Esta entrevista foi feita em meados de 2004, numa altura em que o actual Código do Trabalho ainda era novo. Passaram três anos; não é muito tempo, claro, mas como se apregoam revisões nem me atrevo a repetir o adjectivo «novo» – só que velho também não lhe posso chamar. Enfim, adiante… A entrevista foi feita para a revista «Pessoal». Uma conversa longa, da qual ainda deu para retirar uma parte para um texto sobre o movimento sindical no nosso país (publiquei-o neste
blog no dia 31 de Março).
António Garcia Pereira
O código, um mono
António García Pereira, um dos mais conceituados especialistas portugueses na área do Direito do Trabalho comenta o novo código e todo o processo a que o seu aparecimento esteve associado. «Mono», «ataque cirúrgico às relações colectivas de trabalho», «mentiras», «nacional-saloiismo», «modelo suicidário», «estarrecedor desconhecimento», «preocupações quase psicopáticas», «falácia» ou «civilistas que não passaram do século XIX» são algumas das expressões que utiliza.
Talvez se devesse então perguntar: se um especialista comenta um documento elaborado por outros especialistas nestes termos, o que estará na base de tanta divergência? Será tão difícil assim colocar nas matérias laborais, como noutras importantes para o nosso país, algum consenso, ou melhor, algum bom senso? É, acredito mesmo que é. Por isso esta divergência está aí para lavar e durar. Enquanto houver trabalho.
Até que ponto a recente modificação da legislação laboral, com a aprovação do novo Código do Trabalho, alterará as relações de trabalho em Portugal, e mais, como há quem diga, «favorecendo a competitividade e a produtividade das empresas portuguesas»?
Pois eu acho que não favorece nem uma coisa nem outra. O código consubstancia a aposta num modelo das relações industriais completamente ultrapassado, assente na lógica da competitividade dos baixos salários e dos poucos direitos. Numa época em que o que faz a diferença é o investimento tecnológico, a qualificação dos recursos humanos, a inovação, os novos métodos de gestão, aposta num modelo que transformará Portugal numa gigantesca Clarks no curto prazo. É um modelo suicidário, porque nem nos princípios admite competir com os países de grande stocks de mão-de-obra de reserva, muito mais barata do que a nossa, e portanto ao nível dos produtos das lojas dos trezentos, uma vez que uma hora de um operário chinês ou de um vietnamita é muito mais barata do que a de um português. E não aposta naquilo que conta em relação aos processos mais diferenciados e qualificados, daí não conseguirmos competir com os países mais fortes, a começar pela Espanha, pela Itália, pela Alemanha e pela Inglaterra. Pior, os dez que acabaram de entrar para a União Europeia têm níveis de qualificação muito superiores aos nossos e níveis de custos reais de cerca de metade. O código arrancou com o pressuposto de que Portugal era um país com uma legislação laboral muito rígida que era indispensável combater para aumentar a produtividade e a competitividade das empresas. Ora, todos os estudos de direito comparado e de análise comparada dos sistemas de relações laborais colocam o nosso país a um nível intermédio.
Comparando com os países do leste da Europa... Têm legislações laborais mais rígidas...
Já nem vou aí. Mesmo em relação aos países da Europa Ocidental, desde os estudos comparados de António d'Ornelas até a um célebre estudo de um senhor chamado Colin Croutch, Portugal fica colocado num ponto intermédio. Por exemplo, no estudo de António d'Ornelas, num grau zero, praticamente de ausência de regulamentação, vem a Inglaterra da senhora Tatcher e em grande parte também a do senhor Blair, e num grau oito a Grécia; Portugal está a nível intermédio com quatro, e tem a Espanha, a França, a Itália, a Alemanha, a Holanda ou os países nórdicos com um nível mais elevado de regulamentação das relações do trabalho. Por outro lado, a ideia de que há uma relação causa-efeito – diminuindo a regulamentação, aumenta a produtividade – é profundamente errada, porque não se pode estabelecer essa regulamentação; desde 1999 que a OCDE a abandonou, encontramos exemplos de altos padrões de regulamentação laboral e alto nível de produtividade − o mais clássico é o dos países nórdicos −, de baixos padrões de regulamentação laboral e baixo nível de produtividade, de altos padrões de regulamentação laboral e baixo nível de produtividade, de baixos padrões de regulamentação e alto nível de produtividade... Os pressupostos utilizados são profundamente errados e não têm nenhuma espécie de base científica; hoje está demonstrado que a diferença reside nos factores em que o código não aposta, que referi. Este modelo arrisca-se a transformar o país numa mera colónia da União Europeia... O código tem uma lógica, fazer um ataque cirúrgico às relações colectivas de trabalho − de que se tem falado pouco, estranhamente, inclusive os próprios sindicatos −, e aposta fortemente na individualização das relações de trabalho, e aqui chegados tem duas preocupações que são quase psicopáticas: a diminuição dos direitos, com o desequilíbrio estrutural a favor do empregador, do ponto de vista dos direitos e dos deveres na relação individual de trabalho, e o embaratecimento do custo-hora do trabalho. É um modelo suicidário, que nos vai emparedar entre os modelos do trabalho mais indiferenciado e menos qualificado e muito mais barato dos países de terceiro mundo e os modelos tecnologicamente mais apetrechados e de maior qualificação dos recursos. Portugal fica destinado a falir.
A sua análise é muito negativa. Sendo um conceituado advogado e um conceituado professor desta área, como vê o facto de haver pessoas igualmente conceituadas a fazerem um diploma como este?
Este código corresponde a uma escolha política, que assenta na ideia de que nós não podemos nem temos capacidade nem é destino do nosso país ter processos produtivos próprios, e que temos que nos limitar a ser segmentos de processos produtivos alheios, sendo a forma de nos tornarmos atractivos para o investimento estrangeiro termos processos laborais assentes numa lógica de baixos custos salariais e poucos direitos.
Mas essas pessoas não acreditam que o país vai falir, seguindo tais opções...
