Sócrates/ Cavaco
Por que é que eles se dão tão bem?
Cooperação estratégica, é isso que tem marcado a actividade dos dois principais líderes políticos do país. Pelo menos é o que observa boa parte da comunicação social e acentuam muitos dos comentadores. Fala-se de um novo conceito na política portuguesa, de cumplicidades – estranhas ou já esperadas –, fala-se de tantas coisas. Por que é que será que Cavaco Silva e José Sócrates, à partida de áreas políticas diferentes, se dão tão bem?
A cooperação estratégica é ideia de Cavaco Silva, ou melhor, é expressão de Cavaco Silva, que já em tempos se lembrou de coisas bem diferentes, como as forças de bloqueio, o homem do leme (ele próprio) ou até os ajudantes (os ministros) – se bem que a questão dos ajudantes não seja tão diferente como isso, por implicar cooperação, mesmo que não seja estratégica. José Sócrates ter-se-á limitado a achar o conceito interessante, o conceito e tudo aquilo que poderia implicar. Isto é uma hipótese. Outras haverá, envolvendo jogos, combinações, fingimentos, manhas e o mais que se possa imaginar, ou adivinhar. Fica no entanto uma certeza, ou antes, duas: primeira, os dois principais líderes políticos do país têm actuado de forma a fazer com que a expressão «cooperação estratégica» possa fazer sentido; segunda, o facto de terem tomado essa opção causa estranheza em muita gente, como se o mais normal fosse protagonizarem um clima já nem se diz de guerra permanente, mas pelo menos de crispação.
Claro que há quem simplifique as coisas. Presidente e primeiro-ministro dão-se bem porque são «muito parecidos», embora apenas «de certa maneira». Vasco Pulido Valente acha isso. Pelo menos achou há uns tempos, num dos seus artigos do diário «Público», em que a determinada altura escrevia… «O doutor Cavaco e o engenheiro Sócrates são de certa maneira muito parecidos. Saíram os dois de um obscuro canto da província (um de Boliqueime, o outro da Beira) e em Lisboa, no Governo e, no caso de Cavaco, até em Belém, nunca verdadeiramente se adaptaram à cultura urbana. Vem neles sempre à superfície o constrangimento do estranho, uma certa reserva de quem não está em casa e uma atávica desconfiança da volubilidade e das maneiras de uma classe média e de uma burguesia com uma educação mais sofisticada e cosmopolita. Não ‘pertencem’. Mas, por isso mesmo, têm uma enorme vontade de poder, servida por uma enorme paciência e disciplina. É a velha história, que encheu dois séculos de literatura, do jovem que sobe à capital para a dominar, na sua variante moderna e portuguesa.» Cavaco Silva, recém-doutorado em literatura, ainda que na Índia e apenas por uma fugaz questão de honra, talvez pudesse tecer alguns comentários; José Sócrates, sem a muleta dessa «especialização», eventualmente também haveria de dizer qualquer coisita, se quisesse.
Em tempos não muito distantes, estando Cavaco Silva no lugar agora ocupado por José Sócrates, e com Mário Soares de armas e bagagens no Palácio de Belém, as coisas eram muito diferentes. Nem valerá a pena recordar os termos em que (ao que se diz) se referiam a um e a outro. Tão-pouco valerá a pena recordar as fogueiras que nunca se coibiram de atear, ou mandar atear, tendo o país por pano de fundo. Estranhamente, pouca gente estranhava que fosse assim. Agora, estranha-se a cooperação estratégica. Comenta-se insistentemente o facto de o presidente da República, a nossa, e o primeiro-ministro terem uma relação de grande entendimento, por vezes como se isso fosse algo de anormal, de bizarro até. Pela minha parte, nem é uma questão de estranhar, nem de achar normal. Tentei foi perceber as razões para que tanto falatório exista, só porque dois líderes parecem entender-se em vez de andarem às turras. E para isso procurei ouvir diversas opiniões.
