidade anormal do Estado Novo até que, já no final da década de 1960, com 13 anos, o jovem Pedro é expulso do liceu. «É uma história interessante ouvida nos dias de hoje. O meu pai dava-me sempre um presente quando eu passava de ano. Era tradição. No segundo ano do liceu – na altura ainda não havia ciclo –, o prémio que pedi foi ter explicações de inglês, porque as revistas de pop e jazz eram todas em inglês e eu achava piada a conseguir compreender as letras das canções. Então, durante as férias, fui aprender inglês. Quando chegou o terceiro ano e se começava a aprender inglês no liceu, eu já sabia alguma coisa. Isso chocou muito a professora, que preferia que eu fosse virgem na matéria. Ela, de alguma forma, exerceu represálias por eu ter aprendido durante as férias. Obrigava-me a ir todos os dias fazer os trabalhos ao quadro, sempre na expectativa de me apanhar em falta. Eu revoltei-me muito contra isso, era uma criança... Um dia disse-lhe: ‘Olhe, vá à merda, porque eu sei inglês!’ Foi o suficiente para eu ser expulso. E quando se era expulso do liceu, naquela época, só se podia entrar no ciclo seguinte, de forma que tive de fazer o resto do terceiro ano, assim como o quarto e o quinto, num colégio particular. Só depois regressei ao liceu.»
Ia-se compondo assim o retrato do guerrilheiro quando jovem. Pedro e o Estado Novo… «Era o obscurantismo, parecia que não nascia o Sol, que a PIDE impedia. Acima de tudo, era um tempo ridículo. Nem guardo imagem de opressão, guardo do ridículo. Dois ou três exemplos.... Eu bem cedo tornei-me activista político, ligado ao Partido Socialista na clandestinidade. Saí já depois do 25 de Abril, em 1977… Mas ainda durante a ditadura havia uma coisa chamada Sociedade de Estudos e Documentação, um organismo que ficava na Avenida Duque d’Ávila que era praticamente o organismo do Partido Socialista na clandestinidade. Era muito curioso... Havia aspectos folclóricos, por isso digo que era um tempo ridículo. Havia colóquios e só dois jornais iam fotografar. O ‘República’, da oposição, que fotografava a mesa, e ‘A Época’, da PIDE, ou antes, controlado, que fotografava a assembleia... E era preciso ter licença de isqueiro, como se fosse uma arma, ter um atestado de boa conduta, tirado nas juntas de freguesia. Havia polícias à paisana… Se andasse sem licença, podia ir preso por posse de arma incendiária. Eu, por exemplo, fui chamado à PIDE porque encomendei um livro de Psicologia, de França, que tinha uma capa vermelha. O ‘pide’, que era absolutamente ignorante, perguntava-me por que é que eu tinha comprado um livro francês de capa vermelha. Dizia que só podia ser uma coisa subversiva.»
Já com ventos de liberdade a soprarem no país, por vezes até a altas velocidades, Pedro Martins atravessa o Tejo e chega ao ISPA, o Instituto Superior de Psicologia Aplicada. Mais problemas… O rapaz que haveria de inspirar-se no discreto Marigela teimava em contrariar a discrição. «Lembro-me da primeira aula, na Rua da Emenda, frente à sede do Partido Socialista, num edifício que não tinha janelas. Passávamos muito frio e a forma de tentar enganar o frio era comermos rebuçados, uma coisa de muitas calorias. Na primeira aula, perguntava-se aos alunos o que é que eles queriam ser, porque é que iam para lá, e na época só havia duas áreas, a de clínica e a pedagógica, porque a psicologia do trabalho tinha sido extinta com o 25 de Abril; considerava-se que era defender os interesses do patronato, e como a política dominante era a do MRPP aquilo tornava-se politicamente incorrecto. Quando tive de falar, disse que queria ser psicólogo social; foi a risada geral, um anfiteatro de 400 alunos, coitado do bimbo que não percebe que não há psicologia social… Houve um professor, um homem que me marcou para o resto da vida, Lourenço Tavares, que me perguntou, ‘mas se não há, como vai?’ E eu disse, ‘Não há , mas eu vou criar...’» Daí a três anos, Pedro Martins, pela Associação de Estudantes, estava no Conselho Pedagógico do ISPA. Votando minoritariamente, fez a proposta de criação do curso de Psicologia Social. «A força dominante da comissão de gestão era no sentido contrário, mas exercemos um ‘lobby’ directo junto do ministro…» Pedro Martins acabaria por pertencer à primeira turma de futuros psicólogos sociais, porque no quarto ano é que se tinha de optar por uma das áreas.
Entretanto, já trabalhava desde os 17 anos, a meias com a militância política. Primeiro foi produtor na Rádio Renascença, depois na RTP, de onde saiu em 1980, acabado o curso, directamente para consultor. «Sou da pré-história da RTP, ainda do tempo da televisão a preto e branco. Fui produtor e depois assistente de realização... E fui professor; convidaram-me para criar uma cadeira de produção e realização televisiva, que não havia no curso de Comunicação Social da Universidade Nova de Lisboa. Dos programas que produzi o que considero ter sido mais interessante foi ‘A Memória de um Povo’ – três anos e meio a produzir, calcorreando o país em busca de elementos etnográficos e antropológicos da cultura popular portuguesa, pelas aldeias... Desde cedo que me habituei a não estar em casa, como agora acontece na minha actividade de consultor. Na época, estávamos às vezes um mês fora, por exemplo à procura de um registo de uma canção em mirandês que só um velhote sabia... Mas também havia bimbalhada como agora, outro tipo de bimbalhada, variedades, o TV Clube, coisas com a Madalena Iglésias, a Maria de Lurdes Resende e com uma que cantava a música da Robialac, não me lembro do nome dela, mas sei que era a mulher do presidente da Robialac… Bimbalhada sempre houve e sempre vai haver.»
Saído do ISPA e da RTP, Pedro Martins aterra na Cegoc. O primeiro contacto profissional com a consultoria marca-o muito. Manuel Tavares da Silva, seu professor, agora já falecido, orienta-o no estágio; é o seu primeiro patrão, o do «primeiro salário». Marca-o a ele e a toda uma geração de psicólogos sociais. Pedro Martins fica apenas um ano na consultora e depois torna-se free-lancer em consultoria. «A minha empresa chamava-se Certo Modo. Por esses anos, ser consultor era quase o mesmo que hoje ser gay ou bailarino, ou coisa assim do género; era uma ave rara que tinha um estatuto de igualdade por gentileza, mas na realidade não tinha. Os clientes tinham muita dificuldade em pedir o que queriam, diziam sempre de certo modo isto, de certo modo aquilo...» A empresa dura três ou quatro anos. A HayGroup instala-se em Portugal e convida Pedro Martins para director. Estamos em 1990. Pedro Martins aceita e fecha a sua empresa, como lhe exigem. Fica seis anos, saindo para ajudar a instalar a William Mercer em Portugal. «Fui o primeiro director da empresa em Portugal. Éramos dois, eu em Recursos Humanos e o Frederico Machado Jorge em Benefícios…» Em 1998, sai e cria de novo uma empresa própria, a PM International Consulting.

Consultoria atípica
Agora, de novo com empresa própria, a ser consultado por terras da Europa e das Américas, com um Jaguar à porta de casa e tudo, Pedro Martins já pode fazer balanços. Sobre a passagem pelas gigantes da consultoria, por exemplo… O homem da discrição, de repente, deixa-a de lado e não poupa nas palavras. Assim... «Foi nelas que aprendi a ser consultor...» Mas o que faz, já agora, um director da William Mercer? «Tem de ganhar dinheiro, ganhar, ganhar, ganhar... Em 1998, o mais baixinho ganhava 200 contos. O mais alto, que era eu, ganhava 3.200» E como se pagava tudo isto? «O negócio da consultoria, eu falo de negócio, os clientes são principalmente multinacionais… Eu aprendi nessas empresas de consultoria muito e hoje aquilo que faço é exactamente o contrário do que elas fazem. Não há faculdades de consultoria, nem de gestão de recursos humanos. Nem de gestão há. Aprende-se fazendo. Através dessas empresas tive acesso a colegas extremamente qualificados e a clientes extremamente exigentes. Foi uma oportunidade de desenvolvimento pessoal que não teria noutra circunstância. A segunda pergunta, pagar a todos, explica porque faço o oposto delas agora. Não vem mal nenhum ao mundo que a consultoria seja um negócio, seria absurdo pensar em filantropia. O negócio das grandes… Você tem uma âncora, geralmente os partners, indivíduos experientes, qualificados, com prestígio no mercado, que asseguram a confiança do cliente e as fontes principais de desenvolvimento de trabalho que é a venda de projectos, a apresentação de relatórios, a discussão de pontos críticos, de divergências que possam existir… Mas onde as grandes multinacionais ganham dinheiro não é com os partners, é com o batalhão de juniores e middle consultants que têm salários baixos e, proporcionalmente, fees elevados. Isso gera mais-valias. Qualquer negócio que hoje seja exercido por uma multinacional tem de ter essa metodologia. Depois, é muito diagnóstico, muito diagnóstico, muitas vezes supérfluos, e a conclusão que um partner tira é aquela que tem como valor agregado do trabalho de consultoria.»
E na própria empresa, o que faz o admirador do guerrilheiro Marigela?
«Em 1997, fiz um survey aos clientes do mercado internacional, a perguntar se estavam satisfeitos com a consultoria que lhes era prestada, nomeadamente pela empresa a que eu pertencia, a William Mercer. A resposta foi clara: não, porque o custo/ benefício é baixo; queremos ter o partner aqui durante três ou quatro dias e ele está durante umas horas e não obstante temos de pagar a uma equipa de juniores que na prática agrega muito pouco valor; gostávamos de ter cá o partner três semanas e até pagaríamos o mesmo que pagamos para ter os juniores três meses. Então, criei a minha empresa, que tenta responder a este perfil. Não temos o conceito do senior com uma bateria de juniores, temos o conceito de uma bateria de seniores. Temos trabalhado basicamente em Portugal, Espanha, França, Alemanha, Argentina, Brasil, Peru… Com grandes empresas... EDP, Somague, Parque Expo, TMN, Grupo Luís Simões, isto por cá; lá fora, por exemplo no Brasil, a Bandeirante Energia, a Excelsior, a Volkswagen… Basicamente, o que fazemos é a redefinição de políticas e procedimentos de gestão de recursos humanos para aumentar a performance da empresa.»
É por tudo isto que o antigo produtor da RTP que calcorreava Portugal em busca da memória do povo calcorreia agora o mundo quase todo. «Procuro trazer sempre uma recordação que não seja aquela recordação turística, uma obra de arte, um artesanato mais antropológico…» E o que levaria de Portugal, se não fosse português? «O que caracteriza a nossa cultura é a morbidez, este faducho, este lamento, pobrezinhos mas honrados... Se fosse um consultor estrangeiro que viesse cá, levaria, de certeza, um xaile preto.»