Pois, vamos ver... A questão é exactamente o contrário, a periferização da economia portuguesa, que hoje já é uma realidade indesmentível, está a agravar-se; bastarão cinco ou dez anos para demonstrá-lo. Portugal já é hoje, em larga medida − e arrisca-se a sê-lo por completo em cinco ou dez anos −, uma mera colónia da União Europeia, valendo menos do que qualquer região espanhola; é um escoadouro de produtos que não conseguem ter saída nos outros países, é uma área geográfica de que restará, do ponto vista de actividade produtiva, alguma construção civil enquanto houver estádios e aeroportos para construir. Enfim, há uma ausência total de agricultura, de sectores de indústria de base, de pescas, de minas, de actividade ao nível do sector secundário… E há umas franjas no terciário, mesmo assim correspondendo a organizações empresariais e a processos produtivos em que o centro de decisões está sediado em Espanha. A tendência já é de aceleração da periferização da economia portuguesa. O que há por detrás disto, antes de mais, é uma questão de estratégia política, e económica, claro. A lógica, que é imposta pela União Europeia, é de que o nosso país não deve passar de uma mera colónia, de um país de segunda ou de terceira.
Mas, a fazer fé nisso, terão de haver outros países assim. Portugal é tão pequeno... Não consegue absorver todos os produtos que não têm saída na União Europeia...
Exactamente. No quadro da União Europeia, há as potências dominantes e há as dominadas. E nós estamos claramente no pelotão das dominadas. A questão está em saber se devemos aceitar uma lógica de relacionamento entre os países assente não no respeito e na igualdade entre eles, e naturalmente no livre racionamento entre os estados, mas em pé de igualdade, ou em relações de dominação. E aqui há uma escolha política de base: o destino que este governo [na altura de Durão Barroso] e os anteriores reservaram ao nosso país é sermos uma colónia da União Europeia. Depois, a forma técnica com que isto é prosseguido é a forma civilista. Havia várias formas, o caminho que foi seguido é o caminho instrumental relativamente a este objectivo de fundo – destruir a vertente das relações colectivas de trabalho, dentro da velha lógica civilista que nunca conseguiu perceber...
Ouvi um comentário de uma pessoa da área que falava de a génese do novo Código do Trabalho se encontrar profundamente determinada pela equipa civilista do Instituto do Direito de Trabalho da Faculdade de Direito de Lisboa, que entende o contrato de trabalho como um mero contrato do direito civil, à revelia do que foi a progressiva autonomização do ramo Direito do Trabalho ao longo das últimas décadas do século passado...
Essa crítica parece-me perfeitamente certeira. Negaram a autonomização do Direito do Trabalho − têm aliás escritos publicados, quer o professor Menezes Cordeiro, quer o professor Pedro Romano Martinez, a procurar negar a autonomia dogmática do Direito do Trabalho. Nunca conseguiram perceber a natureza estruturalmente assimétrica e desiquilibrada de uma relação de trabalho, que é uma relação de poder; é a única relação jurídica em que uma parte está sujeita ao poder de autoridade e direcção da outra. Portanto, tratar de forma igual partes que são livres e iguais apenas formalmente, que substancialmente não o são, significa criar a situação que justificou o aparecimento do Direito do Trabalho. Quer dizer, sobre esse ponto de vista, regressamos ao século XIX, à ideia de que a vertente das relações colectivas de trabalho não tem um papel a desempenhar, que a máxima felicidade resultará do livre entre-choque das vontades individuais entre patrões e trabalhadores. Toda a gente percebe que eliminando-se a vertente colectiva, por exemplo, do contrato colectivo de trabalho das grandes superfícies e colocando a senhora da caixa 27 a discutir as suas condições remuneratórias e outras com o engenheiro Belmiro de Azevedo, toda a gente percebe qual é a igualdade, entre aspas, que está por trás disso. Ora, os civilistas são incapazes de perceber isso.
Nunca trabalharam num hipermercado...
Exactamente. Eu digo isto sem acrimónia, mas acho que as pessoas que trabalharam na elaboração desta lei, entre outras coisas, para além dessa opção de base, que inclusivamente é ideológica, do ponto de vista da ideologia do Direito do Trabalho, revelam também um estarrecedor desconhecimento do que é a realidade empresarial hoje em dia. A esmagadora maioria das notificações que são introduzidas no código não têm nada a ver com armar as empresas para o mercado com características completamente diferentes das do tempo do taylorismo e do fordismo, que é de onde emergiu a lei geral do trabalho que vigorou até agora, daquele caldo de culturas, da segmentação do processo produtivo em pequenas parcelas, que quanto mais autonomizadamente fossem cumpridas maior era a produtividade do sistema, assente em estruturas empresariais muito burocráticas e muito rígidas, uma oferta rígida para corresponder a uma procura rígida, trabalhadores a tempo inteiro de carácter permanente, normalmente pouco qualificados, trabalhando por unidade de tempo rígido, por uma retribuição rígida, num local de trabalho rígido... Sobretudo depois do choque petrolífero de 1973 e do impacto demolidor das novas tecnologias de informação e comunicação a partir da década de 1980... Hoje a realidade é completamente diferente, os grandes potentados económicos na área da produção actuam em cadeia, podem ter a direcção financeira nos Estados Unidos, a comercial em Inglaterra, a artística em França e as unidades industriais na Indonésia, na Letónia ou na Coreia, consoante em cada momento for mais útil, porque o sistema pode continuar nestes termos. É isto, e a necessidade de as empresas terem uma lógica de geometria variável de adaptação às realidades. O que o código veio trazer não tem nada a ver com estas preocupações.
Privilegia as relações individuais de trabalho?!