Os comentários
Uma primeira questão que coloquei teve a ver, precisamente, com o facto de esta situação gerar tantos comentários. Por que é que isso acontecerá? Jorge Araújo, presidente da Team Work – uma empresa de consultoria na área de desenvolvimento de pessoas e equipas, com sede no Porto –, acha que a situação «reflecte, afinal, aquela que é uma das nossas grandes dificuldades». Na sua opinião, «tudo o que se refere a cooperar, ou trabalhar em equipa com base em confiança e respeito mútuo, tendo em vista objectivos comuns, não é propriamente um hábito cultural que esteja enraizado entre nós». E acrescenta… «Bem pelo contrário, tendemos para optar quase sempre pelo dividir para reinar ou pela tentativa constante de pensar primeiro nos interesses particulares em detrimento dos interesses colectivos. Servir o país? Nem pensar. Antes do mais nós, pensar pequeno, evitar quanto possível que o todo jamais seja maior do que a soma das partes, até mantendo a realidade que nos rodeia reduzida à dimensão que julgamos ser aquela em que melhor podemos sobreviver individualmente. Sempre que deparamos com exemplos que diferem deste tipo de comportamentos, estranhamos; é natural.»
Já na opinião de Glória Rebelo o assunto tem sido «um pouco empolado». Esta jurista e professora associada da Universidade Lusófona de Humanidades e Tecnologias, em Lisboa, não vê a cooperação com estranheza. «Pelo contrário, encaro-a com naturalidade. O presidente da República é constitucionalmente, e sobretudo, o garante da unidade do Estado e do regular funcionamento das instituições democráticas, e o primeiro-ministro o condutor político e, ao mesmo tempo, o responsável político perante o presidente e a Assembleia da República. Assim, vejo com naturalidade esta relação de cooperação institucional. No âmbito do espírito constitucional, o presidente deve ser um congregador político e se considerarmos o momento que vivemos, especialmente desafiante para Portugal – em que o país recupera de uma forte crise socio-económica –, é fundamental a presença de um presidente da República conciliador, dotado de habilidade política e da capacidade de, apelando ao envolvimento dos cidadãos nos processos de concretização das reformas necessárias, incutir nos portugueses a confiança num futuro melhor.»
Cristina Marques, managing partner da WeChange – uma empresa de consultoria, com sede em Lisboa, que orienta a sua intervenção na assumpção de que pessoas, processos e performance actuam em reciprocidade e intervêm nos resultados das organizações –, defende que «a leitura das pessoas é baseada nas percepções construídas sobre a imagem politica que cada um deles [Cavaco Silva e José Sócrates] passou ao longo da respectiva carreira». Acresce a isto «a forma como os nossos debates políticos são vistos pela população em geral – falta de diálogo, ninguém se ouve, posições intransigentes no processo negocial, incapacidade de encontrar plataformas comuns para progredir nos objectivos delineados». Ou seja, «de uma maneira geral, a classe política desrespeita os princípios-base de comunicação/ negociação, o que cria a expectativa de que é impossível encontrar pontos de convergência em políticos oriundos de diferentes quadrantes políticos». E neste caso «as características de cada um dos dois, com personalidades bastante marcadas e diferenças nos estilos de abordagem e de liderança, contribui para essa leitura de incompreensão do fenómeno».
Na mesma linha de raciocínio está Pedro Cunha, professor associado na Faculdade de Ciências Humanas e Sociais da Universidade Fernando Pessoa (Porto), instituição em que também coordena o mestrado em «Trabalho Social e da Área Científica de Serviço Social». Como acentua, a estranheza perante a cooperação, «em primeiro lugar, deve-se ao facto de, para além de estarem ligados a partidos políticos tradicionalmente rivais, ambos serem detentores de personalidades, quer pessoais, quer políticas, muito vincadas». Por outro lado, «a actual comunicação social portuguesa gosta de sustentar estes factos como eventualmente passíveis de polémica, o que na realidade poderá não se verificar».
Estratégias e características
Uma outra pergunta que coloquei foi sobre se a cooperação de que tanto se tem falado terá mais a ver com as estratégias particulares de Cavaco Silva e José Sócrates ou se na sua base estarão mais as características de cada um. Cristina Marques acredita que se trata acima de tudo de «um fenómeno que se sobrepõe aos aspectos personalísticos e às estratégias individuais», que aquilo que importa é «a determinação na prossecução dos objectivos que ambos partilham como um princípio-base nas atitudes perante os cargos políticos que desempenham» – no fundo, «o sentido de missão». Mas com uma advertência, a de que isto «só é possível se for suportado em pessoas que se respeitem e que se destaquem pelo nível de inteligência que possuem, quer cognitivo, quer emocional». É um pouco o que defende Glória Rebelo, para quem «a actual relação não está ligada às estratégias de cada um». Para a professora universitária, «é óbvio que quer o presidente da República, quer o primeiro-ministro, têm a consciência, enquanto estadistas, de que a estabilidade e a cooperação institucional são fundamentais para Portugal», e tudo «parece resultar, sobretudo, do entendimento natural que cada um tem relativamente à governação e ao desejo de que o país possa superar o actual momento menos bom ao nível socio-económico». Ou seja, «ambos comungam de um forte sentido de Estado e de cumprimento do dever de interesse público», algo que, «sem ser suficiente para assegurar a retoma dos indicadores socio-económicos, é bom para o país».