»»» CAIXA
Por que é que se contam anedotas de consultores?
Pedro Martins… «É uma questão engraçada. Também contamos anedotas de alentejanos, de negros... Acho que só se faz humor com aquilo de que se gosta. O humor em si, em termos psicológicos, é um sinal de reconhecimento. Aquilo de que não gostamos, ignoramos. Há muitas razões para que se faça anedotas de consultores. Em primeiro lugar, eles são diferentes; não têm um emprego como os empregados, digamos assim, normais. Depois, são pessoas que se expõem muito, o que leva a que haja ridicularização. E há mais razões, já de natureza bastante negativa… Hoje em dia, consultor deixou de ser uma profissão para ser uma ausência de profissão. Quando comecei éramos 32 em Portugal, sabíamos os números de telefone uns dos outros… Agora são milhares, não há nenhum desempregado de colarinho branco que diga que está desempregado, diz que é consultor; o cliente, se não tiver um juízo crítico forte na contratação, arrisca-se a contratar um desempregado que leu um livro ou dois, que fez uns cursos, viu uns slides… Isto dá anedotas, mais do que anedotas, autênticos dramas.»
E os consultores que contam anedotas dos consultores da Mckinsey?
Pedro Martins… «Na apresentação do meu livro de crónicas do «Semanário Económico», fiz uma dedicação à Mckinsey, por ter sido a organização que mais contribuiu para o meu sucesso profissional. Os seus consultores criam tantos problemas que depois alguém tem de resolvê-los. Estou profundamente agradecido à McKinsey, assim como à Roland Berger, à BCG, às chamadas big five… Eles que não pensem que eu tenho uma imagem negativa deles; pelo contrário, o meu negócio depende muito da ineficácia deles, com a sua standartização de serviços. Há áreas em que até são bons, mas não lhes reconheço grandes capacidades na área de desenvolvimento organizacional e gestão de recursos humanos. Faz parte do negócio deles gerir carteiras de clientes, e estando num cliente que lhes pode agregar um pelouro, que pode ser uma auditoria, uma análise estratégica, etc, eles pegam nesse relacionamento para venderem outro tipo de serviço para o qual não têm especialização. Muitas vezes, acabam por enegrecer, por enxovalhar o outro serviço, o que tinham prestado bem. Naturalmente, criam um problema que alguém depois tem de ir resolver.»

segunda-feira, 23 de abril de 2007

Mediterrâneo RH (5)

Uma nova entrevista sobre o projecto «Ágora RH» (explicação do projecto no post 1 sobre este tema). Desta vez, uma mulher, a representante da Tunísia.

Zeyneb Attya Mahjoub (Tunísia)
«O progresso significa derrubar obstáculos.»

Zeyneb Attya Mahjoub é presidente da Association des Responsables de Formation et de Gestion Humaine dans les Entreprises (AFORGHE), da Tunísia. Está a terminar o mandato de presidente da Federação Africana de Recursos Humanos (AFDIP), que agrupa mais de uma dúzia de países da África francófona.
A senhora preside à associação que na Tunísia reúne os profissionais de recursos humanos, mas também é presidente de uma federação africana…
Sou a presidente da AFDIP, que agrupa 13 ou 14 associações de países da África francófona.
Só dessa parte de África?
Sim. Neste momento estamos a posicionar-nos ao nível Federação Mundial de Recursos Humanos para ter a liderança do continente africano.
Há uma outra federação em África?
Sim, ligada à África do Sul, e que agrupa cinco ou seis países da África anglófona.
E países de expressão portuguesa, não?
Talvez. Não tenho a certeza Já encontrei alguém de Angola que queria juntar-se a nós. Mas as coisas não tiveram seguimento.
Moçambique, por exemplo, tem muita influência anglófona…
De facto é assim.
O que pensa da gestão de recursos humanos na Tunísia?
No meu país estamos a tentar fazer o máximo para que a função Recursos Humanos seja valorizada no seio das empresas, porque nós estamos efectivamente, agora, a entrar numa era de competitividade e de valorização da performance nas empresas. Claro que procuramos explicar a toda a gente que se queremos ganhar a batalha da competitividade não o podemos fazer sem ser pela via de recursos humanos competentes, qualificados e visionários. Se queremos triunfar num cenário de mundialização, devemos defender-nos a esse nível, procurando sempre a qualidade.
No governo tunisino há consciência da importância da qualificação das pessoas?
Na Tunísia estamos efectivamente com sorte, porque a vontade presidencial é a de apoiar os recursos humanos. Ao nível do terreno, dos dirigentes das empresas, há um trabalho enorme que falta fazer. E por isso, nós, as pessoas da função Recursos Humanos, procuramos posicionar-nos de forma a que a nossa associação profissional se afirme por uma presença constante, nas instâncias patronais, nas instâncias sindicais, seja no mundo árabe, seja fora dele.
Têm muitos membros na associação?
Temos cerca de 200 pessoas. Somos um pequeno país.
Na generalidade das empresas tunisinas, os responsáveis de finanças e de marketing, por exemplo, são considerados mais importantes do que os de recursos humanos?
Claro que há empresas em que as pessoas de finanças são consideradas as mais importantes, mas agora há algumas pequenas empresas em que as pessoas da função Recursos Humanos começam a estar também no conselho de administração. Creio que o movimento de afirmação dos recursos humanos está em marcha.
Qual é o papel da mulher na Tunísia, ao nível das empresas?
Começa a ser importante. Nas empresas, as mulheres batem-se, progridem, porque têm cada vez mais qualificações.
E em termos de diversidade cultural?
Isso é uma realidade. Há diversidade cultural, na minha empresa trabalham muito italianos, por exemplo.
Em relação ao projecto «Ágora RH»…
O projecto é importante para nós.
Como é que o vê a partir da Tunísia?
Nós encaramos o Mediterrâneo como algo a que pertencemos. Consideremo-lo como um futuro e um presente – e um passado, é claro. Faremos tudo para não sermos marginalizados; por exemplo, neste projecto temos muito menos meios financeiros. No plano das competências somos fortes, mas nos recursos financeiros temos um problema. E não receamos dizer bem alto que todos devem lutar com armas iguais.
Já pensou que o Mediterrâneo, para os países africanos, é uma fronteira?
Sim, é uma fronteira que permanece. Mas tenho esperança no facto de formarmos um conjunto de civilizações e de culturas que instauraram um diálogo. Não se pode esquecer Cartago, o papel dos tunisinos… É muito importante.
O que perspectiva para o futuro próximo neste espaço?
Se não fizermos um espaço de países, se deixarmos as coisas como estão, não teremos muitas hipóteses. O progresso significa derrubar obstáculos, e eu penso, enquanto mulher e militante, que podemos chegar lá pela fé e pela paixão, e luto sempre por isso.
E em relação a África, apenas África, sem pensarmos no Mediterrâneo?
O futuro pode ser bom. A china está a vir até nós. Vamos fazer coisas em conjunto, mas é preciso que não nos deixemos subordinar. Trabalhar juntos sim, baixar a cabeça não.

sábado, 21 de abril de 2007

José Sá Fernandes

Coloquei no meu outro blogFloresta do Sul») uma entrevista com o vereador da Câmara Municipal de Lisboa José Sá Fernandes. Não veio para aqui porque não está propriamente ligada ao tema da gestão das pessoas nas organizações; apesar de ter sido publicada numa revista dessa área («Pessoal»). Mas acredito que muita gente que gere pessoas pode dela tirar alguns ensinamentos.

sexta-feira, 20 de abril de 2007

Mediterrâneo RH (4)

Mais uma entrevista com um dos participantes no projecto «Ágora RH» (explicação do projecto no post 1 sobre este tema). Desta vez, um representante de Itália.

Filippo Abramo (Itália)
«O Mediterrâneo é um lugar giro, mas complicado.»

