sábado, 24 de março de 2007

O paradoxo

O primeiro contributo que coloco neste blog dedicado ao mundo da gestão das pessoas nas organizações é um texto intitulado «O Paradoxo», que escrevi para o «Anuário RH 2007», uma publicação editada pela International Faculty for Executives (IFE) e distribuída na sexta edição da «Expo’RH», que decorreu a 21 e 22 deste mês no Centro de Congressos do Estoril. O que me pediram foi que procurasse dar um pouco da minha visão do que é actualmente a gestão das pessoas no nosso país. O texto é o seguinte…

Uma vez alguém perguntou a um filósofo português se ele
era ortodoxo ou heterodoxo. A resposta que levou foi que nem uma coisa, nem outra; o filósofo, segundo afirmava, pleno de convicção, era mais pelo paradoxo. Chamava-se Agostinho da Silva esse filósofo e pelo tempo em que deu essa resposta estava a ser como que redescoberto, ou talvez apenas descoberto, depois de durante décadas ter sido por cá ignorado. Gozava os últimos anos da sua vida, numa casa da zona do Príncipe Real, em Lisboa, com alguns gatos por companheiros e com a lida da casa a ser assegurada pela empregada de uma amiga que vivia perto. A empregada chamava-se Manuela e eu lembro-me de a ver de vez em quando em casa de pessoas conhecidas, numas visitas a correr, invariavelmente a falar do «senhor professor» e dos gatos, e sempre bem disposta, sorridente, por vezes a soltar uma gargalhada, e por vezes também a meter nas frases uma expressão brejeira ou até um palavrão. Isto era no final da década de 1980, eu andava na faculdade e no curso de Gestão tinha uma cadeira chamada Gestão de Recursos Humanos dada por um senhor barrigudo que trabalhava nessa área numa grande empresa pública.
Passou mais de uma década e meia. E foi durante este período que eu me familiarizei com o mundo real das empresas. Por exemplo, com aquilo que se faz em termos de gestão de recursos humanos, ou com aquilo que tem vindo a ser feito. E a opinião que fui formando lembra-me a resposta de Agostinho da Silva. Não por eu, a respeito da gestão das pessoas nas organizações, ser mais para o ortodoxo, ou mais para o heterodoxo, tão-pouco por, afinal, me interessar apenas pelo paradoxo. Nada disso. Mas lembro-me da resposta do filósofo, sobretudo do termo paradoxo.
Gerir pessoas, seja em que tipo de organização for, parece-me algo simples, trabalhoso mas ao mesmo tempo simples, a exigir uma tremenda dedicação só que simples. Tenho presente, quando penso nisso, as muitas tarefas que implica, de maneira a que se cumpra coisas básicas; por exemplo, cuidar para que tudo funcione em termos, digamos assim, administrativos – refiro-me a contratos, pagamento de salários ou cumprimento de obrigações fiscais, sociais, de saúde, de segurança... Por estranho que possa ser, em muitas empresas portuguesas bastava que isto funcionasse para ser conseguido um grande feito. Depois, indo mais além, cuidar para que o respeito pela dignidade das pessoas não termine nos aspectos meramente administrativos. Falo da integração plena, valorizando a responsabilidade tanto por parte dessas mesmas pessoas como por parte da empresa, para que aspectos como a comunicação, a formação, a motivação, a avaliação ou a recompensa, entre outros, não existam apenas como algo que é preciso de alguma maneira meter na empresa, tantas vezes sem nenhuma tradução na prática, sem a mínima aplicação fora das folhas de um qualquer «powerpoint». Trabalhando também a este nível – e não será pouco o trabalho, inclusive o administrativo –, é bem possível que se possa falar da existência de uma efectiva gestão de recursos humanos, sem que seja necessário o refúgio naquelas expressões que de repente nos invadiram, na nossa própria língua ou em inglês, o capital intelectual, a produtividade (normalmente de mão dada com a competitividade), as inevitáveis competências, a performance, os quadros estratégicos, a responsabilidade social, os talentos (e a sua gestão) e por aí adiante, coisas que em muitas reflexões surgem tantas vezes a seguir a uma abertura que já se afigura como inevitável, aquela frase que martela com a ideia de vivermos tempos de mudança num mundo que tem como principal característica o facto de ser, já se vê, globalizado.
Coisas simples e trabalho, é no que penso quando o tema é a gestão das pessoas. Só que por vezes – e aqui é que surge o paradoxo –, quando falo com gente da área, a sensação com que fico é precisamente do contrário: nada de coisas simples, antes tudo bastante complicado, integrado em modelos, normas, pressupostos e até, imagine-se, paradigmas, e dentro de um portátil para que carregando numa tecla («à distância de um clic») tudo, digamos assim, se desenvolva. Ou seja, e isto sou eu a pensar, não deve dar muito trabalho.
Confesso que por vezes sinto a tentação de apostar nesta última via para a gestão de recursos humanos. Mas nunca fico convencido. E regresso à primeira, a das coisas simples e do trabalho, inclusive usando um portátil. E lembro-me do paradoxo.
Mas tudo isto talvez até nem seja, como dizer… Tudo isto talvez até nem seja importante, às vezes, quando penso em situações que vivi, as quais nem sequer de uma deficiente gestão de recursos humanos são indício. Apresento aqui uma delas, de forma resumida. Aconteceu num banco em que trabalhei… Fui atropelado junto à porta da sede, quando numa manhã ia a entrar, e os bombeiros levaram-me inconsciente para o hospital; a minha família vivia longe e no posto da polícia da zona não havia possibilidade de fazer chamadas interurbanas (e os telemóveis estavam apenas a aparecer). Muito a custo, um dos agentes conseguiu que do departamento de recursos humanos do banco fizessem a chamada; foi a única colaboração que tive da instituição para a qual trabalhava. Não devia ser um quadro estratégico… Acabei por recuperar ao fim de quinze dias. Paguei uma parte das despesas do hospital, ficando o resto a cargo do serviço nacional de saúde. Voltei ao banco para dizer que não queria lá continuar.
Claro que esta situação, como tantas outras que infelizmente ainda vão acontecendo em Portugal, está muito além de tudo o que me faz recordar do termo paradoxo. E isso, parece-me indiscutível, é vergonhoso para todos nós, enquanto sociedade; e, pensando bem, chega a ser assustador.

