quinta-feira, 31 de maio de 2007

Só para adultos

«Só para adultos» é um texto que escrevi em 2003 sobre a educação e a formação de adultos no nosso país, muito especialmente abordando o papel da ANEFA, liderada de 2000 a 2002 por Márcia Trigo. Aliás, é Márcia Trigo, uma mulher que pode ser descrita como uma verdadeira força da natureza, a protagonista desta história.


Só para adultos, pouco qualificados e certificados, era a educação e a formação disponibilizada pelo projecto da ANEFA, uma agência governamental que depois foi integrada numa direcção-geral, mas sempre com os jovens ao barulho. A «estória» é contada por uma mulher que vive intensamente cada projecto em que participa, Márcia Trigo.

Márcia Trigo foi presidente da ANEFA, a Agência Nacional de Educação e Formação de Adultos, de Janeiro de 2000 até Dezembro de 2002, tendo depois regressado ao seu lugar de origem, assessora principal do quadro do Ministério da Educação [entretanto, acabou por mudar para outro projecto, na Universidade Autónoma de Lisboa – ver nota biográfica no final, escrita na altura em que foi escrito este texto, mas adaptada agora, em 2007], quando as competências da agência passaram para uma nova instituição, a Direcção-Geral de Formação Vocacional. Juntaram-se as questões da educação e da formação de adultos com outras bem diferentes ligadas à formação vocacional para jovens. De qualquer forma, tudo o que tenha a ver com essa alteração é o que menos interessa para aqui. Situemo-nos então nos tempos da ANEFA, quase três anos, e no projecto de uma mulher que fala dele com uma incontida paixão.
Márcia Trigo... «A ANEFA tinha uma dupla tutela, do Ministério do Trabalho e da Solidariedade e do da Educação, articulando-se com vários departamentos dos dois ministérios e com o ministério responsável pela Administração Pública, o das Finanças e contando com o apoio de um conselho consultivo, integrado por representantes dos diversos parceiros sociais e por especialistas em educação/ formação e desenvolvimento. Pelo país fora, articulava-se e cooperava com mais de oito centenas de instituições locais que desenvolviam ou passaram a desenvolver projectos de educação e formação de adultos, conducentes à certificação escolar e/ ou profissional.» No meio de tão grande engrenagem, como se terá saído esta mulher? Fica a resposta para o final.

O problema
Para já, o problema. Márcia Trigo deparou-se no início do ano 2000 com a situação de em Portugal existirem, em 4,7 milhões de adultos activos, «mais de 3,2 milhões sem as competências básicas ou críticas para poderem continuar a aprender ao longo da vida»; por outro lado, «os dados disponíveis evidenciavam que a população portuguesa (sobretudo depois da entrada na União Europeia e da muita e diversa formação realizada) possuía conhecimentos e competências superiores à sua certificação; ou seja, Portugal é um país pouco qualificado mas também sub-certificado, impondo-se actuar nestes dois campos: formar/ qualificar e certificar». Além disso, «Portugal estava numa situação inversa à da maioria dos países mais desenvolvidos». Por exemplo, segundo dados de 1999, «na Dinamarca e na Finlândia, para a população entre os 25 e os 64 anos, a percentagem dessa população com apenas seis anos de escolaridade não tinha qualquer significado, enquanto na Holanda rondava apenas os 12%, mas em Portugal, pasme-se, era de 67%, com a média dos países da OCDE nos 16%». «Passando para os nove anos de escolaridade: Dinamarca, 20%; Finlândia, 28%; Holanda, 23%; Portugal 12%; média da OCDE, 20%. Ensino secundário: 80%, 72%, 64%, 21% (Portugal), com a OCDE nos 62%. Ensino superior: «27%, 31%, 22%, 10% (Portugal) e a OCDE com a média de 22%, sempre para a população dos 25 aos 64 anos que, na maioria dos países da OCDE, constitui a população activa ou que trabalha, já que até aos 25 anos a maioria está na escola, na universidade ou em centros de formação». Ou seja, «situamo-nos, em todos os níveis de formação, completamente à margem da tendência dos países desenvolvidos». Outra comparação «preocupante», jovens entre os 15 e os 29 anos que não frequentaram o ensino secundário e não detêm o respectivo diploma: «22%, 10%, 19%, 47% (Portugal), sendo 20% a média da OCDE». E ainda outra, «que talvez dê mais que pensar», alunos do ensino secundário, matriculados em cursos com orientação geral ou com orientação profissional e tecnológica: «Dinamarca, respectivamente, 46,7% e 53,3%; Finlândia, 46,8% e 53,2%; Holanda, 33,4% e 66,6%; Portugal, 75,0% e 25,0% (pasme-se de novo); média da OCDE, 49,4% e 47,0%».
A partir desta caracterização e do conhecimento da realidade, em comparação com muitas outras tendências nos países com os quais Portugal compete, a análise de Márcia Trigo... «Portugal tem baixíssimos índices de qualificação a todos os níveis, sendo inqualificável a situação dos portugueses activos, dos 25 aos 64 anos, que não possuem sequer o nono ano de escolaridade ou equivalente, (mínimo obrigatório na União Europeia), num país em que sobram instalações escolares e professores (mais de 6.000 do quadro com horário zero) e no qual a população em idade escolar está em declínio rápido. Temos os recursos necessários, mas falta-nos capacidade de decisão, a persistência para organizar, para alinhar estrategicamente, gerir, monitorizar, liderar e avaliar.» Mais... «Portugal tem os piores níveis de formação ao nível secundário, um terço da média da OCDE, independentemente da orientação desse ensino, que por cá é predominantemente generalista, não conduzindo a qualquer qualificação, contra as teorias das boas razões, as regras de bom senso e as gritantes regras de desenvolvimento, inovação e competitividade. Somos, em educação e formação, o país menos desenvolvido da OCDE, o que condiciona tanto o futuro próximo como o longínquo, já que se trata de uma questão que abrange várias gerações e não apenas uma, como por vezes se afirma. No ensino superior, sem analisar a sua qualidade, a população entre os 25 e os 64 anos que detém um diploma é de apenas 10% em Portugal, contra 22% de média dos países da OCDE e valores muito superiores para, por exemplo, a Finlândia com 31%, a Dinamarca com 27%, a Holanda com 22,0%. Ficamo-nos por menos de metade da média da OCDE e menos de um terço da Finlândia. Há correlações elevadíssimas entre um ensino superior demasiado académico e divorciado da realidade e mesmo assim com percentagens muito baixas, seja qual for a comparação que fizermos.»