Filippo Abramo é o ex-presidente da European Association for Personnel Management (EAPM); tem um cargo denominado past president, que explica como sendo «uma espécie de guarda-chuva da federação europeia». Presidiu à Federação Mediterrânica de Recursos Humanos (FMRH) e actualmente é presidente do Grupo da Sardenha de Recursos Humanos, um grupo regional que faz parte da Associazione Italiana per la Direzione del Personale (AIDP).
O senhor é mesmo da Sardenha?
Não. A maior parte da minha vida estive em Milão, no norte de Itália. Trabalhei em muitas companhias, a maior parte delas internacionais.
Em recursos humanos?
Não apenas. Trabalhei principalmente em organização. Agora trabalho no Banco da Sardenha, e estou na ilha, claro. Viajo muito, pelo trabalho e pelas actividades associativas. No banco sou encarregado dos recursos internos, as agências, os edifícios…
Quer dizer, agora gere coisas, em vez de gerir pessoas?
Sim, e é muito diferente. Posso dizê-lo porque estive nos dois lados. Gerir pessoas é mais complicado. Há as emoções… É preciso tentar ligar a performance da organização à performance individual para chegar aos objectivos do negócio. Não é fácil. E depois, em Itália, temos muitas leis e actividades de sindicatos que criam problemas nas abordagens dos negócios. Se se quiser de reestruturar algo numa organização, algo que não esteja a funcionar… Repare, o dever do gestor é fazer com que funcione… Em Inglaterra isso é muito fácil, decide-se e muda-se em dois ou três dias. Em Itália o gestor pode planear a mudança, mas quando vai para o campo, para executar, tem de discutir com os sindicatos.
São muito fortes em Itália?
Sim, muito. É preciso convencer os sindicalistas a fazerem coisas que eles normalmente não gostam de fazer. Porque reestruturar significa que pessoas têm de mudar de emprego, de território, procurar outro lugar.
Como é que resumiria o que é a gestão de recursos humanos no seu país?
Em Itália temos uma longa história de gestão de recursos humanos. Começámos logo depois da segunda guerra mundial. Houve muitas fases. No início era a do comando e do controlo, algo assim do género militar, com directores de pessoal que eram ou militares ou polícias. Agora é completamente diferente.
Quais é que são as grandes questões?
Para mim, a ligação entre o capital humano e a performance do negócio.
Os sindicatos discutem isso?
Começam a discutir. Emocionalmente são contra. Mas, sabe… E é a razão por que o trabalho do responsável de recursos humanos é agora muito mais complicado do que no passado, quando era fácil dar ordens e punir. Agora é preciso compreender as pessoas, comunicar com elas, tornar as coisas claras para elas. E levá-las a reconhecerem e entenderem o que são os objectivos. Não se pode ordenar para que obedeçam. É um trabalho complicado mas desafiante. A um director de recursos humanos o topo da gestão exige que compreenda o negócio em que está envolvido. No passado não era preciso. A principal competência tinha a ver com leis, sindicatos, talvez psicologia, esse tipo de coisas. Mas agora é preciso entender o negócio, por isso há que entender a economia, de forma a integrar o comité executivo das empresas. Eu faço parte do comité executivo do banco, e se quiser falar com os gestores das áreas tenho de conhecer os problemas, o mercado, o que não é fácil. Por outras palavras, o que eu quero dizer é que agora o responsável de recursos humanos não é um director de pessoal, é um gestor de negócios que toma conta das pessoas, o que é diferente.
Fale-me do projecto «Ágora RH». O que significa para si?
É realmente um verdadeiro desafio. Começamos há três anos. Bom, o Mediterrâneo sempre foi um lugar complicado. É um lugar giro, mas complicado. E nesta iniciativa tem a ver com as empresas, com os negócios, com a economia; é um campo em que podemos discutir, em que pode haver um encontro. Com os políticos já é diferente, há problemas, e depois mete-se a religião, o que ainda é pior. Mas o enfoque que procuramos tem a ver com o comércio, com as trocas, com as economias; Aí podemos encontrar-nos. Houve muitos encontros, de muitas pessoas, nos últimos dois mil anos neste espaço, até antes. Porque as pessoas sempre fizeram comércio, da Tunísia, da Líbia, de França, de Espanha. Empresa, comércio, negócio, é um campo onde podemos encontrar-nos. Neste grupo todos somos amigos, estamos juntos, mas temos costumes diferentes, e no projecto, nalguns tópicos, discutimos de forma árdua. Mas no fim conseguimos sempre chegar a acordo. Claro que temos problemas, sempre tivemos, todas as civilizações os tiveram. Há a necessidade de as pessoas discutiram, de se encontrarem, no comércio, nas empresas, no trabalho; foi essa a razão por que começámos. E depois de três anos de trabalho identificámos coisas comuns.
Acha que o Mediterrâneo será algum dia um espaço livre para a circulação de bens e de pessoas?
Essa é a questão mais complicada. Há um projecto da União Europeia que se chama «Projecto de Barcelona», com o qual se pretende criar no Mediterrâneo uma área de livre troca, em 2010. Esse projecto, que é oficial, que começou em 1995, na cidade de Barcelona, continua válido, mas 2010 já não está muito longe. Não é para integrar os países do Magreb na União Europeia, o que seria impossível, mas decerto procurará criar um espaço de troca, de facto, um espaço livre. Mas não acredito que aconteça em 2010.
E a parte Oriental do Mediterrâneo, quando poderá entrar no projecto «Ágora RH»? Portugal já entrou, mesmo o Mediterrâneo chegando apenas a Gibraltar…
Em relação à parte oriental do Mediterrâneo é mais complicado. Começámos com os países do Magreb porque há muitas relações as associações de recursos humanos deles e as dos países latinos da Europa. Os países do Magreb são francófonos. Era mais fácil começar, o projecto estava no início, não sabíamos o que ia acontecer. Preferimos começar numa base segura. E as coisas funcionaram. Agora estamos a projectar os próximos três anos, porque esta experiência é para continuar. E na segunda fase queremos estender o projecto. E a razão pela qual o colóquio final contou com a presença, como observadores, de pessoas de associações de países da parte oriental, de Chipre, da Síria, de Malta… Inclusive convidámos a associação turca, mas acabou por não participar.

quarta-feira, 18 de abril de 2007

Isso da produtividade

Escrevia em tempos um colunista do «Expresso» (António Pinto Leite) que «os portugueses, no seu todo, não têm interiorizado que a produtividade é a primeira forma de solidariedade». E logo a seguir acrescentava… «Porque o que um faz, o outro não terá de fazer, porque se todos forem produtivos poderão ter vidas mais razoáveis, porque a produtividade leva à riqueza e a riqueza distribuída leva à justiça social, porque a produtividade de cada um é condição de sobrevivência do conjunto.»
A sobrevivência do conjunto… Mas será que o conjunto está assim tão preocupado com a produtividade? Será que sabe o que significa a produtividade? Como se mede? Que implicações tem na vida do dia-a-dia?
Conceitos à parte, há uma coisa que o conjunto sabe, todos, sem excepção: a vida não será melhor continuando com a sucessão de desgraças dos últimos anos. Sucessão que tende a colocar-nos numa posição cada vez pior, agora que estamos plenamente integrados num espaço onde a competitividade não se compadece com as dificuldades invocadas pelos menos preparados. E em Portugal, o défice de preparação é inegável, para nos confrontarmos com a maior parte dos parceiros europeus.
Se o desafio fosse trabalhar mais, ou antes, com mais qualidade, provavelmente até o venceríamos. Mas como justificar a um agricultor que mesmo trabalhando melhor na sua exploração acaba por não conseguir escoar os seus produtos? Como explicar a um funcionário público que se trabalhar melhor, provavelmente apenas estará a criar mais redundâncias, a alimentar a máquina burocrática que se foi desenvolvendo ano após ano e que vive para ela própria?
Mas se a solução básica de pôr as pessoas a trabalhar melhor (com mais qualidade) não levará a resolver a questão da produtividade, o que levará? Há três ou quatro anos, um estudo que mostrava os gestores portugueses vistos pelos seus colegas estrangeiros deitava alguma luz sobre isto: os resultados não eram nada simpáticos para os gestores portugueses. Descontando o facto de terem como base a opinião de outros («... eu vejo no mundo escolhos / onde outros com outros olhos / não vêm escolhos nenhuns / …», para lembrar um excerto de um poema de António Gedeão), os resultados apontavam claramente para a ideia de que não será pelos gestores que Portugal vencerá o desafio da produtividade.
Mas e se o problema da gestão fosse resolvido? Se os nossos gestores fossem capazes de, pelo lado deles, resolver o problema? Se isso fosse possível? O que faria Portugal com bons gestores, até com trabalhadores dispostos a – e capazes de – trabalhar com mais qualidade? O que faria Portugal com isto, sabendo-se como é o enquadramento disponibilizado pelo próprio Estado? A nível de infra-estruturas (rodoviárias, a melhorarem; ferroviárias, um desastre; portuárias e fluviais, outro desastre; aeroportuárias, ou melhor, «otárias», é melhor nem falar no caso)… A nível da formação, onde não existe uma linha de pensamento clara e onde quem manda para o ar banalidades atrás de banalidades sobre o «desafio da qualificação» vai-se a ver e acabou o curso, para não dizer pior, às três pancadas… A nível fiscal, onde os adjectivos a empregar serão, porventura, para não faltar à verdade, impublicáveis?
Um pouco na linha do exemplo anterior, com trabalhadores disponíveis e com capacidade para trabalhar com qualidade, com gestores capazes efectivamente de gerir da melhor forma (sem estarem constantemente a pensar nos telemóveis, nos carros e no resto das regalias), o que fazer no meio de todo o imbróglio que envolve o sistema produtivo, não permitindo efectivas condições para que haja produtividade e competitividade? O que fazer perante sucessivos governos de gente apenas auto-desenrascada, governos que continuam sem resolver o problema do ensino e da sua adequação à vida real, sem resolver a questão fiscal, permitindo que continue no nosso país a prevalecer uma situação de mentira, sem resolver o problema das infra-estruturas?
A política nunca foi grande amiga da economia e, no caso português, isso é uma verdade nua e crua. Mais grave ainda, quando são os próprios políticos a trazer constantemente para o debate a questão da produtividade. Produtividade e mais produtividade, e depois a competitividade, sem que seja possível sair de um ciclo vicioso. E eles, produzem o quê? Que diferença para o discurso de quem vê as coisas em concreto, de quem se confronta com os verdadeiros problemas… Há quem diga que o melhor, se calhar, ainda é fazer vida de político; e aproveitar uns amigalhaços para vencer o tal «desafio da qualificação» – a própria, já se vê, enviando um cartão e uma folha A4 com umas tretas em inglês. Mas eu acho que não.

