sábado, 31 de março de 2007

O nosso movimento sindical

Uma vez entrevistei o advogado Garcia Pereira. Foi uma entrevista longa, sobre o Código do Trabalho, o que ainda por cá vigora. Este texto resulta da parte da entrevista que cortei por questões de espaço. Acaba por ser um pouco da história do movimento sindical em Portugal.

Mas como contar a história? Eliminando as perguntas e pegando apenas nas afirmações de António Garcia Pereira? Mantendo o formato de entrevista? Ou tentando um ponto de equilíbrio, intermédio? Enfim, talvez procurando o equilíbrio, mesmo que nestas coisas o equilíbrio seja sempre difícil de atingir, e pegando no excerto de uma das respostas. «Nós temos processos de luta colectiva e processos grevistas que são dos mais brandos de toda a União Europeia. Uma luta colectiva com a IG Metal na Alemanha, ou com os trabalhadores da FIAT na Itália, ou os da Air France, em França, ou os da Ibéria, em Espanha, é outra coisa.» Argumentei que se tratava dos grandes países da Europa, mas a resposta não se fez esperar. «Não é tanto por isso... Nós temos um peso muito forte do corporativismo. Quando ouvimos os sindicatos a dizerem ‘a greve, vírgula, a última arma dos trabalhadores’, onde é que isso está escrito? É uma concepção corporativa, para não dizer um pouco fascizante, acerca da greve. A greve não tem de ser a última arma dos trabalhadores. É uma arma de luta, que está seriamente posta em causa pelo Código do Trabalho, ao atribuir a definição dos serviços mínimos ao governo, o que significa que se tivermos um governo avesso aos processos grevistas vai definir como serviços mínimos serviços máximos. Começa por aqui. Ninguém fala da possibilidade de substituição dos trabalhadores grevistas. E não se diz quem tem de constatar isto, donde se presume que é o empregador ou o governo, que se se entender que não podem ser prestados os serviços mínimos ou até os serviços necessários à manutenção e à segurança de instalações e equipamentos, pode haver substituição de trabalhadores grevistas. Isto inutiliza uma greve.»
Sugeri ser uma das explicações para a quebra do movimento sindical. António Garcia Pereira... «Os sindicatos estão confrontados com propostas paternais que dizem ‘ou agora tu vens negociar abaixo da lei para teres ainda alguma coisinha e manteres alguma convenção colectiva de trabalho ou então vais ficar sem nada’. É o estado de sítio na contratação colectiva. E ninguém fala disto. Ou melhor, estou a ser injusto, as duas centrais sindicais até reconheceram que com a entrada em vigor do novo código se vive a completa especulação na contratação colectiva e que os patrões estão a apostar na caducidade das convenções colectivas de trabalho.» Ou seja... «Andou-se a discutir minudências. Os cinco dias de faltas injustificadas, ou 10 interpoladas, isso são peanuts. É completamente secundário, comparado com o estado de necessidade em que estão os sindicatos.»
Centremo-nos então nos sindicatos. «Isto é uma questão antiga. Tem a ver com todos os desafios que as profundas modificações do mundo do trabalho, sobretudo nos últimos 20 anos do século XX, trouxeram aos sindicatos. A dispersão geográfica, o aumento da precariedade contratual, a individualização das relações, tudo isso rarefez, tornou difícil, o exercício da actividade sindical; mas são factores externos ao movimento sindical. E um actor social que queira reflectir sobre a sua posição tem que pensar nos factores internos, e esses são o próprio movimento sindical, que primeiro foi surpreendido...»
Garcia Pereira foi avisando, «isto não tem acrimónia, até porque também os estados, os partidos políticos, as organizações em geral, todos foram surpreendidos». E concretizou... «O estilhaçamento das noções tradicionais de tempo e de espaço que as novas tecnologias trouxeram – o curto prazo são seis minutos e não seis meses –, tudo pode acontecer em tempo real, a Swissair pode passar a ter o centro de reservas na Índia porque opera lá durante o dia quando nós estamos a dormir na Europa e tem lá um engenheiro de sistemas informáticos licenciado pela melhor das universidades norte-americanos que custa um décimo de um norte-americano e um quarto de um suíço, o aparecimento de novas categorias de trabalhadores, todo esse jogo pôs em cheque as palavras de ordem, as tácticas, as políticas de alianças, os objectivos do movimento sindical tradicional, que levou muito tempo a perceber a necessidade de internacionalização das suas lutas e da sua organização, a permanente chantagem do dumping social que consiste em dizer a um trabalhador português ‘tu tá caladinho e aceita estas condições, porque se não queres eu salto daqui para a Lituânia, em 48 horas deslocalizo, e há lá quem aceite menos’. Isto só pode funcionar se os trabalhadores estiverem partidos internacionalmente; só há oposição a isto se a organização acontecer a nível internacional, se se lutar por que os padrões de salários na Lituânia sejam iguais aos nossos. Aí o jogo acabou.»