E privilegia-as com uma dupla preocupação que chega a ser psicopática, que é o abaixamento dos custos salariais, a lógica de mandar o Sol pôr-se mais tarde, com a noite a começar às 22 horas. Não tem nada a ver com necessidades operacionais das empresas, significa tornar mais barato o trabalho nos hipermercados e nos centros comerciais. A lógica de determinar se um trabalhador que exerce um cargo de qualificação e de direcção pode estar numa modalidade de isenção de horário de trabalho que o código pretende − acho que é inconstitucional, e portanto vamos ter de chegar a um resultado diferente; como está desenhado o código, pretende-se que possa não ter limite máximo de horas, o que significa que em rigor pode chegar às 16 ou 18 horas por dia, mas em que ao mesmo tempo se permite que o trabalhador renuncie a essa retribuição, o que significa que a todos os quadros que forem com ela confrontados é-lhes posta à frente uma declaraçaozinha para renunciarem à retribuição. É a lógica da chamada adaptabilidade horária, que acabou por ficar num sistema que se destina pura e simplesmente a que nenhuma empresa pague horas extraordinárias, nenhuma empresa cuja actividade não imponha outro ritmo de trabalho que não o extraordinário... É evidente que aí há necessidade de pagar, agora em empresas como as do sector do comércio, que possam pôr os trabalhadores a fazer jornadas de trabalho que se for por contratação colectiva podem chegar a 60 horas por semana e doze por dia, numas semanas, e depois pôr noutras semanas menos desde que dentro do período de referência − que na contratação colectiva pode chegar aos doze meses −, dá oito por dia e 40 por semana... Isto vai significar que as pessoas podem fazer 60 numa semana e 30 noutra, ou seja, nas semanas em que trabalham a mais, em que normalmente teriam direito a receber trabalho extraordinário, não vão receber. É uma lógica para embaratecer o custo da mão-de-obra, por um lado, e por outro para desequilibrar a relação, fornecendo mais poderes ao empregador. Por exemplo, o que o código contém a propósito de questões como a mudança geográfica, quer a provisória, quer a definitiva, e a mobilidade funcional, é uma barbaridade, porque contém um regime que me parece não alterar significativamente o que vinha de trás, e que me parece correcto e equilibrado, e até inovou − é dos poucos pontos em que o código inovou, ao vir prever a chamada transferência provisória ou deslocação em serviço, que a antiga lei não previa −, mas depois mete em cada uma dessas matérias um numerozinho que diz que por estipulação contratual as partes podem alargar ou restringir os poderes do empregador nesta matéria. O que vai significar em todos os contratos de trabalho − e chamo a atenção para o que diz respeito aos jovens que vão entrar agora no mercado de trabalho e que são confrontados com situações que são, na prática, não formalmente, mas não prática são, meros contratos de adesão, isto é, as pessoas ou assinam o contrato que a empresa lhes mete à frente para assinar e têm um emprego e um meio de subsistência, ou então saem da fila que estão mais duzentos à espera para ter um meio de subsistência, e o contrato vem todo pré-redigido com cláusulas a alargar sem limites estes poderes do empregador. O que é que isto tem a ver com necessidades de uma empresa moderna, que aposta na qualificação dos recursos e nos processos tecnologicamente avançados? Nada.Também há quem diga, por exemplo em relação à mobilidade funcional, que esta ao exigir mais competências aos trabalhadores se torna um incentivo à formação e à polivalência, e consequentemente à empregabilidade dos trabalhadores...Olhe, quanto à formação, convém recordar que o código não tinha na sua versão inicial uma vírgula sobre formação, uma só que fosse. E aquilo que acabou por ter na sequência do acordo tri-partido UGT/ CIP/ governo é uma coisa completamente ridícula que não tem nada a ver com as necessidades de formação das empresas. Transformou a formação num conjunto de regras burocráticas de formação ao quilo, que ainda por cima pode ser substituída por pagamento em dinheiro, portanto aquilo é fingir que se fala em formação para esconder as críticas que se levantaram. O código não consubstancia nenhuma aposta − não é uma aposta séria, é nenhuma aposta, nem séria nem chega a ser séria − no reforço da qualificação. E a forma como está pensada quer a mobilidade funcional, quer a chamada polivalência, constitui uma aposta na desqualificação dos trabalhadores, porque se sabe que tem sido essa a prática − temos um tecido empresarial que infelizmente aposta no tal modelo do trabalho pouco qualificado, baratinho e com poucos direitos. E mais, saliento este aspecto muito curioso, o código liquida a noção de categoria profissional, considerando como afim ou funcionalmente ligada às tarefas que competem ao trabalhador qualquer tarefa da mesma carreira ou grupo profissional, o que significa que se estivermos a falar de um trabalhador do topo da carreira, o que há de mais qualificado, é considerado afim ou funcionalmente ligado às suas tarefas aquela que corresponde à carreira de base. Se isto não é aposta na desqualificação, o que é? E depois, curiosamente, o código − que nesta matéria reproduziu essencialmente as alterações ao artigo 22 da Lei Geral do Trabalho introduzidas pela lei da polivalência das 40 horas, a lei 21/ 96 − no entanto deixou cair duas coisas muito significativas: a primeira, que se o trabalhador for colocado a fazer funções mais qualificadas, ao fim de seis meses adquiria o direito à qualificação mais elevada; segunda, dizia-se que mesmo sendo atribuídas funções afins ou funcionalmente ligadas ao essencial das tarefas queria-se permanecer sendo aquelas que correspondiam à sua categoria profissional. Isto mostra claramente que o código não está a apostar na valorização, senão estas regras estavam lá. Está a apostar é numa certa lógica de gestão que tende a identificar como coisa magnífica termos trabalhadores com a categoria profissional de trabalhadores, que à segunda-feira são directores administrativos e financeiros, à terça empregados das instalações sanitárias, à quarta técnicos administrativos, à quinta paquetes e à sexta outra coisa qualquer, e consoante vai dando assim se vai rodando o trabalhador. Isto é um disparate completo, porque mesmo os modelos de aposta na polivalência estão hoje a fazer o balanço sobre se os excessos cometidos nessa matéria não terão conduzido a perdas de especialização sensíveis. Porque, como é óbvio, num processo de trabalho indiferenciado ou muito pouco qualificado, não fazem muita diferença, mas em processos de trabalho altamente qualificado − por exemplo, na indústria automóvel, altamente robotizada, com trabalhadores altamente qualificados −, esta desespecialização traduz-se em perdas de produtividade, necessariamente, e a indústria automóvel japonesa sabe-o bem. Portanto, aquilo que temos aqui também é um certo nacional-saloiismo, que é as modas que andaram por aí pela Europa e pelo mundo – Sillicon Valey, Kalmar, na Suécia, a qualidade total na Itália, apresentados como as grandes mezinhas, e hoje postas em crise – serem apresentadas como a grande solução.