A política e a gestão

Tenho um amigo consultor que nas comunicações que faz para pessoas da administração pública costuma referir-se à diferença que existe entre gestão política e política de gestão. Sobre o assunto já o ouvi inúmeras vezes, sempre com o seu habitual tom crítico, lúcido, construtivo e virado para o futuro. E o que normalmente acontece é que as pessoas da administração pública que tomam contacto com ele costumam aprovar-lhe as opiniões. [Esse meu amigo chama-se Luís Bento e está numa entrevista ali abaixo]
Bom, para além do jogo de palavras, esta ideia do meu amigo toca em aspectos essenciais para o desenvolvimento da nossa sociedade e até para a preservação dos valores fundamentais da democracia. Uma coisa é ter objectivos firmes, por exemplo, para uma instituição, para uma autarquia ou para um país, sempre elementos que congregam interesses colectivos. Outra bem diferente é ter objectivos pessoais ou partidários, igualmente firmes, já se vê (e se calhar mais firmes do que para tudo o resto...), servindo-se da instituição, da autarquia ou do país. É aqui que reside a diferença essencial entre política de gestão e gestão política.
Ter uma política de gestão ou fazer uma gestão política é o resultado de uma opção, tomada pela formação de cada pessoa, à frente de uma instituição, de uma autarquia, de um país. Mas muitas vezes, e no caso da gestão política, não é só isso. Não se trata apenas de uma opção. A própria lógica que grassa em Portugal, de a tudo e mais alguma coisa ser necessário submeter critérios de natureza política, e não de eficácia e de eficiência, tem levado até a que muitos dos mais bem intencionados no início das suas funções acabem por aderir à tão falada gestão política. Uma gestão que acolhe de tudo um pouco, desde esses honestos vencidos pelo cansaço, ou convencidos, até manhosos, lambe-botas e vigaristas.
Pode argumentar-se que em democracia as coisas se resolvem por si, que todos os frequentadores da gestão política serão enxotados em época de eleições e de nomeações. Só que as coisas não são assim tão simples. Em teoria sim, o povo escolhe aqueles mais propensos a terem uma política de gestão do que a fazerem uma gestão política, porque é esse o interesse do povo. Mas na verdade o que acontece é que as escolhas democráticas estão invariavelmente condicionadas pela actuação dos gestores políticos, que poucas hipóteses dão aos que defendem políticas de gestão. A gestão política é isso mesmo, essa capacidade de iludir, à custa de «marquetingues», empregos, favores, ameaças explícitas ou implícitas, dinheiro ou até autocarros para carregar pessoas no dia das eleições.
Há inclusivamente quem defenda que isto, assim, só com uma ditadura. Eu, por mim, não creio que ajudasse muito. A julgar pela amostra que tivemos durante quase meio século, a esses o que posso dizer é que antes preferia que o destino nos guardasse para sempre no lodaçal da gestão política que agora conhecemos. Para pior, e bem pior, que ficasse assim. Até porque na ditadura, mesmo com um ditador que tinha a mania de que era sério (pobre e sem sequer suspeitar da existência de uma palavra chamada democracia, mas sério...), não se fazia outra coisa a não ser gestão política. À antiga, é claro, com pides e tudo.

segunda-feira, 16 de abril de 2007

Mediterrâneo RH (3)

De entre os entrevistados não portugueses do projecto «Ágora RH» (explicação do projecto no post 1 sobre este tema), o primeiro que trago aqui é o representante da associação argelina de recursos humanos. Começo por ele devido ao facto de quando o entrevistei ser o presidente da Federação Mediterrânica de Recursos Humanos. Na foto, aparece a intervir durante a abertura dos trabalhos, interpelado por um jornalista francês que fazia de moderador sempre a andar de um lado para o outro.

Ahmed Mana (Argélia)
«A Europa não pode construir um muro.»

Ahmed Mana, presidente da Association Algérienne des Ressources Humaines (ALGRH), é também o presidente da Federação Mediterrânica de Recursos Humanos (FMRH). Está reformado, depois de uma carreira como quadro superior do Estado num dos maiores ministérios da Argélia (Ministério da Energia e das Minas).
Para si, o espaço do Mediterrâneo, com tantos países, é um espaço de união?
Geograficamente há uma unidade à volta do Mar Mediterrâneo; esta é a primeira ideia. Segunda, há muitas coisas à volta do Mediterrâneo. Sou obrigado a falar das invasões. Tivemos a invasão turca, a árabe, tivemos a Europa na Síria, na Argélia, em toda a África do norte. Isso deu em trocas, em misturas da cultura de uns e de outros. E assim foi construído um passado histórico muito forte, ainda que construído sobre a dor. E hoje é preciso fazer a mesma coisa, mas sem passar pela colonização, pela guerra. É preciso que aconteça pela compreensão, pelas trocas. Creio que se pode assim construir um Mediterrâneo de países, que será algo grandioso a partir do contribuo dos pequenos países. Os norte-americanos construíram a grande América com pessoas originárias da Europa, de diferentes nações, de diferentes culturas. Mesmo a própria Europa, que é outro grande espaço, construiu-se com o norte, o centro, o leste, os latinos, os eslavos. O mesmo se pode fazer tendo como elemento aglutinador o Mediterrâneo.
Quando se fala do Mar Mediterrâneo, pode falar-se numa zona de proximidade, de partilha, mas também se pode falar numa barreira. O que pensa disto?
Antes a mudança era no sentido inverso que acontece agora, os europeus é que se iam instalar nos países do outro lado do Mediterrâneo. «Vós sois o que nós somos», diziam os franceses aos argelinos, aos marroquinos, «vocês são franceses». Os italianos faziam o mesmo, tal como os otomanos em tempos, e os árabes quando entraram na Península Ibérica. As trocas que se aconteceram no passado, com violência, deverão fazer-se de novo, agora sem violência. Veja, por exemplo, a questão da emigração… É preciso perceber que se as pessoas do norte de África viajam para a Europa é porque existem razões para isso. Não é só ir por ir. Há razões, que são múltiplas… Económicas, o atraso dos seus países, as necessidades que têm em África, as doenças, etc. Por que é que esses países estão nesse estado? Por serem os piores do mundo? Não creio. Os ocupantes, por exemplo, do Uganda, do Senegal, utilizaram a riqueza e não deixaram nada. Foi gente que sempre repartiu a zero. E depois, uma segunda questão… Quem está no poder nos países pobres usa as riquezas como um colonizador, abusa das pessoas, do seu próprio povo. E uma terceira, no plano económico, a da mundialização… o que é isso? É a livre circulação de capitais… É o domínio da tecnologia, felizmente… Estou na Argélia, mas estou ao mesmo tempo em todo a parte, graças à Internet, à televisão, etc. É preciso que haja trocas de pessoas. A mundialização é uma livre circulação de todo o mundo. Se cada pessoa respeitar as outras, os seus valores, as leis, não haverá problemas. Não deve haver uma fronteira entre um mundo e outro. Porque quando há fronteiras há também o risco de partir um povo em dois; isso passa-se em Israel e na Palestina, ergueram um muro para separar dois povos que não têm diferenças, que vêm da mesma árvore genealógica. Ou seja, a Europa não pode construir um muro. Que haja controlo da emigração, sim, mas não com a ideia de que quem está, fica connosco, e os outros nunca poderão entrar.
Como é que caracteriza a gestão de recursos humanos na Argélia?
Durante o período colonial era, obviamente, a gestão de recursos humanos dos franceses. Quando os ocupantes partiram, em 1962, continuámos a trabalhar sobre os mesmos modelos, com os mesmos métodos; a maneira de ver os recursos humanos era a mesma. Depois, houve mudanças importantes. Deu-se muita importância à pessoa, escolheu-se verdadeiramente a abordagem socialista. O trabalhador ganhou muito poder no seio da empresa. Tinha-se saído de um período doloroso de guerra, era preciso dar esperança às pessoas, deixá-las respirar, mais do que ser exigente. Esse período de estabilização foi um pouco longo, por isso é que chegámos um pouco tarde ao manegement. A seguir já na década de 1970, no início, o país fez um grande esforço ao nível da formação. Ao nível da indústria, ao nível da qualificação dos quadros. Como a tinha sido feito em França, nos Estados Unidos, em Inglaterra etc. Infelizmente, depois disso houve decisões económicas e políticas que não permitiram um desenvolvimento individual e colectivo dos recursos humanos. A conduta centralizada, não se dava poder ao gestor, às pessoas que trabalhavam na direcção de recursos humanos. Havia directivas, digamos assim, superiores, e pronto. Agora é diferente. Na Argélia aposta-se na formação, temos muitos institutos que o fazem, nomeadamente em gestão de recursos humanos.
Qual é o papel das mulheres nas empresas do seu país?
É preciso partir da ideia de que no meio urbano as mulheres emancipam-se cada vez mais. Elas trabalham, participam. Já no mundo rural a abordagem é mais familiar. Mas a participação da mulher ainda não é importante na economia argelina. Creio que na administração pública chegarão a 20%, talvez 25, dos efectivos, e no sector público económico a 15, talvez 20%. Há um esforço a fazer. Creio que o papel da mulher nas empresas se tornará mais importante. Quanto à política, já é magnífico.
Actualmente?
Sim, há partidos que são dirigidos por mulheres, temos mulheres que são deputadas. Até nalgumas empresas há mulheres em posições dirigentes.
Posições verdadeiramente de decisão, em empresas?
Sim. Por exemplo, uma das maiores empresas do país, a décima ou décima primeira a nível mundial no seu sector de actividade, a responsável executiva de recurso humanos é uma mulher.
A Argélia, neste aspecto, é muito diferente dos outros países do Magreb?
Não. Somos do norte de África, do Mediterrâneo, tivemos o período colonial, partilhamos os mesmos valores, e por isso não há uma grande diferença: Talvez só no número de habitantes e nas riquezas naturais.
Fala de Marrocos, Argélia e Tunísia… O caso da Líbia, por exemplo, já é diferente?
É como na Europa. Há gente que vai mais para o Médio Oriente; parte da Tunísia e a Líbia. É preciso ver, por exemplo, que a Tunísia e Marrocos estão a distâncias bem diferentes do Médio Oriente.

domingo, 15 de abril de 2007

A nossa educação

Coloquei no meu outro blog (Floresta do Sul), um texto sobre o livro «Trinta Anos de Democracia – E Depois Pronto», de Clara Pinto Correia. Fi-lo a propósito de se aproximar mais um aniversário do 25 de Abril. Pouco tempo depois da saída do livro, entrevistei Clara Pinto Correia; o tema não era o livro em si, mas a educação que temos em Portugal – é a entrevista que está abaixo.




Entrevista a Clara Pinto Correia
Esta duvidosa pátria

Uma professora universitária com um percurso assinalável tanto em Portugal como nos Estados Unidos, e ao mesmo tempo uma das figuras mais notáveis da literatura portuguesa, com uma obra tão vasta quanto diversificada. Clara Pinto Correia, autora de um sermão sobre o Portugal democrático, concentrada aqui naquilo que vai sendo a nossa educação, mas sem perder de vista, obviamente, uma pátria a que há muitos, muitos anos, alguém chamou ditosa.