A procura de soluções
Procurando soluções para o problema, respeitante à missão da ANEFA (os adultos activos sem o nono ano de escolaridade certificado), Márcia Trigo – com a equipa que a acompanhou – definiu uma política para a qualificação e a certificação dos referidos 3,2 milhões de adultos que em Portugal não possuem «as competências básicas ou críticas para continuarem a aprender ao longo da vida». Definiu-a, «depois de observar o que se fazia noutros países e o que se fazia, ou não, em Portugal», e implementou-a. «Tinha uma pequena equipa de 10/ 12 pessoas à chegada à então recém-criada ANEFA, a qual durante dois anos havia funcionado como grupo de missão. Não deitei nada fora, nem excluí ninguém. Aproveitei as pessoas que queriam trabalhar e o conhecimento produzido e herdado, integrando outras pessoas, oriundas dos quadros dos dois ministérios da tutela e ainda professores (cujo número é muito superior às necessidades das escolas e dos jovens em idade escolar). Há sempre lugar para todas as pessoas competentes, motivadas e empenhadas. O que é preciso é saber o que se quer, conhecer as pessoas e as suas competências, mobilizando-as e liderando-as continuadamente».
Nos quase três anos de presidência de Márcia Trigo, a ANEFA conseguiu apoios por parte de responsáveis e agências governamentais. «Negociei o indispensável e estruturante; por exemplo: o financiamento dos Cursos de Educação e Formação de Adultos que, em Dezembro de 2002, ultrapassavam os 700; o próprio financiamento da ANEFA; a criação de pequenas e flexíveis estruturas territoriais; fizemos aprovar, publicar e aplicar a legislação necessária ao cumprimento dos objectivos fixados para a agência em áreas inovadoras.» Márcia Trigo concorda que teve dificuldades, num país em que o mais comum é encontrar dirigentes e técnicos a «puxar para trás», a não acreditar no investimento em formação, qualificação e certificação das pessoas; «mas criámos 84 Centros de Reconhecimento, Validação e Certificação de Competências (CRVCC), dos quais 42 já se encontravam em funcionamento em Dezembro de 2002, estando mais 14 prontos a iniciar a actividade logo em Janeiro, em inúmeras instituições acreditadas pela ANEFA (associações empresariais – nacionais, regionais e sectoriais –, escolas profissionais e secundárias, centros de formação, grandes empresas, confederações patronais e sindicais, autarquias, associações de desenvolvimento local, escolas de formação hoteleira, etc.), sempre co-financiados com fundos comunitários, o que teve de ser negociado e renegociado». «Outras instituições poderão também vir a criar Centros RVCC auto-financiados; têm-no feito as que «percebem que há muitas pessoas com conhecimentos e competências obtidas na prática e em inúmeras acções de formação, mas sem certificado escolar e profissional para a continuação de estudos ou o acesso à carreira profissional.»
Ainda Márcia Trigo... «Os Centros RVCC identificam e validam as competências dos adultos, atribuindo um certificado (equivalente aos certificados dos diversos níveis de ensino) aos que demonstram possuir as competências definidas no chamado referencial de competências-chave. «Na ANEFA, não fazíamos directamente a formação, nem éramos um centro de reconhecimento e certificação. Constituímo-nos e assumíamo-nos como uma estrutura de uma Administração Pública moderna que reserva para si diversas funções, normativa, reguladora, de produção de materiais de referência, de monitorização, avaliação e formação das diferentes equipas de profissionais e, ainda, a de mobilização social, de benchmarking e de difusão de best practices. Por isso, e em primeiro lugar, definimos referenciais de competências, concebemos e produzimos uma infinidade de material técnico de apoio, definimos o modelo dos cursos e dos Centros RVCC, sendo que no caso destes últimos os instalámos ou ajudámos a instalar e a funcionar. E desenvolvemos campanhas de mobilização social, utilizando nos media, o que é incomum na Administração Pública, em especial a este nível básico e para os adultos, sempre tão esquecidos em Portugal, embora seja sobretudo com eles que o país produz, compete, pode inovar e empreender.»