Estudos internacionais como o «World Competitiveness Yearbook» apontam os trabalhadores portugueses como os mais avessos à auto-formação. Se calhar isto ajudou à ideia de excluir a formação do código...
Acho que nisso os sindicatos têm um papel a desempenhar, muito mais activo do que o que desempenham. Na verdade, há uma resistência à formação, mas isso resulta do caldo de cultura que caracteriza a nossa sociedade em geral, e em particular no mundo das relações de trabalho. É preciso ver, e este é que é o problema, que a revisão do código apareceu, para além daqueles dois pressupostos de que falei, tendo por trás uma outra coisa que era: há uma legislação do PREC − que é outro disparate completo que vemos para aí uns quantos opinion makers dizerem; do PREC, convém recordar, restavam três leis, duas completamente inócuas do ponto de vista da regulamentação das relações de trabalho, a das organizações sindicais e a das associações patronais, e a terceira muito mais do agrado dos patrões e do governo do que propriamente dos trabalhadores, a da requisição civil. O que nós tínhamos era outra coisa, que era o essencial, a matriz da regulamentação das relações do trabalho era a matriz da Lei Geral do Trabalho de 1969, de um modelo que era uma mescla de taylorismo e fordismo, autoritarismo e paternalismo, e outras incongruências, e esse é que é o problema. Quer dizer, o centro de gravidade está exactamente aí... Sobre o taylorismo e o fordismo já me pronunciei, o paternalismo e o autoritarismo, a lógica de que a sociedade é um conjunto de casos sociais em que para cada um deles tem de haver um chefe, na sociedade no seu conjunto havia um, na igreja outro, na escola outro, na família outro e na empresa outro, que é um pouco o paizinho de todos nós, concepções absolutamente autoritárias… Convém não esquecer que é desse mundo que vem a necessidade de a mulher casada ter autorização para celebrar um contrato de trabalho...
Mas em relação às mulheres há quem fale de descriminação positiva no código...
Não há descriminação positiva nenhuma, pelo contrário, e vou já dar um exemplo. O código enferma muito daquela concepção nostálgica de que a mulher em princípio é a fada do lar, que é a lógica típica do corporativismo. Quer dizer, este modelo de relações industriais de onde vem a Lei Geral do Trabalho é o modelo de que o mercado de trabalho é para o homem e a mulher deve estar em casa a coser meias e a fazer sopa. Quando se estabelecem os dias suplementares de férias, os três dias, de 22 para 25, quando depois se diz que as pessoas que tenham dado faltas justificadas, mesmo no exercício de um direito, no caso da licença de maternidade perdem as férias, isto o que significa é que os homens vão ter mais tempo de férias do que as mulheres, porque por enquanto as mulheres é que engravidam e gozam de licença de maternidade.
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Mas deixe-me referir um ponto que me parece importante. O código também foi apresentado um pouco como a necessidade de inovação. E a necessidade de sistematização, e quanto a isso acho que essa sistematização é profundamente errónea, porque corresponde à sistematização de um código civil, não corresponde de todo à regulamentação das matérias do trabalho, e a questão é esta: quem vai ter de aplicar o código, num primeiro momento, são os aplicadores práticos, nas empresas, os gestores, e hoje tem de se andar a saltar dentro do código.
Não acha que a enorme dimensão do código denota uma tremenda incapacidade de expressão por parte de quem o fez?
É o recurso a uma técnica errada, que também é outra coisa que não houve tempo de discutir com precisão. Não é por acaso que países como a Itália e a Espanha não têm códigos, têm estatutos, uma lógica diferente, que é uma espinha dorsal relativamente à qual é acoplada a definição da minudência de regimes específicos, mas o essencial, o estatuto aplicável a todos os trabalhadores, está ali. Não é por acaso, é porque dadas as características do direito do trabalho, que tem grande mutabilidade e fluidez da regulamentação de conteúdos, se entendeu que se devia dar estabilidade à espinha dorsal, e depois, para aquilo que são as extremidades, os membros, há leis próprias que podem ir-se adaptando a todo o momento. Isto também é assim em França; o «Code du Travail» não é um verdadeiro código. Em Portugal foi-se para um código feito à imagem de um código civil − por exemplo, até aqui um empregador que estava com problemas e que queria ver se precisasse de fazer um despedimento colectivo o que é que tinha de fazer, os requisitos, as formalidades, os direitos dos trabalhadores, as consequências, isto estava tudo concentrado; hoje, pela forma como o código sistematizou as coisas, numa lógica civilista, significa saltar para quatro sítios diferentes; o código tem um sítio onde enumera e tem a definição das formas de cessação, outro onde tem o procedimento a adoptar, outro onde tem os direitos que decorrem para os trabalhadores e ainda outro... Quer dizer, andamos feitos salta-pocinhas para trás e para diante. Portanto, a sistematização parece-me profundamente errónea e contrária aos interesses dos aplicadores práticos, porque até isto chegar a pessoas altamente especializadas, como um juiz do tribunal do trabalho e advogados que vão pôr ou contestar uma acção em tribunal do trabalho, por cada coisa dessas que chega ao tribunal há entretanto milhões de aplicações práticas quotidianas, e os aplicadores vão ter essa dificuldade. Segundo ponto, muito de passagem, a inovação... O código inova muito pouco, quase nada mesmo, e é escandalosa a ausência de inovação nalgumas matérias onde nós já tínhamos conhecimentos muito acumulados; por exemplo, na lógica do corporativismo, das relações industriais tayloristas, os fringe benefits não têm lugar, a lógica é a de um salário fixo por uma unidade de tempo fixa. Portanto, a Lei Geral do Trabalho não falava em carros, telemóveis, gasolina, cartões de crédito, stock options, seguros de saúde e outras coisas do género; não falava e era perfeitamente natural, porque naquela altura isso não existia. Hoje isso é uma realidade, e há já muita doutrina e muita jurisprudência produzida sobre a matéria e esperava-se que tivesse, até a bem da certeza e da segurança jurídicas − isto é, a bem de que quer uma parte, quer a outra saibam perfeitamente as linhas com que se cosem; tenho o ponto de vista de que ninguém beneficia quando ninguém sabe quais são as linhas com que se cose. Mas o código não tem uma só referência, uma só, em relação a estas novas formas retributivas. Há aqui um falhanço completo, precisamente nas finalidades que se dizia que se acrescentava.
