Nós por cá
Foi quase na passagem do ano [de 2005 para 2006]. À hora do almoço do dia 31 de Dezembro. Conduzia pelo Alentejo, de regresso a casa depois de ter participado na noite anterior numa reunião da assembleia municipal do concelho onde nasci, no Algarve. Tinha optado por estradas nacionais, de forma que passei por Castro Verde, Aljustrel, Ferreira, Torrão, Alcáçovas… Era o primeiro dia do «Lisboa/ Dakar», que fui espreitando nalguns pontos do percurso, quando a estrada nacional quase tocava alguma das de terra batida escolhidas pela organização. Inclusive, pouco antes de Aljustrel, passei entre dois concorrentes, numa zona onde atravessavam a estrada nacional, com uma dúzia de agentes da GNR a controlarem as coisas. Fizeram-me parar, numa zona da estrada com carros estacionados de um lado e do outro e com centenas de pessoas a viverem como que um dia de festa, e de repente passou um concorrente, como se costuma dizer, «a abrir», quase saltando sobre o alcatrão, que formava como que uma lomba. Um dos agentes, de imediato, sem perder tempo, mandou-me avançar, e eu sem querer acreditar naquilo, mas o que é certo é que lá avancei. Nem me teria afastado uns 50 metros, quando pelo espelho retrovisor vi passar o concorrente seguinte.
Eu sintonizava a «Antena Um». Por aquelas estradas é o melhor, porque apanhar a «TSF», por exemplo, é mentira, e as rádios locais estão sempre a mudar de dez em dez quilómetros. Foi por isso que ouvi uma entrevista do ministro dos Negócios Estrangeiros, Freitas do Amaral. Parecia ser uma espécie de balanço do ano de 2005, do mundo, da Europa – sobretudo da Europa –, do país e até, imagine-se, do seu próprio ministério. E o homem surpreendeu-me, não no conjunto da entrevista, pois acabou por ser o Freitas do Amaral que todos conhecemos, mas quando de repente, e sobre o seu ministério, disse que as pessoas de lá tinham de deixar de trabalhar à mão e passar a usar o computador.
Ainda no Alentejo, uns dias antes, e ainda a GNR, desta vez num dos postos da corporação, não em preparativos para o «Lisboa/ Dakar» mas a tratar de uma multa por estacionamento indevido, com direito a reboque da viatura e tudo. Quanto à multa, era 60 euros, a pagar directamente à agente da recepção; quanto ao reboque, isso tinha de ser tratado entre a dona do carro e o senhor do reboque, que estava à espera. A dona do carro passou um cheque de 60 euros, creio que à ordem da Direcção-Geral de Viação, e a respeito do reboque perguntou ao senhor quanto era; este nem perdeu tempo e informou que o transporte ficava por 30 euros, acrescentando logo a seguir que se fosse com factura ficava mais caro, por causa de ter de acrescentar o IVA. Tudo se passava num posto da GNR, com os agentes a assistirem como se nada fosse com eles, até porque a parte da multa já estava resolvida.
Saindo do Alentejo, um caso sem GNR, mas que poderia muito bem meter a polícia. Segunda metade da década de 1990. Um ministro não aguenta muito tempo no cargo porque se descobre que burlou o próprio Estado na compra de um apartamento de luxo. Passa quase directamente para a presidência de uma das mais importantes empresas nacionais, senão mesmo a mais importante, e ainda por cima com capitais públicos. Vai ganhar umas três vezes mais. E continuará nos anos seguintes em cargos de topo. Esses anos seguintes trouxeram-nos até 2005. Outro ministro sai, sem perceber que o facto de em menos de meia dúzia de anos ter acumulado à custa dos fundos de uma instituição pública uma reforma principesca constitui um insulto para a grande maioria dos cidadãos do seu país.
Estes casos contribuem, cada um deles, um bocadinho cada um deles, para se fazer um retrato da nossa sociedade. Estamos muito atrasados. Temos modelos de gestão das pessoas – construídos por cá ou copiados de outras paragens –, falamos de recursos humanos, até de capital humano, ou human capital, mas quase sempre esquecemo-nos de uma envolvente de outro tempo, onde as competências tantas vezes têm de ceder lugares às conveniências, ainda por cima bastantes lugares. É um sinal de como estamos, talvez até um sinal do que somos. Porque a verdade é que sempre tem sido assim.
A gestão das pessoas, a nossa gestão das pessoas, no meio disto, adapta-se. É uma das mais importantes regras da natureza, a adaptação; há peixes que se confundem com a areia do fundo do mar, e insectos que nenhum predador distingue do tronco onde se refugiam. As pessoas, elas próprias, adaptam-se também, ou são adaptadas – ou melhor, formatadas. É o que acontece. Para quê falar de conceitos, e em tantos casos conceitos dos quais não se perdeu tempo a fazer traduções por cá? Do que nos rodeia, o que fica, mais do que os conceitos, é o ruído da adaptação. O crescimento que é fundamental, a dica sobre os jovens até 30 anos puderem ser despedidos em qualquer altura, e o objectivo de um salário mínimo de 500 euros que convoca de imediato o fantasma das falências em massa, e as deslocalizações, e os baixos níveis de formação com os mais altos níveis de despesa em educação, e o destino dos fundos europeus para a formação profissional, e tantos outros tons do ruído. Da adaptação. Eu, obviamente, preferia outras regras.
1 comentário:
São estas conveniências que não nos deixam avançar.
Fala-se em Recursos Humanos fala-se em gestão por competências mas o certo é que isto não é o que acontecem. São as conveniências, os favores e os interesses que prevalecem. Infelizmente...
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