3 comentários:

Anónimo disse...

Parabéns pelo MUNDO RH
A propósito do parodoxo da GRH, alguém dizia que a gestão das pessoas se resumia à simples conjugação dos verbos "querer" e "poder" nos termos seguintes:
1.º As pessoas querem e podem - tudo bem;
2.º As pessoas querem mas não podem - formação;
3.º As pessoas podem mas não querem - motivação;
4.º As pessoas não querem nem podem - nada a fazer e quanto mais depressa fora da organização tanto melhor.
Embora caricaturalmente penso que em teoria os princípios da gestão dos RH estão todos aqui, o problema está na aplicação prática dos mesmos, em que se tende a "complicar" propositadamente para tentar fazer crer que a GRH se aproxima de uma "ciência" (que normalmente, esquece o essencial, as "pessoas-trabalhadores" a quem se dirige) só ao alcance de meia dúzia de predestinados.

José Guerra disse...

O paradoxo transparece a realidade nua e crua do que é gerir RH em Portugal. Talvez o problema seja mesmo continuarmos a designar-mo-nos por RH ou aliás as empresas continuarem a olhar para o melhor do seu capital como RH, ou seja um mero recurso.

Nesta matéria, continuamos com modelos muito elaborados e "copiamos" o que de melhor lá se faz fora. Mas na prática tudo se torna complexo porque as empresas não sabem (ou não querem) pensar de forma simples. O que refere no texto acaba por fazer todo o sentido!

Parabéns pelo Blog e pela sua forma "simples" de pensar...

José Guerra

Anónimo disse...

António,

Parabéns pela iniciativa, cada cantinho que surja a falar de gestão das pessoas é sempre muito bem vindo.