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Quanto às mulheres... Quando se diz que temos discriminações positivas, e não só em relação às mulheres, e o grande exemplo aqui é a cereja no topo do bolo, a consagração dos direitos de personalidade... Mas aí também há muito a dizer, porque as pessoas deixaram-se ir pela forma. Vamos examinar as coisas com frieza... O que é que nós temos ali, que até se compara com Itália, que foi a fonte próxima de muitos dos direitos de personalidade. Por que é que em Itália foi necessário fazer isso num estatuto que tem um elenco de direitos? Porque a constituição italiana não tem, nem de perto nem de longe, o elenco de direitos, liberdades e garantias que a nossa tem. Portanto, de alguma forma a constituição material das relações de trabalho tinha de ser complementada com normas do estatuto a consagrarem estes direitos de personalidade. Nós não precisávamos disso. E se virmos com cuidado verificamos que na maior parte desses direitos interessou mais consagrar a excepção do que a regra, isto é, definiu-se um muro a proteger alegadamente a intimidade, a privacidade e a personalidade do trabalhador, mas depois abrem-se portões que são maiores do que o muro. O empregador não pode devassar dados da intimidade e da privacidade do trabalhador, excepto por razões imperiosas do funcionamento da empresa. Mas ainda há um terceiro ponto, de que quase ninguém fala, que também é muito importante: é que o código foi-se inspirar no estatuto italiano mas só se inspirou em metade, porque em Itália, depois do elenco dos direitos, há um capítulo dedicado aos procedimentos de repressão das condutas anti-direitos laborais, que prevê que perante uma situação de violação desses direitos o trabalhador ofendido ou o seu sindicato possa ir junto do tribunal do trabalho fazer uma prova sumária da violação, e se o tribunal se convencer da existência dessa violação há um mandato que um funcionário do tribunal leva à empresa, intimando-a a parar imediatamente com aquela prática que é lesiva dos direitos de personalidade do trabalhador, sob pena de instauração de um processo de desobediência qualificada ao tribunal. Portanto, temos aqui uma consagração de direitos, e logo a atribuição de um meio procedimental eficaz que confere grande operatividade a esses direitos. Se eu tenho a consagração dos direitos mas me tiram esses direitos, pela ausência de procedimentos adequados, cai-se naquela situação de que já o velho professor Manuel de Andrade falava, «quantas vezes o direito substantivo não dá com uma mão aquilo que depois o direito adjectivo tira com a outra». Se formos ver, a consagração dos direitos de personalidade não adianta nada de especial ao que já resultava do texto da constituição − e entendamos, o trabalhador antes de ser trabalhador é cidadão, e os direitos que estão na constituição são-lhe aplicáveis, não ficam à porta da empresa −, e abre muitas excepções com recurso a conceitos indeterminados que vão trazer de certeza muitos problemas; terceiro, está despida de um meio procedimental eficaz de defender em tempo útil esses mesmos direitos. Portanto, aquilo que é apresentado como, digamos, o enorme progresso consubstanciado no código, de personalismo que do código emerge, afinal, não passa em larga medida de uma falácia.
Vem aí o chamado código B – a regulamentação do código do trabalho –, com os seus 480 artigos a somar a 689, e cujo resultado parece inquietante na medida em que se multiplicam os requisitos processuais, as declarações e as comprovações que não auguram nada de bom para a fluidez e para a maleabilidade das relações de trabalho. É um pouco o que está a dizer...
Para já, vamos ver o que dá... Acho que o regulamento do código tem alguns pontos inconstitucionais, e não são tão poucos como isso, como aliás acho que o código também tem. Convém aqui recordar, relativamente ao código, que o presidente da República solicitou ao Tribunal Constitucional que se pronunciasse sobre apenas sete dos pontos e este declarou a insconstitucionalidade de quatro, e em meu entender o expurgo da inconstitucionalidade não foi feito...
O Tribunal Constitucional não se pronuncia em relação ao resto do código?!
Pois não. Tem o seu poder de decisão definido à partida, mas isso não quer dizer que não haja agora fiscalização da constitucionalidade, porque os pedidos vão chover. Em termos de fiscalização sucessiva, vão chover. Por exemplo, a modalidade de trabalho sem sujeição a toda e qualquer espécie de limite máximo de horas é claramente violentadora do princípio constitucional do limite máximo da duração temporal da jornada de trabalho... Vamos ter muita violação sucessiva da constitucionalidade, no código, como vamos ter no regulamento. Pergunto: pegou-se na legislação laboral e disse-se, isto é uma coisa, é um amontoado enorme, uma coisa assistemática, que corresponde a funções distanciadas no tempo 30 anos, portanto é preciso fazer uma coisa nova, moderna, sistematizada, eficaz, digamos, fácil de manusear? Não, produziu-se um mono de mais de um milhar de artigos − o código mais o regulamento −, e ainda por cima com uma lógica de arrumação, repito, que não corresponde de todo à cultura habitual da abordagem dos assuntos.