Um pouco em desacordo está Pedro Cunha, parecendo-lhe que «o presidente da República e o primeiro-ministro se estão a avaliar um ao outro e que os seus comportamentos de grande cooperação, basicamente, são estratégicos». Talvez possa estar aqui uma pista para descodificar a expressão «cooperação estratégica». Já Jorge Araújo prefere assinalar que «o aspecto mais relevante na actual relação é que qualquer um dos intervenientes demonstra antes do mais os cuidados necessários com a necessidade de preservar um fundamental equilíbrio relacional que sirva o país e não o partido ou o interesse particular de cada um». Mas depois diz… «Até quando assim se aguentarão, vamos a ver. Até agora têm sido modelares e uma verdadeira referência relativamente ao modo como se deveria fazer política em Portugal.»
Cooperação ou choque
Perante o espanto que muita gente tem mostrado a respeito do entendimento até agora irrepreensível de Cavaco Silva e José Sócrates, importa perguntar… Será que é mais normal dois líderes, num mesmo, digamos assim, território, cooperarem ou entrarem em choque? Pedro Cunha acha que «se forem líderes estrategas, cooperarão sempre que tal se revelar fundamental para objectivos que ambos considerem relevante alcançar». Cristina Marques refere que «depende acima de tudo dos objectivos que estão subjacentes» e que por isso «àqueles que verdadeiramente conseguem pôr os interesses do país acima dos individuais e partidários é que podemos e devemos chamar líderes». Isto porque, conforme explica, «a definição de líder não assenta em bases de defesa territorial, mas na capacidade de defender de forma assertiva os interesses da entidade, ou do grupo, procurando situações de vantagem competitiva que se traduzam numa plataforma de win-win e na capacidade de orientar e motivar os seus seguidores para a missão, não os deixando dispersar por factores de importância secundária».
Em relação a esta questão, Jorge Araújo é mais cauteloso, e foca mesmo o caso de Cavaco Silva e José Sócrates. «O que eu acho normal é que umas vezes se entendam, outras não. Naturalmente sem nunca perderem o necessário sentido de responsabilidade que lhes permita, em ambas as circunstâncias, dar prioridade ao interesse colectivo. Nada me diz que em privado – e espero bem que isso aconteça – por vezes não se entendam, mas que mesmo assim consigam negociar com flexibilidade e maturidade qual a solução que melhor sirva o país e a partir daí saibam, em público, parecer que estão sempre de acordo. Quem garante que o que está a acontecer não é simplesmente uma enorme demonstração de maturidade de cada um deles, que à vez, mesmo não estando de acordo com a solução escolhida, conseguem flexibilizar a respectiva posição?» Ou seja, «a questão central não deve ser se chocam ou não, porque em todos os colectivos de sucesso o confronto e a crise funcionam em determinadas circunstâncias como catalisadores do progresso, e espero bem que seja isso que esteja também a acontecer». No fundo, «o que importa é que, publicamente, tais discordâncias não transpareçam, tendo em conta os superiores interesses do país».
E o futuro?
Com um ano de cooperação e mais não se sabe quantos de coabitação, o que poderá ser o futuro? Glória Rebelo acha que «a cooperação se vai manter». Aliás, reforça, «não há nada que leve a prever o contrário». Razões para pensar assim… «Como se sabe, em muitos países europeus a articulação entre os chefes de Estado e de governo tem sido muito profícua. Repare-se no que se passa em Espanha, em França ou na Alemanha… A governação nestes países tem-se apoiado muito nesta complementaridade institucional, em particular no que respeita a acções de diplomacia económica. Em Portugal, a linha a seguir parece idêntica: veja-se que a recente visita do presidente da República à Índia revela esta complementaridade – a comitiva incluía cerca de 60 empresários interessados em estabelecer ou reforçar relações recíprocas de natureza comercial e económica.»