O sermão chama-se «Trinta Anos de Democracia – E Depois Pronto», foi editado pela Relógio D´Água» e de Portugal apresenta uma visão lúcida, sem meias palavras e, obviamente, clara, ou não defendesse a autora que uma das competências a desenvolver nas escolas é a capacidade de expressão. A nossa educação, por Clara Pinto Correia.
Portugal aparece em vários relatórios como o país da União Europeia com a mais alta taxa de abandono escolar e um dos piores níveis de qualificação profissional. Mais, o ensino universitário parece fornecer cursos que não são suficientemente relevantes para as necessidades do mercado de trabalho. Tem alguma explicação para termos chegado a esta situação?
Todas as explicações possíveis são apenas tentativas de aproximação ao fenómeno, mas, a esse título, posso avançar pelo menos duas. As vicissitudes da má preparação universitária para o mercado de trabalho real, sobretudo a nível do ensino público, prendem-se certamente com o facto de esta área não ter sofrido qualquer remodelação em 30 anos de democracia. Abriram universidades novas, com cursos novos, mas não se procedeu a qualquer mudança estrutural profunda que implicasse mesmo uma postura e um estado de espírito inovadores em relação ao ensino superior: mantiveram-se as coutadas, os territórios, a animosidade entre grupos que exploram áreas aparentadas e entre os quais deveria antes existir um espírito feliz de colaboração, toda a gente se agarrou com unhas e dentes ao seu pequeno estatuto e, a partir daí, a prioridade foi sempre evitar que pessoas novas pudessem fazer sombra às pré-existentes. Nunca se instituiu, minimamente, o espírito de meritocracia que deveria presidir à vida académica, o de progredir na carreira quem merece pela qualidade da sua investigação e da sua docência, sendo afastado quem não se dedica suficientemente à causa. Em consequência, temos uma vida académica pobre e com muito pouca flexibilidade. A taxa de abandono escolar e a má preparação profissional terá de certeza a ver com a falta de cuidado com que se abriu o ensino para todos, logo a seguir à Revolução, e se subiu a escolaridade obrigatória até ao nono ano. É muito bonito termos acesso gratuito ao ensino até um nível adiantado, mas é impossível oferecer este ensino com eficácia e qualidade se não se fizer um investimento maciço nas infra-estruturas e nos recursos humanos. Em consequência, Portugal ficou cheio de escolas pré-fabricadas extremamente feias e desconfortáveis – algumas, aliás, já a começarem a cair, como aconteceu com a escola onde andam os meus filhos –, com turmas ridiculamente sobrelotadas, pouquíssimo suporte técnico das bibliotecas aos laboratórios, entregues a professores que não estão todos devidamente qualificados para o esforço enorme que se lhes pede, nem recebem da sociedade reconhecimento suficiente para tornarem a sua profissão gratificante, e ainda por cima auferem um ordenado que certamente não atrai os mais brilhantes e mais qualificados. Para piorar o cenário, a maior parte destes barracões pré-fabricados foi construída em zonas periféricas, distantes dos centros urbanos – onde, obviamente, o valor imobiliário do terreno é muito maior –, em áreas de armazéns, realojamentos e zonas industriais. A separação dos alunos do meio em que vivem e o seu isolamento em lugares incaracterísticos no meio de parte nenhuma é obviamente propícia à criação de bolsas de criminalidade e de transacções ilegais, que não contribuem, decerto, para a estabilidade emocional de ninguém. Junte-se a isto que nunca houve uma reflexão suficientemente séria, consistente e continuada sobre o que é que se pretendia ensinar aos alunos até ao nono ano, veja-se a confusão monumental que são os livros de texto despejados sem critério de crivo de qualidade para o mercado e compreenda-se, urgentemente, que a situação é verdadeiramente explosiva e precisa de uma verdadeira volta.
Tendo em conta a análise que fez, como convive com o nosso meio universitário, onde está integrada, e com o facto de os seus filhos estudarem numa escola pública?
Com o meio universitário, procuro conviver da forma mais saudável e produtiva possível, se bem que em grande medida tomar uma atitude destas implique a quadratura do círculo. O meio é malsão, por excelência. Séculos e séculos de coutadas, intrigas, consanguinidades e golpes palacianos não se descartam das instituições com facilidade, e a imutabilidade deste aspecto da vida universitária fica bem demonstrada com a sobrevivência intacta destas supra e infra estruturas depois da Revolução. A única atitude saudável é não dar por nada disto, viver-se alheado das intrigas de corredor, passar-se pouco tempo no café e, sobretudo, não alimentar falatórios. Com o tempo e a energia que poupamos se nos recusarmos a pertencer à parte medíocre e videirinha do sistema, podemos fazer coisas muito úteis, muito giras, que nos dão imenso gozo a nós, e também aos nossos destinatários. Desde que regressei dos Estados Unidos, montei de raiz uma licenciatura e um mestrado, uma série de intercâmbios sobretudo com universidades norte-americanas, um laboratório de investigação, um programa de interface com as escolas secundárias, uma pós-graduação em História da Ciência, um centro de investigação em que se trabalha a sério, um encontro de Verão na Arrábida com vários especialistas internacionais, uma sessão de conferências anuais abertas ao grande público na Culturgest, uma colecção de livros especificamente de História da Ciência, e comecei agora a leccionar um workshop de Escrita e Comunicação para Biólogos que tem sido muito estimulante para mim e para os alunos. Claro que, de certa forma, tenho o benefício de estar a trabalhar numa universidade privada, onde as condições de trabalho poderão ser fisicamente mais limitadas mas, em contrapartida, a nossa margem de manobra é muitíssimo maior. Pelo que oiço contar aos meus colegas e amigos das universidades públicas, estou bastante protegida da influência nefasta da intrigalhada de gabinete e da falta de nível de uma actividade que se pauta toda única e exclusivamente pela fixação de progredir na carreira. Fiz questão de prestar provas de agregação na Universidade de Lisboa, em 2004, e o muito que vi e ouvi nessa altura deixou-me sinceramente perplexa em relação aos parâmetros pelos quais a maioria dos nossos catedráticos parece aferir o valor das pessoas. Mas também percebi que há imenso espaço e bons recursos humanos para levar a cabo projectos de grande qualidade. E utilidade, repito. A universidade funciona pior quando só está virada para si própria. Acredito na importância da torre de marfim que protege o conhecimento académico, mas a torre não pode ser confundida com a totalidade do edifício.