Os resultados
Através deste sistema, que integra também acções de formação complementar para todos os que não sabem tudo, muita gente melhorou e certificou as suas habilitações. Os exemplos são muitos. Márcia Trigo... «Apraz-me referir o caso de muitos empresários de sucesso de pequenas e médias empresas (PME), com conhecimentos e competências, mas que apenas tinham certificada a quarta classe, ou, quando muito, o sexto ano; e muitos outros profissionais, bombeiros, dirigentes de associações culturais, presidentes de juntas de freguesia, assessores de governadores civis, trabalhadores de museus e palácios nacionais, profissionais de turismo, homens e mulheres que adquiriram conhecimentos e competências e as viram certificadas, criando com isso um ambiente e uma cultura de grande auto-estima, de iniciativa, de abertura ao novo e, sobretudo, de gestão e crença em aprender, saber mais e possuir o respectivo certificado.»
Finalmente, a resposta que atrás se disse ficar para o final. No exame temático que a OCDE realizou à política de educação e formação de adultos em Portugal, é referido que «o modelo e as práticas da ANEFA são profundamente inovadoras, operando uma inversão da perspectiva em relação a alguns pressupostos e algumas práticas comodistas e burocráticas habituais, demonstrando que, no quadro da Administração Pública, é possível conjugar o trabalho de departamentos de Estado, habitualmente fechados no seu casulo burocrático, com o trabalho de instituições da sociedade civil, as mais diversas, dinamizando parcerias, responsabilizando indivíduos e associações, partilhando objectivos e entusiasmos, e tudo isso com uma enorme coerência, com coordenação e profissionalismo, fácil de verificar nos resultados alcançados em tão pouco tempo e a um ritmo muito pouco comum». E pronto.


Márcia Trigo fez toda a sua carreira ligada à educação, à formação e ao desenvolvimento. Iniciou a actividade profissional como docente do ensino básico, na cidade do Porto. Teve uma longa passagem por Moçambique, onde foi sub-inspectora e inspectora-coordenadora da educação, sempre com funções pedagógicas, tendo sido a primeira mulher a desempenhar tal função após concurso de provas públicas: de Pedagogia, Psicologia, Didácticas, História da Educação, Legislação Escolar e Práticas Pedagógicas. Regressou a Portugal em 1975, assumindo então as funções de técnica superior e dirigente do Ministério da Educação, sendo, sucessivamente, correspondente em Portugal do centro de formação da Organização Internacional do Trabalho (OIT), directora nacional dos serviços de formação profissional do Instituto de Emprego e Formação Profissional (IEFP), presidente da Comissão Nacional de Aprendizagem (CNA), directora-geral da COPRAI (Associação Industrial Portuguesa, AIP); presidente da Comissão Inter-ministerial do Programa «Educação para Todos» e presidente da direcção da Agência Nacional para a Educação e a Formação de Adultos (ANEFA). É licenciada em «História», tem o curso superior de «Ciências Pedagógicas», uma pós-graduação em «New Methods for Vocational Education, Research and Evaluation», pela Ohio States University (Estados Unidos), e é mestre em «Gestão do Desenvolvimento e Cooperação Internacional». Lecciona actualmente na Universidade Autónoma de Lisboa (UAL), onde é coordenadora científica de dois MBAs Executivos da Escola de Gestão & Negócios (EG&N), depois de durante alguns anos ter sido a directora de toda a business school.

2 comentários:

Unknown disse...

parabens Dra. Márcia grande mulher excelente trabalho

Unknown disse...

gégé mogadouro