No mesmo sentido vai a opinião de Cristina Marques… «A cooperação manter-se-á, assim as pressões partidárias não constituam um entrave. O contexto em qualquer governo, assim como em qualquer empresa, é um facto determinante para favorecer ou minimizar o impacto de uma determinada postura.» Já Pedro Cunha não tem tantas certezas… «A acreditar no que temos visto, poderíamos dizer que a cooperação tem dados bons resultados para ambos, pelo que seria de supor a manutenção da mesma. No entanto, como ambos têm personalidades fortes, é também de supor que essa atitude de cooperação possa sofrer alterações no futuro.»
Em jeito de conclusão, um voto de Jorge Araújo… «Para bem do país, espero que tudo o que tem acontecido até ao momento corresponda exclusivamente a uma relação modelar em termos de desprendimento pessoal e puro exercício da defesa do interesse colectivo. Se assim não for, lamentavelmente, perderei por fim a diminuta esperança que vou mantendo quanto a ser possível ainda aqui e ali identificar alguns políticos que fazem a diferença para melhor.»
»»» CAIXA
Portugal SA
Imagine-se um cenário em que em vez de estarmos a falar de Portugal o que estava em causa era uma empresa. Portugal SA, por exemplo, com Cavaco Silva como presidente, ou chairman, como agora há quem goste de dizer, e José Sócrates como director-geral, ou então a ser identificado com aquela sigla patética de «CEO». O que é que poderia acontecer? As respostas são de Pedro Cunha, Cristina Marques e Jorge Araújo.
«Neste caso, creio que o chairman teria um comportamento de controlo, ainda que discreto, da actividade do director-geral.» [Pedro Cunha]
«Acredito que a prática reflectida no governo se verificaria. Ambos têm uma forte orientação para objectivos, respeito pela competência e pelo rigor, além, acima de tudo, de uma grande auto-confiança, que faz com não se sintam ameaçados um pelo outro. Para além disso, a abordagem diferente pode constituir uma vantagem competitiva; um mais directivo na forma de liderança, o outro mais consultivo e participativo, contribuiriam para um enriquecimento da liderança estratégica do negócio. O facto de se respeitarem e conseguirem ultrapassar as suas diferenças e as ideologias individuais criaria um clima de confiança favorável no grupo de gestores, que fortaleceria a direcção do mesmo no sentido pretendido.» [Cristina Marques]
«Cavaco Silva e José Sócrates numa empresa… Não faço a mínima ideia de como seria. Mas a questão central é a mesma. Consoante se dispusessem a servir o colectivo, ou cada um optasse por dar preferência à respectiva agenda particular, obviamente que seria diferente aquilo que aconteceria.» [Jorge Araújo]
Imagine-se um cenário em que em vez de estarmos a falar de Portugal o que estava em causa era uma empresa. Portugal SA, por exemplo, com Cavaco Silva como presidente, ou chairman, como agora há quem goste de dizer, e José Sócrates como director-geral, ou então a ser identificado com aquela sigla patética de «CEO». O que é que poderia acontecer? As respostas são de Pedro Cunha, Cristina Marques e Jorge Araújo.
«Neste caso, creio que o chairman teria um comportamento de controlo, ainda que discreto, da actividade do director-geral.» [Pedro Cunha]
«Acredito que a prática reflectida no governo se verificaria. Ambos têm uma forte orientação para objectivos, respeito pela competência e pelo rigor, além, acima de tudo, de uma grande auto-confiança, que faz com não se sintam ameaçados um pelo outro. Para além disso, a abordagem diferente pode constituir uma vantagem competitiva; um mais directivo na forma de liderança, o outro mais consultivo e participativo, contribuiriam para um enriquecimento da liderança estratégica do negócio. O facto de se respeitarem e conseguirem ultrapassar as suas diferenças e as ideologias individuais criaria um clima de confiança favorável no grupo de gestores, que fortaleceria a direcção do mesmo no sentido pretendido.» [Cristina Marques]
«Cavaco Silva e José Sócrates numa empresa… Não faço a mínima ideia de como seria. Mas a questão central é a mesma. Consoante se dispusessem a servir o colectivo, ou cada um optasse por dar preferência à respectiva agenda particular, obviamente que seria diferente aquilo que aconteceria.» [Jorge Araújo]
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