Quanto a ter os meus filhos numa escola pública… Pelo que me diz respeito, não andei a fazer a Revolução para depois trancar a sete chaves os meus meninos num ambiente rarefeito e protegido da realidade, onde não entram, entre aspas, os pobres, os ciganos, os pretos, nem o que quer que seja que possa trazer consigo inquietação e diferença. Quero que eles conheçam desde cedo o país tal como ele é, e sobretudo que se familiarizem desde cedo com um fenómeno que para a minha geração é novo e surpreendente, ao ponto de nem sabermos muito bem como lidar com ele, mas que para a geração dos meus filhos vai ter que ser um dado adquirido: o Portugal de hoje já é um grande ponto de confluência de emigração vinda de todos os quadrantes do mundo, e essa tendência vai acentuar-se. Dito isto, tenho também a certeza absoluta de que os professores das escolas públicas são, por regra, muitíssimo melhores, e melhor preparados, do que os professores das escolas privadas. Existem grandes marcas de bom ensino secundário privado, como o Charles LePierre ou o Saint Julian's, mas dizem respeito a um sistema de ensino importado do estrangeiro e replicado em Portugal com todas as suas idiossincrasias específicas. E eu diria que estas são as excepções, e não a regra. Por regra, frequentar o ensino privado tem a ver sobretudo com garantir aos pais que os filhos estão mais protegidos e são mais vigiados, que as aulas começam impreterivelmente no início de Setembro e há prolongamentos de várias denominações até ao fim de Julho e que, se necessário, o horário é das oito da manhã às oito da noite. Ou seja, a qualidade da docência não é uma prioridade. Nada nos garante que apareçam a dar aulas pessoas sem licenciaturas, sem estágios, eu diria até sem outras qualificações que não a de serem amigos ou familiares da direcção. E isso é sinistro, até porque é muito pouco policiado. Tal é o medo que os portugueses de hoje têm do mundo que está à volta deles.
No seu livro «Trinta Anos de Democracia – E Depois, Pronto», a certa altura é particularmente crítica em relação às universidades portuguesas, o que acabou agora de reforçar. Conhecendo as universidades portuguesas, e conhecendo também o meio universitário norte-americano, peço-lhe que identifique as principais diferenças e, já agora, as implicações?
O meio universitário norte-americano é extremamente flexível, tem uma liberdade total de manobra porque o que determina a validade ou não de cursos e de universidades é a qualidade dos alunos que de lá saem, oferece aos alunos a possibilidade de cumprirem uma formação muito mais livre e pessoalizada, e, principalmente, está tudo montado para funcionar, e funcionar muito bem. Chegamos lá a uma universidade pública – quando aqui as públicas são sempre as mais pobrezinhas e com menos meios – e a biblioteca geral é uma torre de 12 andares pejada de livros, enquanto à volta do campus há residência universitária atrás de residência universitária. E há sempre, obrigatoriamente, um serviço de saúde gratuito para todos os alunos, professores e funcionários. A atribuição de moradas de e-mail a toda esta gente é automática, e toda a divulgação interna ou externa funciona em pleno. O ambiente geral é extremamente descontraído e o ensino está muito mais vocacionado para treinar os alunos para conseguirem pensar e serem rápidos a resolver problemas. Há empregos especiais dentro de cada campus para permitir aos alunos receberem salários ou dispensarem propinas, e uma grande actividade tanto de docentes como de discentes. Última benesse: ninguém tem o emprego assegurado para o resto da vida até atingir o full professorship, sendo necessário várias provas e peritagens de qualidade até se chegar lá – pelo que ninguém pode pôr-se a dormir à sombra dos louros e deixar de estar alerta. São muitas lições de qualidade para absorver e digerir.
Ainda em relação ao seu livro… A sua visão de Portugal é particularmente desgostosa, de qualquer forma apresenta no final algumas coisas que todos poderíamos começar a fazer. Em relação à educação, é capaz de também apontar algumas coisas que pudéssemos começar a fazer, cada um de nós?
Sem dúvida. Encorajar os alunos a ler livros. Incluir hábitos de leitura e de expressão oral e escrita nos programas dos cursos. Conceber e implementar métodos criativos de avaliação contínua que desencorajem o empinanço e encorajem o raciocínio. Incluir os alunos nas actividades tanto da investigação dos docentes como na manutenção dos materiais necessários para o curso. Premiar boas actividades extra-curriculares e os alunos que as frequentam. Manter um horário regular de atendimento aos alunos, e encorajá-los a tirarem partido dele. Isto para começar, e já seria muito bom.
E se fosse ministra responsável por essa área, quais seriam as suas prioridades?
Depende de se estamos a falar de toda a educação ou apenas de ensino superior. A minha política para o ensino superior seria sobretudo vigiar com mão de ferro a remodelação dos cursos de acordo com as decisões de Bolonha, no sentido de impedir fraudes, evitar a simples compactação em vez da abertura do espectro e manobrar do sentido de as universidades públicas respeitarem as decisões da comissão que está encarregue de definir as linhas-mestras para o desenvolvimento destes novos cursos em Portugal, em vez de abusarem da autonomia universitária para fazerem o que mais lhes convém. Também seria importante agilizar e flexibilizar o processo de abertura de novas licenciaturas, de novos mestrados, e investir bastante na criação de verdadeiros programas de doutoramento. A educação, em geral, precisava de investimentos ainda mais dramáticos, que vão da estimulação da carreira docente à promoção de reintegração da escola na sociedade, passando pela criação de boas redes de bibliotecas, pelo encorajamento de colaboração entre universidades e ensino secundário para demonstração ao vivo de processos estudados nos livros de texto, pelo incentivo à frequência de bons cursos de formação contínua para os professores, pela recriação da figura do médico escolar que tem um gabinete na escola e aí funciona em blocos horários fixos para apoio directo a alunos e professores, pela introdução obrigatória de pelo menos um profissional de acompanhamento psicológico de pais, alunos e professores por escola, pelo melhoramento sério da qualidade das instalações e dos acessos, pelo oferecimento de actividades de ocupação dos tempos livres dignas desse nome, por assegurar o apoio de um especialista em ensino especial por ano, ou pela redução do tamanho das turmas ou a adopção do formato de dois professores por turma. Além de tudo isto, como já disse antes, seria preciso controlar o desatino dos livros de texto e definir com seriedade e eficácia o que é fundamental ensinarmos aos meninos e jovens na sua escolaridade obrigatória. E fazer esta parte bem feita. Com muito menos matéria, e muito mais incentivo ao entendimento, à reflexão e à capacidade de síntese e de expressão.
Por que é que temas como este da educação – tal como outros, a inovação ou a produtividade, cuja necessidade de promoção parece igualmente óbvia – são tão caros aos políticos dos mais diversos quadrantes, acabando quase sempre no esquecimento depois da época de eleições?
Porque toda a gente sente na pele, de uma maneira ou de outra, que o nosso ensino funciona mal. Portanto, prometer melhorias nesta frente é uma fórmula garantida para atrair simpatias eleitorais. A seguir, como mexer em todo este castelo de cartas é extremamente complicado, a tendência, de facto, é para não se fazer grande coisa.
Falou há pouco das decisões de Bolonha. Qual a sua opinião sobre este processo?
Estamos a falar de um fenómeno que vai abranger toda a Europa comunitária, portanto a minha opinião pessoal não é relevante. Relevante é que isto vai mesmo acontecer, e nós temos que estar preparados com boas ofertas de bons cursos, para podermos atrair todos os estudantes de países mais ricos e diferenciados mas que não tenham um clima tão bom como o nosso.
Acaba por ser uma grande reforma para o ensino, no caso o ensino superior, e vem da Europa. Acha que poderá acontecer o mesmo noutras áreas – por exemplo, na fiscalidade, ou na justiça –, acabando por ser a Europa a disciplinar-nos?
Não acho. Tenho a certeza. Só espero é que por «Europa» possamos realmente entender «todos nós».
No seu livro começa por escrever: «Eu tinha 14 anos no 25 de Abril./ Foi muito bom.» Só que umas linhas a seguir vem um «mas» e a tal visão desencantada. Imagine que daqui a 10 anos escreve um outro livro, um outro sermão, sobre o que terá sido Portugal… Imagine que começa por dizer: «Eu tinha 25 anos quando Portugal entrou para a então denominada Comunidade Económica Europeia.» Consegue, agora, ter alguma ideia do que poderia, ou poderá, escrever a seguir?
Embora as pessoas mais sérias e responsáveis do país estivessem convictas de que essa era a nossa melhor via de crescimento, e mesmo admitindo que o dito país não tinha, à época, muito mais para onde se virar, penso que o nosso lamento de hoje só pode ser o eco do lamento dos vários países mais periféricos da União Europeia: enquanto se estabeleciam acordos e protocolos de homogeneização, ninguém se lembrou de celebrar a importância da diferença. Um país mediterrânico não deve parecer-se com um país do norte da Europa, assim como um país do leste não tem nada a ganhar em parecer-se com a Turquia, tal como não é conveniente que exista nenhuma outra nação semelhante aos Estados Unidos, embora seja bom os Estados Unidos existirem. Não é que a Alemanha ou a França ou a Dinamarca tenham vícios horríveis de carácter infecto-contagioso, mas é tão-somente que o interesse e a riqueza numa confederação de estados reside exactamente na fruição das especificidades de cada estado-membro. Portugal, com a sua característica passividade e a sua proverbial insistência doentia na visão de curto prazo, absorveu muitos defeitos sem absorver virtudes, esbanjou dinheiro onde devia ter investido economias, entregou-se de bandeja aos interesses alheios, e acabou transformado num lugar amorfo, desfigurado, sem personalidade, onde o Algarve é igual a qualquer estância balnear ranhosa de Espanha ou de França ou mesmo de Malta, o conceito de «parque natural» parece ser o de terras deixadas ao abandono sem qualquer espécie de guia ou sinalização, a máfia do betão ganhou fortunas a erguer torres de apartamentos e condomínios de luxo, ao mesmo tempo que destruía para sempre paisagens milenárias, e quando vamos a ver o que é que pomos na mesa ao fim do dia as azeitonas vêm da Grécia, os figos secos de Itália, o queijo vem da Escandinávia e o vinho é francês, para não falar das rolhas das garrafas que já há muito tempo que deixaram de ser fabricadas com a nossa cortiça em favor de um polímero sintético de aspecto e textura semelhantes, com patente registada na Califórnia e fábricas a funcionar na Coreia e na China. Houve quem ainda sonhasse com o papel fundamental de charneira que os portugueses iriam ter na interface entre a Europa e legados culturais riquíssimos, como o do Brasil, ou riquezas naturais vastíssimas, como as de Angola e Moçambique. Como também neste domínio ninguém fez nada, os brasileiros voltaram-se rapidamente para os espanhóis, os moçambicanos adoptaram o inglês como língua oficial, e dificilmente se encontra uma empresa a funcionar em Angola que não seja maioritariamente norte-americana. Para os portugueses, o que é que ficou? Alguns empregos precários em multinacionais estrangeiras, ao que parece.
Gostava também de pedir-lhe que comentasse três situações. Primeira, no seu livro refere o êxito dos portugueses no estrangeiro, citando por exemplo a actual presença massiva de emigrantes nossos no Luxemburgo, ou o do segundo filho de D. João I, o infante D. Pedro, um incansável e bem sucedido viajante; refere também o antigo primeiro-ministro Durão Barroso («abandonou o barco antes de ele ir ao fundo»), mas sem que lhe mereça nenhuma nota o facto de ter chegado à presidência da Comissão Europeia.
Chega-se à presidência da Comissão Europeia por circunstâncias casuísticas que têm muito pouco a ver com a qualidade da pessoa em causa, e que eu nunca consideraria elogiosas. Na altura, a casuística requeria alguém de um país pequeno, para a Europa não poder ser acusada de estar sempre nas mãos dos franceses ou dos alemães. Também convinha que fosse alguém sem grandes cartas para dar, de forma a ser facilmente manipulável. Estando nesse momento os partidos mais conservadores no poder, encontrava-se totalmente excluída a possibilidade de a presidência ser entregue a toda e qualquer personalidade oriunda do bloco socialista, ou com ele aparentada. E, pior ainda, estando nesse momento a Europa a tentar uma política de aproximação aos Estados Unidos em plena crise iraquiana, o ideal era mesmo alguém que apoiasse a intervenção norte-americana no Iraque, tivesse tropas estacionadas no terreno e até tivesse estado pouco tempo antes nos Açores a fazer de mestre de cerimónias ao serviço de George W. Bush. Olhando para as coisas desta maneira, a presidência em causa é mais digna de condolências do que de parabéns. E, para todos os efeitos, é uma fuga para a frente, ao melhor estilo D. Sebastião em Alcácer-Quibir: o país está em crise, não há dinheiro, o povo protesta, os invasores rondam, que fazer, meu Deus, que fazer? Então, por que não saltar fora e ir antes espadeirar para o estrangeiro? É feio, no mínimo.
Segunda situação… Escreveu um livro onde se nota a cada frase uma notável capacidade de expressão, algo que atrás defendeu como uma das competências a promover nas escolas. Ao mesmo tempo, um grupo de deputados portugueses, creio que com formação superior, cada um deles habituado à vida parlamentar, não conseguiu escrever uma pergunta minimamente clara para colocar num possível referendo sobre a constituição europeia, acabando por arranjar uma coisa absolutamente macarrónica.
Talvez algum outro cientista-escritor-divulgador como eu tenha suficiente generosidade e espírito de missão para organizar um workshop de Escrita e Comunicação para Deputados.
Terceira situação… Diz a certa altura no seu livro: «Quando vejo na capa de um dos últimos números da revista ‘Xis’ o título em letras muito grandes ‘Ter limites ajuda as crianças a crescer de forma mais equilibrada’, até fico toda arrepiadinha.»
É espantoso que seja preciso anunciar ao público uma coisa tão óbvia, tão auto-explicativa e tão exemplarmente intuitiva. Todos os pais e todas as mães de todo o mundo sempre souberam que, para educar as crianças, é preciso impor-lhes limites, e impô-los com toda a clareza, dureza e persistência. Até nova ordem, somos animais. Como tal, nascemos egoístas, auto-centrados e mais completamente focados no nosso prazer e na nossa sobrevivência a todo o custo, pois essas são as leis naturais da sobrevivência do mais apto. Formar civilizações, organizar sociedades, viver em comunidade, tudo isto é contra-intuitivo do ponto de vista evolutivo; e a evolução é um processo dinâmico que está em curso há biliões de anos. Nós aprendemos a viver assim, e desta forma inventámos o pensamento e a cultura, porque a tanto fomos obrigados para sobrevivermos aos tigres de dente de sabre, aos mamutes e à Idade do Gelo. Toda a aventura humana é um longo e complexo processo de aprendizagem. E esta aprendizagem começa a contar a partir do momento em que nascemos. Deixados entregues a nós próprios, alguma vez andávamos em pé, tomávamos banho, ou aprendíamos sequer a usar linguagem articulada? Aquele título daquela capa de revista era estritamente do foro do senso comum. Claro que já o Mark Twain dizia que o senso comum é muito pouco comum. Só que eu acho que, nos nossos dias, depois da emancipação feminina, e no pano de fundo globalizado em que funcionamos, e mais ainda depois da introdução do politicamente correcto e de todas as paranóias com os maus tratos infligidos às crianças, o senso comum não é só cada vez menos comum. É mesmo um sexto sentido preciosíssimo em vias aceleradas de extinção.
O que é que verdadeiramente a levou a escrever um sermão, e a publicá-lo em livro, sobre os 30 anos de democracia de Portugal?
Notar que as pessoas andavam com cada vez mais medo de pensarem por si próprias, e mais ainda de defenderem publicamente o que andavam a pensar. A auto-censura poderá não ser tão brutal como a censura, mas a prazo é certamente muito mais degradante.