Lá caímos na tal incapacidade de expressão, ou talvez se devesse falar de iliteracia...
Vamos lá ver... Eu acho é que o mal está na técnica de raiz que se seguiu. Nos tempos actuais, a melhor técnica era ter aprovado um estatuto central aplicado a todos os trabalhadores, e depois um conjunto de normas em constelação, em redor desse núcleo duro representado pelo estatuto, que iria tornar tudo isto muito mais facilmente manuseável. Quis-se ir pela lógica do código porque é a lógica que os civilistas têm. Têm a ideia de que − sob esse ponto de vista não passaram ainda do século XIX − o direito é capaz de tudo prever e tudo regular, e portanto que é possível fazer um código onde se abarque todas as matérias. Se isto não é verdade em relação a qualquer relação social, em relação às relações sociais do trabalho ainda muito menos verdade é.
O código é uma aposta do actual governo, e quem dá a cara por ela é o ministro da Segurança Social e do Trabalho, não a ministra da Justiça. Parece uma contradição com essa opção civilista de que fala. Quem lidera o processo é quem trata das questões laborais em Portugal e não quem trata da justiça em geral... No governo o direito do trabalho está autónomo num ministério.
À partida era natural que quem liderasse o processo de alteração legislativa das leis do trabalho fosse o Ministério do Trabalho, porque supostamente está mais próximo das realidades em que o código do trabalho é suposto influir. Exactamente porque a aposta não é numa qualificação do país, mas numa estratégia de desqualificação, o instrumento adequado para fazer isso foi o recurso às teorias e às correntes do civilismo. E o resultado − repito, tem-se falado muito pouco nele − é sinistro, porque é um ataque muito forte às formas de organização, de regulamentação e de luta colectivas. A greve está posta gravemente em causa pelo Código do Trabalho, ao permitir que seja o governo, ou um colégio de árbitros, tratando-se de empresas do sector empresarial do Estado, a definir os serviços mínimos, mas depois não há um colégio de árbitros e o governo arroga-se à mesma de ser ele a definir esses serviços...
Outra coisa... Acha que os trabalhadores portugueses têm consciência da importância das questões ligadas a saúde e segurança no trabalho? Não estarão nas empresas como na estrada, com uma postura suicida?!
Acho que em parte isso é verdade. Mas tem a ver com a cultura. Juntam-se aí dois factores. A nossa cultura ancestral, uma cultura que nos ensinou a comer e calar, conformemo-nos com o nosso fado nesta vida que noutra teremos uma recompensa. Portanto, uma postura meramente de conformismo... E lá vamos à história dos acidentes, os acidentes acontecem, coitado, teve azar... Não possível actuar, para utilizar aquele chavão, proactivamente. Toda aquela lógica dos livros da instrução primária do meu tempo, manda quem pode e obedece quem deve, é Deus que nos ensina que devemos respeitar as autoridades, pobrezinhos e ricos sempre houve e sempre há-de haver, esta postura de conformismo com o que existe, em vez de nos vermos como sujeitos activos, transformadores de um determinado processo, é muito responsável por esta lógica. Depois, a esta visão geral liga-se uma cultura muito desinteressada destas coisas de um sector do movimento sindical, isso é verdade. E é preciso ver uma terceira questão, que é uma geração de trabalhadores, ou duas ou três, que tem em cima dos ombros 500 anos de inquisição e 50 de fascismo, formarem as pessoas nestas coisas... A cultura é a mesma que faz com que um programa dos apanhados vá para o Jardim de Carcavelos, ponha uma cancela à entrada da marginal e cobre um euro para os carros que querem entrar para a marginal, e nove em cada dez pessoas pagam. As pessoas habituaram-se, é assim é assim, se me dizem para eu fazer tenho de fazer, manda quem pode e obedece quem deve. A essa cultura soma-se agora uma não compreensão por parte dos sindicatos de problemas como os desta área da segurança, como os da formação e de outras áreas. Mas os sindicatos tendem a bater-se pelo 0,01% e a transformar-se em meras instâncias reivindicativas de um aumentozinho na tabela salarial. Há um problema de revolução de mentalidades. E há outra questão... Quando, por exemplo, se diz que os trabalhadores da construção civil, de uma forma geral, não usam capacete, ou não põem as luvas, também é preciso dizer outra coisa, temos de ir lá ver se o capacete que lhes é dado para usar debaixo do tempo que está hoje é algo que seja suportável ou é uma porcaria que se compra numa loja dos trezentos e que se torna insuportável ao fim de quinze minutos. Ou se ao usar as luvas para manusear vigas de ferro – e estou a reportar-me a casos concretos que conheço –, se elas retiram sensibilidade, porque são demasiado grossas, mais baratas, etc, e este trabalhador vai estar pressionado por uma lógica que hoje comanda muito as obras da construção civil, imposta pela necessidade de rotação do capital. Quem investiu dinheiro não pode permitir que a obra demore, porque os juros da banca vão por aí a cima, e então toda a lógica é de que é preciso andar depressa. Porque é que não se escora a vala? Para não perder tempo. E depois, se morrer um trabalhador, paciência. Esta lógica é também a lógica que começa a pressionar um trabalhador que não conseguindo ter tanta agilidade leva mais tempo a levar as vigas. Começa a imperar nos trabalhadores a lógica de que mais vale pôr as luvas de parte e agarrar com as mãos nuas do que ter o capataz a chatear a cabeça. É preciso ver tudo isto de uma forma integrada. Há falta de cultura de segurança, e é correcto assimilar isso ao que se passa ao nível rodoviário, que é a mesma lógica. Nós consideramos não que isso seja um problema sobre o qual é preciso agir, mas sim uma coisa que é uma desgraça que nos cai em cima. Depois vem o responsável pelo departamento de segurança da Volvo e diz que os portugueses conduzem como ladrões de automóveis.
