sábado, 31 de março de 2007

O nosso movimento sindical

Uma vez entrevistei o advogado Garcia Pereira. Foi uma entrevista longa, sobre o Código do Trabalho, o que ainda por cá vigora. Este texto resulta da parte da entrevista que cortei por questões de espaço. Acaba por ser um pouco da história do movimento sindical em Portugal.

Mas como contar a história? Eliminando as perguntas e pegando apenas nas afirmações de António Garcia Pereira? Mantendo o formato de entrevista? Ou tentando um ponto de equilíbrio, intermédio? Enfim, talvez procurando o equilíbrio, mesmo que nestas coisas o equilíbrio seja sempre difícil de atingir, e pegando no excerto de uma das respostas. «Nós temos processos de luta colectiva e processos grevistas que são dos mais brandos de toda a União Europeia. Uma luta colectiva com a IG Metal na Alemanha, ou com os trabalhadores da FIAT na Itália, ou os da Air France, em França, ou os da Ibéria, em Espanha, é outra coisa.» Argumentei que se tratava dos grandes países da Europa, mas a resposta não se fez esperar. «Não é tanto por isso... Nós temos um peso muito forte do corporativismo. Quando ouvimos os sindicatos a dizerem ‘a greve, vírgula, a última arma dos trabalhadores’, onde é que isso está escrito? É uma concepção corporativa, para não dizer um pouco fascizante, acerca da greve. A greve não tem de ser a última arma dos trabalhadores. É uma arma de luta, que está seriamente posta em causa pelo Código do Trabalho, ao atribuir a definição dos serviços mínimos ao governo, o que significa que se tivermos um governo avesso aos processos grevistas vai definir como serviços mínimos serviços máximos. Começa por aqui. Ninguém fala da possibilidade de substituição dos trabalhadores grevistas. E não se diz quem tem de constatar isto, donde se presume que é o empregador ou o governo, que se se entender que não podem ser prestados os serviços mínimos ou até os serviços necessários à manutenção e à segurança de instalações e equipamentos, pode haver substituição de trabalhadores grevistas. Isto inutiliza uma greve.»
Sugeri ser uma das explicações para a quebra do movimento sindical. António Garcia Pereira... «Os sindicatos estão confrontados com propostas paternais que dizem ‘ou agora tu vens negociar abaixo da lei para teres ainda alguma coisinha e manteres alguma convenção colectiva de trabalho ou então vais ficar sem nada’. É o estado de sítio na contratação colectiva. E ninguém fala disto. Ou melhor, estou a ser injusto, as duas centrais sindicais até reconheceram que com a entrada em vigor do novo código se vive a completa especulação na contratação colectiva e que os patrões estão a apostar na caducidade das convenções colectivas de trabalho.» Ou seja... «Andou-se a discutir minudências. Os cinco dias de faltas injustificadas, ou 10 interpoladas, isso são peanuts. É completamente secundário, comparado com o estado de necessidade em que estão os sindicatos.»
Centremo-nos então nos sindicatos. «Isto é uma questão antiga. Tem a ver com todos os desafios que as profundas modificações do mundo do trabalho, sobretudo nos últimos 20 anos do século XX, trouxeram aos sindicatos. A dispersão geográfica, o aumento da precariedade contratual, a individualização das relações, tudo isso rarefez, tornou difícil, o exercício da actividade sindical; mas são factores externos ao movimento sindical. E um actor social que queira reflectir sobre a sua posição tem que pensar nos factores internos, e esses são o próprio movimento sindical, que primeiro foi surpreendido...»
Garcia Pereira foi avisando, «isto não tem acrimónia, até porque também os estados, os partidos políticos, as organizações em geral, todos foram surpreendidos». E concretizou... «O estilhaçamento das noções tradicionais de tempo e de espaço que as novas tecnologias trouxeram – o curto prazo são seis minutos e não seis meses –, tudo pode acontecer em tempo real, a Swissair pode passar a ter o centro de reservas na Índia porque opera lá durante o dia quando nós estamos a dormir na Europa e tem lá um engenheiro de sistemas informáticos licenciado pela melhor das universidades norte-americanos que custa um décimo de um norte-americano e um quarto de um suíço, o aparecimento de novas categorias de trabalhadores, todo esse jogo pôs em cheque as palavras de ordem, as tácticas, as políticas de alianças, os objectivos do movimento sindical tradicional, que levou muito tempo a perceber a necessidade de internacionalização das suas lutas e da sua organização, a permanente chantagem do dumping social que consiste em dizer a um trabalhador português ‘tu tá caladinho e aceita estas condições, porque se não queres eu salto daqui para a Lituânia, em 48 horas deslocalizo, e há lá quem aceite menos’. Isto só pode funcionar se os trabalhadores estiverem partidos internacionalmente; só há oposição a isto se a organização acontecer a nível internacional, se se lutar por que os padrões de salários na Lituânia sejam iguais aos nossos. Aí o jogo acabou.»