Clara Pinto Correia nasceu em Lisboa, em 1960. Licenciada em Biologia pela Faculdade de Ciências da Universidade de Lisboa e doutorada na mesma área pelo Instituto Abel Salazar, prosseguiu uma carreira universitária e de investigação nos Estados Unidos. Destacou-se como escritora desde bastante jovem, publicando a um ritmo assinalável e explorando vários géneros, desde o romance (como o fabuloso «Adeus Princesa», adaptado ao cinema pelo realizador Jorge Paixão da Costa) à divulgação científica, passando pela crónica ou pela literatura infanto-juvenil. É professora na Universidade Lusófona de Humanidades e Tecnologias.

sexta-feira, 13 de abril de 2007

Goethe metido na gestão

Em tempos, numa rubrica de escrita para uma publicação da área da gestão, fui surpreendido por uma citação de Goethe, qualquer coisa como «o que sei, sei-o apenas para mim». Exactamente, surpreendido, sem saber o que arranjar para contrapor; porque eu tinha de contrapor também uma citação, para não fazer má figura. Logo eu que, admito-o, nunca fui bom com as frases, ou antes, com as citações (porque com as frases, genericamente, até que me vou safando). Para contrapor àquilo não consegui arranjar nada, e como havia por onde pegar... Até depois, em conversa com uma amiga, surgiu à baila (da parte dela, claro) uma frase do douto e até, em certa medida, tonitruante Johann Wolfgang von Goethe. Qualquer coisa como «as pessoas tendem a colocar palavras onde faltam ideias», inegavelmente algo bom para contrapor àquilo do «sei apenas para mim». Mais do que isso, algo bom para aquela rubrica de gestão, área onde tantas vezes há que dizer sobre o assunto, esse de colocar palavras onde faltam ideias. E onde, já agora, tanta gente sabe apenas para si própria.
A gestão, neste aspecto, palavras e ideias, já se vê, é um bocadinho como a política, embora por vezes até a bata aos pontos. Nem seria preciso lembrar, mas enfim, lembre-se: as sinergias, as competências distintivas, os contextos, os nichos de competitividade, a sustentação (palavra boa para a política – sustentação, no sentido de sustento), o músculo financeiro, para já não falar dos estrangeirismos e daquela estranha coisa da janela de oportunidade (também admissível na política, e sempre no sentido de ser aberta, porque fechar, isso de fechar, só as portas – «foi uma porta que se fechou»); e, melhor, uma coisa que ouvi num banco (ou, para evitar confusões, numa instituição bancária), o facto de a gestão do risco assentar em exigir aos clientes «um certo background para trás». Sim, num banco instituição bancária, não foi num banco de jardim...
Mas Goethe, acabei por encontrá-lo de novo, imagine-se, num livro de gestão, ou antes, para gestores. Um livro recheado de frases ditas célebres. E lá, no livro, a certa altura, no meio de tanta freguesia inclusive polvilhada de gurus da gestão (norte-americanos, já se vê), o panzer Goethe, poeta, dramaturgo e cientista, apareceu-me a dizer que «toda a gente deseja ser alguém, mas ninguém quer crescer». Coisa de fazer qualquer gestor pensar, se calhar qualquer pessoa, independentemente da actividade. Foi ele, Goethe, que me fez despertar a curiosidade sobre o tipo de pessoas que apareciam no livro; gurus, políticos, empresários, gestores, desportistas, militares, golfistas (vulgo jogadores de golfe, para que não se pense que uma gralha deturpou o termo «golpistas»), de tudo lá aparecia, mas a prevalência, imagine-se, era de escritores.
E, junto com Goethe, que escritores apareciam, para pôr os gestores a pensar? Atente-se na lista, onde se nota a falta da nata portuguesa – mas também, quem colocar, assim dos verdadeiros internacionais? Saramago («o Nobel da Literatura está com a revolução cubana»)? Lobo Antunes («os escritores são todos uns chatos; eu, se fosse mulher, não ia para a cama com nenhum»)? O Torga, com as cepas de urze e o cascalho lá das serranias? Bom, eis alguns dos mais conhecidos: Francis Bacon, Aldous Huxley, Ralph Waldo Emerson, Dale Carnegie (este a aparecer quase a cada página), Bernard Shaw, T. S. Eliot, Gabriel García Márquez, George Sand, Henri Bergson, Washington Irving, Charles Dickens, Julia Sorel, Oscar Wilde (que não podia faltar, ainda que aparecendo com uma frase que não sei se no mundo da gestão fará muito sucesso, «a consistência é o último refúgio das pessoas pouco imaginativas»), André Gide, Santo Agostinho, Mark Twain, Shakespeare, Tolstoi, Anaïs Nin... Claro, nota-se a insistência nos norte-americanos, mas o mesmo já acontece quando toca a atirar com gurus.
A levar com professores assim, resta saber por que mares voará, um destes dias, o comboio dos gestores?

quinta-feira, 12 de abril de 2007

Mediterrâneo RH (2)

O segundo texto que aqui coloco sobre a gestão das pessoas num espaço que é denominado como «Euromediterrâneo» é o de uma entrevista que fiz com um dos representantes portugueses no projecto «Ágora RH». Chama-se Luís Bento e é consultor de gestão; nos últimos anos, tem dedicado particular atenção às questões ligadas à responsabilidade social das organizações.


Luís Bento
«Muito do que somos está aqui, no Mediterrâneo.»

Luís Bento foi um dos representantes da Associação Portuguesa dos Gestores e Técnicos dos Recursos Humanos (APG) no projecto «Ágora RH». Nesta pequena entrevista, faz uma síntese da participação portuguesa.
Como nasceu este projecto e qual foi nesse momento a participação portuguesa?
Não se pode precisar com rigor um momento específico para o nascimento do «Ágora RH». A ideia do projecto foi nascendo da necessidade de reencontro entre todo o espaço mediterrânico. Sempre existiu uma tradição de convidar as associações do Magreb para os congressos das associações do sul da Europa e dessas participações foi ganhando forma a ideia de se fazer algo em conjunto A Cimeira de Barcelona – MEDA –, ao redefinir a posição europeia de colaboração com o Magreb num quadro de cooperação inter-regional, facilitou todo o processo. O desenho e os contornos finais do projecto foram depois trabalhados num brainstorming em Paris, no qual participei em representação da APG, juntamente com o presidente da Direcção. A APG trouxe ao projecto uma grande experiência internacional de multi-culturalidade e de diálogo com todas as correntes associativas – a sua história; porque a APG é uma das mais antigas associações da Europa e do mundo, e é imensa a sua experiência de participação em diferentes redes colaborativas que tratam de questões de grande actualidade e inovadoras. O conhecimento mútuo, de muitos anos, entre a maior parte dos dirigentes associativos, foi absolutamente fundamental, pois projectos desta natureza só podem acontecer entre pessoas que já se conhecem, quando já existe uma relação.
Qual o grande objectivo desta participação?
O grande objectivo foi disponibilizar toda a nossa experiência e todo o nosso conhecimento às associações congéneres, além de aprender com as suas experiências e práticas – tão ricas e diversas – e contribuir para o reforço da identidade histórica mediterrânica, pois o que existe de mais relevante na nossa identidade, nos nossos hábitos, está nesta região. Temos andado virados para outros espaços – nórdico, anglo-saxónico, asiático –, esquecendo que muito do que somos está aqui, no mare nostrum, no Mar Mediterrâneo.
Que balanço faz do projecto, em termos globais?
No que respeita às conclusões obtidas, um sucesso; pela primeira vez, de forma estruturada, foi possível conhecer as grandes tendências demográficas da região mediterrânica, os diferentes modelos de gestão de recursos humanos, as práticas de responsabilidade social das organizações e o próprio funcionamento e as boas práticas das associações de recursos humanos. E tudo isto em colaboração com a Universidade Euromediterrânica – a Euromed Marselha – e dentro de um quadro de verdadeira cooperação entre países com influências e modelos políticos e religiosos tão diversos. É evidente que existiram dificuldades de vária ordem, mas todas foram ultrapassadas através do esforço dos dirigentes associativos e dos técnicos que contribuíram para o projecto e também dos mecanismos de entreajuda entretanto desenvolvidos.
E quanto à integração de uma visão genuinamente portuguesa nesse projecto?
Os nossos maiores contributos foram em três planos diferentes: vasta experiência de gestão multicultural, o que facilitou o termos assumido muitas vezes papéis de liderança; competência técnica na participação em gestão de projectos internacionais; e o prestígio internacional da APG, que possibilitou ultrapassar algumas dificuldades que a própria natureza do projecto colocou. A visão genuinamente portuguesa esteve presente nomeadamente no terceiro tema do projecto – responsabilidade social das organizações –, no qual a nossa experiência levou a que os parceiros nos atribuíssem a respectiva liderança.
Em que grandes áreas o projecto gerou conclusões? E como explica o enfoque nessas áreas?
O projecto gerou conclusões sobre os temas que constituíam o próprio objecto; ou seja, a demografia, os modelos de gestão de recursos humanos, as boas práticas associativas e a responsabilidade social das organizações. Como conclusões mais salientes, talvez as problemáticas demográficas, que associadas ao nível de desenvolvimento económico das diferentes economias vão colocar desafios brutais à Europa e aos países do Magreb. Na margem norte, a natalidade quase estagnada; na margem sul, ainda a crescer de forma significativa, mas com a melhoria do desenvolvimento económico do Magreb a procura da Europa para trabalhar vai estagnar e talvez estancar, dentro de cinco anos, exactamente numa altura em que a Europa vai necessitar de muita mão-de-obra. Diria que o Magreb como fonte de recrutamento de mão-de-obra para o sul da Europa está a desaparecer. Realço também o domínio da responsabilidade social e do desenvolvimento sustentado, no qual foi possível verificar os enormes desníveis entre os países da margem norte e os da margem sul, principalmente nas questões ambientais e de eco-eficiência.
Dessas áreas, em qual ou em quais se destacou o contributo de Portugal?
A contribuição portuguesa foi assinalável nos diferentes domínios; mas, necessitando de destacar algo, talvez as boas práticas associativas – onde a revista «Pessoal» foi um dos casos de estudo – e a respeitante á responsabilidade social das organizações, em que a APG demonstrou deter um conhecimento e uma experiência que foram muito úteis a todos os parceiros. Aliás, isso mesmo foi realçado durante o colóquio final do projecto.
Que desafios coloca um espaço que se procura seja de encontro – e neste caso em termos de gestão das pessoas – quando ao mesmo tempo é um espaço que funciona como um muro entre dois mundo, um mais rico, outro mais pobre?
O espaço do Mediterrâneo é um espaço sui generis, pois além de um espaço de partilha de um elemento comum – o mare nostrum, o nosso mar – é também um espaço de partilha de identidades, de referências linguísticas, de histórias de conquistas e reconquistas, de formas de ser e de estar. Ao contrário de outros espaços que, em primeiro lugar, partilham e integram as respectivas economias, o Mediterrâneo é um espaço identitário. E no quadro dessa identidade subsistem modelos de desenvolvimento económico diferenciados, de base continental – os países da margem sul encontram-se no continente africano. As assimetrias – riqueza na margem norte, pobreza na margem sul – resultam essencialmente disso mesmo. Todavia, e paradoxalmente, a riqueza da margem norte depende hoje, essencialmente, da energia produzida na margem sul – principalmente o gás natural da Argélia. O espaço do Mediterrâneo está a reencontrar-se, a reafirmar-se, e não existe já aquele muro que de facto existiu no passado. As economias estão a complementar-se e, nos próximos anos, vamos assistir a um desenvolvimento fantástico nos países da margem sul, que irá esbater os diferenciais de riqueza que hoje são uma realidade.
O que é que aprendeu, em termos pessoais, com a sua participação no projecto «Agora RH»?
Conheci novas realidades geopolíticas e religiosas, encontrei respostas para dúvidas que tinha sobre o que é isto de ser português e de ser mediterrânico, reencontrei algumas raízes… E se calhar construí uma nova visão deste espaço de História e de memórias que, seguramente, é o nosso espaço. Nós somos daqui.