A luta dos sindicatos pelos 0.01%... Do outro lado, por exemplo, aparece o presidente da comissão executiva do BPI, Fernando Ulrich, que fez parte do agora já esquecido «Compromisso Portugal», a lutar pela liberalização dos despedimentos. Por que é que há posições tão extremadas?
Isso é que é uma coisa surpreendente. Por exemplo, defender a liberalização dos despedimentos, no sentido de que toda a gente com menos de 30 anos pode ir para a rua livremente… Isto é uma proposta completamente terrorista que visa apenas encher páginas de jornais. Não há nenhuma economia, e designadamente a portuguesa, que mesmo do ponto de vista de lógica, digamos, do sistema capitalista, necessite de uma medida destas. Os despedimentos arbitrários não permitem resolver problemas de redimensionamento económico das empresas. Esses resolvem-se através de formas de cessação, que aliás, é preciso dizer, são das mais fáceis de usar em toda a Europa. E ninguém fala sobre isso. Vítor Constâncio, um dia, numa reunião com a imprensa, revelou que Portugal esteve à beira de levar com um procedimento movido pela União Europeia devido à extrema liberalidade do regime jurídico dos despedimentos colectivos das cessações por extinção do posto de trabalho, que são o que há de mais fácil de fazer na União Europeia. Portanto, essa ideia de que isto melhorava do ponto de vista da competitividade das empresas se, sobretudo os jovens com menos de 30 anos, pudessem ir para a rua em qualquer momento, isto não tem nada a ver com a necessidade de redimensionamento.
Mas trata-se de uma afirmação de um gestor que há quem considere de prestígio...
Mas é um gestor que partilha da ideia de que os trabalhadores são escravos e que portanto é ao estalar do chicote que se podem tornar produtivos. O que isto tem a ver é com o seguinte: se a pessoa tiver medo, então anda na linha. Ora isto é perfeitamente inaceitável num Estado de direito democrático, qualquer que seja depois a ideia em concreto que nós tenhamos. Quanto aos outros, ainda não percebi, nem nenhum deles foi capaz de me explicar, o que precisavam do ponto de vista das leis do trabalho. O que tenho ouvido dizer é de gestores de topo, e vou dar dois exemplos… José Bancaleiro, da Essilor, e Pedro Mendes, do Grupo Mello, em debates sobre o código em que participei, disseram: «nós não precisamos desse código para nada».
Era isso que lhe ia perguntar... Nos meios da gestão não se costuma defender este tipo de coisas, então como é que há gestores que chegam ao topo de grandes instituições, com um papel importantíssimo na nossa sociedade, com propostas assim? Pessoas com este tipo de sensibilidade a decidirem os destinos de instituições tão relevantes...
Há aí duas coisas, em meu entender... Há um permanente apelo ao exame da produtividade dos trabalhadores, mas nunca se fala da produtividade dos gestores. Ponto primeiro. Ponto segundo, acho que muitas vezes, e se estamos a falar de quadros de topo e não do cavernícola empresário do Turtusendo ou do Vale do Ave, o que está em causa é fogo de vista, fazer fogo a leste para sair a oeste, ou seja, tentar mascarar coisas que são de facto de incompetência, ou de irresponsabilidade, ou outras até, e desviar as atenções disso.
O código foi uma das bandeiras do governo, que tem apelado ao empenho dos dois partidos para o suportarem. Curiosamente, na primeira tentativa de votação na Assembleia da República houve deputados que nem apareceram. Não acha que isto, afinal, parece uma coisa um bocado abandalhada?
O que acho é que é o revelar de que a questão do código não foi tão simples como parecia. Nem vai ser. Uma coisa é aprovar uma lei, outra é conseguir impô-la à sociedade. Julgo que a razão de ser dessas ocorrências tem a ver exactamente com as contradições que se verificam neste momento na sociedade. Inclusivamente, dentro da própria classe empresarial portuguesa há quem perceba que isto não é o caminho, que é um sector muito incipiente. Hoje não temos capitalistas nacionais...
É uma espécie em vias de extinção?
Não é uma espécie em vias de extinção, é uma espécie extinta, ou devemos ter o último exemplar escondido na Serra da Malcata.
...
E depois, quando um partido, ou por si ou coligado, tem a maioria absoluta, tende a considerar o Parlamento como uma mera delegação do governo e dá por certo que o que chega lá está aprovado, e às vezes pode sofrer revezes temporários. Mas são normalmente temporários, porque como é evidente não têm quorum num dia têm no dia seguinte e aprovam na mesma. Daí que eu não atribua demasiado significado a esse episódio, o balanço que se pode fazer é de que todos e cada um dos argumentos com que o código foi aprovado não foram aprovados na sociedade e, pelo contrário, estão completamente desmentidos.
Foi muito mediatizada a questão. No seu caso, sendo um prestigiado advogado, e um prestigiado professor de direito do trabalho, a sensação que ficou nos últimos tempos foi a de que se manteve afastado, ou que não foi muito procurado. O que é que se passou?