Apesar de a quebra de sindicalização não ter acontecido apenas em Portugal, por cá houve «características próprias». Vejamos... «Tínhamos algo que não era o movimento sindical, era uma organização corporativa horizontal, por categorias profissionais. O que se seguiu ao 25 de Abril foi um erro. Em vez de se demolir pela raiz a organização corporativa, abriu-se as janelas, agarrou-se nos indivíduos que vinham do tempo dos sindicatos nacionais, atiraram-se para a rua e meteram-se outros, os que chegaram no pós-25 de Abril. O sindicato, em si, permaneceu igual, com a mesma lógica de organização. Pior, logo depois de os sindicatos terem sido tomados pelas forças político-militares dominantes aprovou-se uma lei da unicidade que proibiu a criação de novos sindicatos no mesmo sector ou na mesma categoria. E a isto se soma um período inegável de ausência de democracia no interior dos sindicatos.» Exemplo... «Eu costumo dar como exemplo uma tristemente célebre assembleia do Sindicato dos Metalúrgicos no Pavilhão Carlos Lopes, em que todo o operário que distribuiu pontos de vista diferentes dos da direcção, fosse sobre o que fosse, levou pancada lá dentro e depois foi entregue às tropas do Copcon cá fora. Chegado aqui, o movimento sindical bloqueou. E permanece espartilhado com a lógica corporativa de organização horizontal por categoria profissional. O sindicato dos telefonistas tanto representa a telefonista da agência funerária Magno como a da Securitas, a da CUF ou a do Sporting; do ponto de vista de unidade de trabalhadores por sector de actividade ou por empresa, está completamente espartilhado, e mais, trata-se de sindicatos onde não há democracia interna nem alternativa externa. O resultado é que quando a lei da unicidade sindical foi revogada multiplicaram-se os sindicatos paralelos, como cogumelos depois da chuva, o que é um factor objectivo de enfraquecimento do movimento sindical. Isto, com os factores que referi, fez com que os sindicatos ficassem, sobretudo a partir de final da década de 1980, numa situação ultra-defensiva; deixaram-se acantonar numa lógica neo-corporativa de que os senhores existem para defenderem interesses socio-profissionais dos trabalhadores.»
Resumindo... «Os sindicatos laquearam-se de qualquer luta cívica. As grandes lutas pela defesa do ambiente, contra a desqualificação, pela qualificação dos trabalhadores deficientes, pela qualidade de vida... Os sindicatos alhearam-se. É quase incompreensível que numa zona como a da grande Lisboa, onde há 650 mil pessoas num movimento pendular casa/ local de trabalho/ casa, que nele gastam horas e horas das suas vidas, do seu tempo disponível, os sindicatos não assumam isto como uma das suas frentes de luta, chamando as associações empresariais, as autarquias, as empresas de transporte público, a Brisa, para discutirem o problema, que é grave. Perdeu-se completamente esta perspectiva. Os sindicatos deixaram-se acantonar numa perspectiva puramente defensiva de reivindicações salariais, e às vezes isto até é mal interpretado.»
Garcia Pereira fez mais uma ressalva, afirmando não estar a «dizer mal dos sindicatos». E prosseguiu... «Penso, aliás, que os sindicatos são hoje mais importantes do que nunca, sobretudo na época da individualização das relações de trabalho que o novo código faz. Só que assistimos a uma actuação sindical, em geral, em que se tenta vender tudo a troco de mais zero vírgula zero um por cento na tabela salarial, tudo, regras minimamente objectivas de progressão na carreira, infra-estruturas sociais, etc, foi tudo vendido por mais uns tostões. Depois, proposta sindical 10 por cento de aumento, resposta patronal zero vírgula um por cento... Malandros, vendidos, escravos do capital, não sei quê, não sei que mais, lacaios do capital, mas nós, que somos umas pessoas muito compreensivas e responsáveis, cinco por cento, patrão zero vírgula zero dois, e tal, andamos nisto, até que a certa altura o patrão diz zero vírgula zero dois mais 25 tostões no ticket-refeição, comunicado do costume com a grande vitória dos trabalhadores, não foi o acordo óptimo mas foi o acordo possível. Os sindicatos acantonaram-se completamente.»

1 comentário:

Conguitos disse...

Parabéns pelo novo blog. Relativamente ao tema os sindicatos considero serem necessários mas não da forma como agem. É necessário alterar e lutar pelo que realmente é importante.
As relações de trabalho mudaram é preciso entender-se isto e tentar de alguma forma mudar as mentalidades. Com isto mudam-se objectivos e os sindicatos tem mais do que obrigação pois existem muitas Pessoas que acreditam neles.