quarta-feira, 11 de abril de 2007

Mediterrâneo RH (1)

Nos próximos dias, conto publicar aqui uma série de textos sobre a gestão das pessoas num espaço denominado «Euromediterrâneo». Esses textos resultam da minha presença no colóquio de síntese de um projecto ligado ao tema. Foi a 23 e 24 de Novembro do ano passado, em Marselha, na Euromed Ecole de Management. O projecto, que leva o nome de «Ágora RH», junta diversos países que têm em comum o facto de pertencerem a um espaço em que o Mar Mediterrâneo é a grande referência. Este primeiro texto é uma apresentação do projecto. Depois, publicarei várias entrevistas que fiz, com pessoas de diferentes países.

Um encontro do Mediterrâneo
O projecto «Ágora RH» junta diversas associações ligadas à área de recursos humanos em oito países da zona do Mediterrâneo. Pretende-se com ele analisar as práticas de recursos humanos no denominado espaço «Euromediterrâneo». As associações agrupadas na Federação Mediterrânea de Recursos Humanos (FMRH), fundada em 2002, são as seguintes: APG – Associação Portuguesa dos Gestores e Técnicos dos Recursos Humanos (Portugal); AEDIPE – Associación Española de Dirección de Personal (Espanha); AIDP – Associazione Italiana per la Direzione del Personale (Itália); ANDCFP – Association Nationale des Directeus et Cadres de la Fonction Personnel (França); AGEF – Association Nationale des Gestionnaires et Formateurs des Ressources Humaines (Marrocos); ALGRH – Association Algérienne des Ressources Humaines (Argélia); ARFORGHE – Association des Responsables de Formation et de Gestion Humaine dans les Entreprises (Tunísia). A estas sete associações há a juntar a associação da Eslovénia (ZDKDS – Zveza Društev za Kadrovsko Dejavnost Slovenije), uma outra de França (AGRH – Association de Gestion des Ressources Humaines) e o Institut International de l’Audit Social (IAS), também de França. Além, é claro, da Euromed, a escola de gestão de Marselha, que liderou o projecto.
O objectivo definido para o projecto «Ágora RH» foi a criação de uma comunidade de universitários e de profissionais de recursos humanos para a partilha das práticas ligadas à gestão das pessoas nas organizações nos países do Mediterrâneo. Para o projecto foram definidos quatro temas: evoluções demográficas e impacto sobre a função recursos humanos; evolução da função recursos humanos; responsabilidade social das organizações; e benchmarking entre associações. As inúmeras reflexões deram origem a dois livros («Ressources Humanines en Euroméditerranée», Vols. I e II), publicados durante o ano de 2006 pelas Editions Euromed Marseille com a finalidade de permitir a gestores e especialistas a compreensão das especificidades e das perspectivas da função recursos humanos no espaço Euromediterrâneo.
No colóquio de síntese, participaram inúmeros especialistas em recursos humanos, directamente ligados às associações que integraram o projecto ou por elas convidados. Participaram também representantes de outras associações nacionais, que têm de momento o estatuto de observadores no projecto: Malta, Chipre, Roménia, Síria, Senegal e Hungria (estes dois últimos são exemplo de realidades muito próximas de países do Mediterrâneo).
François Silva [publicarei uma entrevista com ele num dos próximos dias], professor da Euromed e coordenador do projecto «Ágora RH», apresenta-o assim no prefácio que escreveu para os livros atrás referidos…
«O projecto foi desenvolvido ao longo de três anos. Temos hoje integrados oito países da bacia do Mediterrâneo, cinco países europeus (os quatro países latinos mais a Eslovénia) e os três países do Magreb (Marrocos, Tunísia e Argélia). A Euromed Marseille Ecole de Management lidera o projecto. A instituição decidiu apostar nesta reflexão sobre a problemática euromediterrânica. Com uma história rica e uma posição geográfica privilegiada, Marselha, um porto do sul, simboliza o mundo euromediterrânico, pela sua diversidade, pela sua mestiçagem, pelas suas tenções.»
Depois, François Silva descreve os temas do projecto…
«As mutações demográficas no espaço euromediterrânico e as suas consequências sobre a população activa, sobre as profissões e as competências, tendo por horizonte 2005. O objectivo aqui é conhecer e compreender as evoluções e as tendências ao nível das profissões e das competências: mutações demográficas, características da população activa por país, défices e excedentes de mão-de-obra nalguns países e nalguns sectores e cooperação possível entre países das costas norte e sul do Mar Mediterrâneo.» Este foi o primeiro tema.
Segundo tema… «Caracterização da função Recursos Humanos e perspectiva do futuro no contexto euromediterrânico. O objectivo passa por fazer uma caracterização da função Recursos Humanos em cada país e perspectivar aquilo que poderá ser no futuro, definindo claramente as competências necessárias para levar a cabo a sua missão enquanto função relevante nas organizações. Será que a função Recursos Humanos reflecte uma tipologia de cultura de empresa ou de país que por sua vez reflecte uma tipologia das pessoas?»
Terceiro tema… «A responsabilidade social das empresas no espaço euromediterrânico e a necessidade de definir um referencial claro, pertinente e comum aos países da bacia do Mediterrâneo. O objectivo é estabelecer o estado das coisas em termos de responsabilidade social das empresas nos diferentes países, integrá-la no pensamento da gestão no espaço euromediterrânico tendo em conta o contexto de cada país, as pessoas e as especificidades empresarias (por exemplo, os sectores de actividade…). A ideia é a de colocar o acento nas interacções possíveis entre três parâmetros: indivíduos, organizações e países.»
Finalmente, o quarto tema, um pouco diferente dos anteriores no modo como é enunciado… «Troca de boas práticas entre as associações (boas práticas de cada associação). Aqui os objectivos gerais têm a ver com a escolha, de entre as práticas actuais das associações de gestão de recursos humanos, de um certo número de acções que devam ser partilhadas. Este tema propõe-se levar a cabo um verdadeiro benchmarking organizacional entre as associações.»
Para estes quatro objectivos, foram estabelecidos prazos: até meados de 2005, um primeiro trabalho de reflexão em cada país; a partir de meados de 2005, partilha da informação recolhida e primeira reflexão conjunta entre as associações; fim de 2006, um colóquio de síntese a realizar em Marselha. Os objectivos foram considerados pela generalidade dos participantes neste colóquio como cumpridos.
Na opinião de Ahmed Mana, presidente da FMRH, «um trabalho desta importância deve ser inscrito no tempo, por exemplo tomando a forma de um observatório permanente de Recursos Humanos no espaço do Mediterrâneo, e dando início a outros estudos e a outras reflexões». Ahmed Mana, que exerce o cargo em representação da sua associação, a da Argélia, refere ainda a sua esperança de que seja possível «oferecer aos novos aderentes, a todos os que se quiserem juntar ao projecto, a possibilidade de contribuir para renovar esta experiência, estendendo-a também à zona oriental do Mediterrâneo».

Mais informações no site do projecto «Ágora RH».