Outro dia estive a fazer contas e participei em 43 colóquios ou conferências sobre o código. Mas, de facto, em termos de convites para participar, fui claramente saneado – saneamento que me enche de orgulho e satisfação – pelo Centro de Estudos Judiciários e pelo IDICT, que conseguiu a proeza de fazer uma conferência onde foi toda a gente do Direito do Trabalho, todos os meus colegas das mais diferentes matizes e sensibilidades, menos eu. As atitudes ficam com quem as pratica. Penso que não estariam muito interessados, pela égide do ministro da própria tutela, em que as minhas opiniões se pudessem expressar junto de todos os outros. E o Centro de Estudos Judiciários – que é uma entidade relativamente à qual eu sou ultra-crítico, que entendo que é neste momento uma cidadela que a sociedade no seu conjunto devia controlar e que a sociedade no seu conjunto não faz a menor ideia do que é que se passa lá dentro –, que reage desta forma… Mas participei em muitos colóquios em que a comunicação social simplesmente não pegou. Numa vaga inicial pegou, e depois deixou de pegar, mas julgo que isso é a demonstração daquilo em que se está a transformar a, abrir aspas, liberdade de informação, fechar aspas, em Portugal. Estive num debate na RDP, moderado pelo Luís Ochoa, um debate que considero de grande nível, com o secretário de Estado do Trabalho, e estive em dois debates do «Prós e Contras», num dos quais me deu a parecer que a posição de alguns dos grandes patrões em Portugal, a começar por Belmiro de Azevedo, são posições assentes em meros preconceitos; recordo o tristemente célebre episódio em que ele invocava a lei dos despedimentos em Portugal, que se ele tivesse uma secção com 100 pessoas onde só precisava de 70, não lhe permitia dispensar 30, tinha de despedir todos, o que é uma falsidade completa que foi denunciada em directo para milhões de tele-espectadores. A partir daí, fechou completamente a torneira, porque nós temos uma comunicação social que está nas mãos dos grandes grupos económico-financeiros, que é a voz do dono. E portanto não sai aquilo que não convém. Nunca se esteve tão amordaçado, sob esse ponto de vista... Temos uma comunicação social cuja agenda política são os faxes dos ministérios, e que está dominada por três ou quatro grupos económicos, que não largam mão dos órgãos de informação, mesmo quando eles são deficitários, porque se sabe perfeitamente que são instrumentos de controlo e de modelação de comportamentos sociais e que obviamente excluem tudo o que não convém.
A mim pareceu-me também que se andou a ouvir pessoas extremamente cinzentas...
Sim, pessoas sem nenhuma tradição. Bom, sem nenhuma acrimónia relativamente a esses meus colegas, apareceram como grandes especialistas do Direito do Trabalho, a emitir opiniões, pessoas que não têm aí nenhuma espécie de tradição Mas numa sociedade cinzenta o cinzentismo é o valor dominante. Isso para mim até faz lógica.
Numa dessas conferências associou o novo código do trabalho a uma trilogia, «sexo, mentiras e vídeo»...
Não foi bem isso, foi assédio, mentiras e vídeo. Foi numa conferência que fui fazer ao Fórum Picoas...
E do que é que falava, afinal, quando falava em assédio, mentiras e vídeo?
Falei em assédio porque é hoje um problema gravíssimo no nosso país. Calcula-se que abranja cerca de 200.000 pessoas, o assédio no sentido preciso do termo, abrangendo não apenas o assédio sexual mas também outras formas, 200.000 pessoas das quais uma grande parte são do que há de trabalhador mais qualificado no nosso país e que está emprateleirado, empandeirado, ostracizado, pura e simplesmente porque tem a coluna vertebral direita, e portanto isto arrisca-se a transformar o cinzentismo na filosofia de gestão dominante no nosso país. É o princípio de Peter, os que sobem são os que não abrem a boca, que não têm opiniões, que se dobram, que vão flutuando nas ocasiões, e aqueles que têm opiniões próprias, que se preocupam em servir os interesses da organização, chamar a atenção para o que está errado, são pura e simplesmente postos de lado. Mentiras é aquilo que eu considero a falsidade dos pressupostos do código, a história de que nós temos uma das legislações laborais mais rígidas da União Europeia, o que não é verdade, a história de que desmantelado o Direito do Trabalho teremos uma economia produtiva, o que não é verdade, a história de que o código vem sistematizar as várias matérias, o que não é verdade, a história de que o código viria inovar sobre questões importantes, o que não foi verdade. E, finalmente, o vídeo, isto a propósito das novas tecnologias e dos direitos de personalidade que são apresentados, a sua consagração como a cereja no topo do bolo e nos termos que referi, que parecem exactamente o oposto; isto é, proclama-se mas acaba por esvaziar-se de conteúdo, e sobretudo não se dá meios eficazes para garantir a tutela desses mesmos direitos. Portanto, assédio, mentiras e vídeo.
António Garcia Pereira nasceu em Lisboa a 14 de Novembro de 1952. Licenciou-se em Direito na Faculdade de Direito «da então chamada Universidade Clássica de Lisboa». «Tirei o mestrado lá, em 1982, e fui professor...» Acabaria por ser afastado três ou quatro anos depois de concluído o mestrado, com base «em nada, em vingança pura e simples». «Aqueles professores como o professor Oliveira Ascensão, o Martinez e os irmãos Albuquerque, que mandavam na faculdade antes do 25 de Abril e foram dela afastados a seguir, depois praticaram uma vingança a doze anos de distância. Ganhei o recurso nos tribunais administrativos onze anos e meio mais tarde, mas aquilo tinha-me arruinado a carreira e a preparação da tese de doutoramento. Depois entendi que tinha uma dívida para com os alunos e os colegas, sobretudo os alunos, de fazer o doutoramento em Direito. Fiz em 2002, na Faculdade de Direito da Universidade Nova de Lisboa, em Direito do trabalho.» Depois do afastamento da Faculdade de Direito, António Garcia Pereira passou a dar aulas no Instituto Superior de Economia e Gestão (ISEG), onde é actualmente professor auxiliar. Tem colaboração assídua na Faculdade de Ciências Económicas e Empresariais da Universidade Católica e intervenções pontuais noutras universidades. É advogado desde 1977 («de 1975 a 1977, fui candidato a advocacia, como na altura se chamava»), «essencialmente na área laboral». Membro do comité central do PCTP/ MRPP, ex-presidente da Comissão de Direitos Humanos da Ordem dos Advogados, presidente da Direcção da Associação Portuguesa dos Direitos dos Cidadãos e membro de um Centro de Estudos em Sociologia Económica das Organizações. Tem uma relação especial com Porto Santo… «O meu avô materno era de lá e a minha avó materna da Madeira. Sou semi-portosantense. É a minha terra de coração. Vou lá muitas vezes, em 51 anos julgo que falhei dois.» [texto de 2004]