Apesar de a quebra de sindicalização não ter acontecido apenas em Portugal, por cá houve «características próprias». Vejamos... «Tínhamos algo que não era o movimento sindical, era uma organização corporativa horizontal, por categorias profissionais. O que se seguiu ao 25 de Abril foi um erro. Em vez de se demolir pela raiz a organização corporativa, abriu-se as janelas, agarrou-se nos indivíduos que vinham do tempo dos sindicatos nacionais, atiraram-se para a rua e meteram-se outros, os que chegaram no pós-25 de Abril. O sindicato, em si, permaneceu igual, com a mesma lógica de organização. Pior, logo depois de os sindicatos terem sido tomados pelas forças político-militares dominantes aprovou-se uma lei da unicidade que proibiu a criação de novos sindicatos no mesmo sector ou na mesma categoria. E a isto se soma um período inegável de ausência de democracia no interior dos sindicatos.» Exemplo... «Eu costumo dar como exemplo uma tristemente célebre assembleia do Sindicato dos Metalúrgicos no Pavilhão Carlos Lopes, em que todo o operário que distribuiu pontos de vista diferentes dos da direcção, fosse sobre o que fosse, levou pancada lá dentro e depois foi entregue às tropas do Copcon cá fora. Chegado aqui, o movimento sindical bloqueou. E permanece espartilhado com a lógica corporativa de organização horizontal por categoria profissional. O sindicato dos telefonistas tanto representa a telefonista da agência funerária Magno como a da Securitas, a da CUF ou a do Sporting; do ponto de vista de unidade de trabalhadores por sector de actividade ou por empresa, está completamente espartilhado, e mais, trata-se de sindicatos onde não há democracia interna nem alternativa externa. O resultado é que quando a lei da unicidade sindical foi revogada multiplicaram-se os sindicatos paralelos, como cogumelos depois da chuva, o que é um factor objectivo de enfraquecimento do movimento sindical. Isto, com os factores que referi, fez com que os sindicatos ficassem, sobretudo a partir de final da década de 1980, numa situação ultra-defensiva; deixaram-se acantonar numa lógica neo-corporativa de que os senhores existem para defenderem interesses socio-profissionais dos trabalhadores.»
Resumindo... «Os sindicatos laquearam-se de qualquer luta cívica. As grandes lutas pela defesa do ambiente, contra a desqualificação, pela qualificação dos trabalhadores deficientes, pela qualidade de vida... Os sindicatos alhearam-se. É quase incompreensível que numa zona como a da grande Lisboa, onde há 650 mil pessoas num movimento pendular casa/ local de trabalho/ casa, que nele gastam horas e horas das suas vidas, do seu tempo disponível, os sindicatos não assumam isto como uma das suas frentes de luta, chamando as associações empresariais, as autarquias, as empresas de transporte público, a Brisa, para discutirem o problema, que é grave. Perdeu-se completamente esta perspectiva. Os sindicatos deixaram-se acantonar numa perspectiva puramente defensiva de reivindicações salariais, e às vezes isto até é mal interpretado.»
Garcia Pereira fez mais uma ressalva, afirmando não estar a «dizer mal dos sindicatos». E prosseguiu... «Penso, aliás, que os sindicatos são hoje mais importantes do que nunca, sobretudo na época da individualização das relações de trabalho que o novo código faz. Só que assistimos a uma actuação sindical, em geral, em que se tenta vender tudo a troco de mais zero vírgula zero um por cento na tabela salarial, tudo, regras minimamente objectivas de progressão na carreira, infra-estruturas sociais, etc, foi tudo vendido por mais uns tostões. Depois, proposta sindical 10 por cento de aumento, resposta patronal zero vírgula um por cento... Malandros, vendidos, escravos do capital, não sei quê, não sei que mais, lacaios do capital, mas nós, que somos umas pessoas muito compreensivas e responsáveis, cinco por cento, patrão zero vírgula zero dois, e tal, andamos nisto, até que a certa altura o patrão diz zero vírgula zero dois mais 25 tostões no ticket-refeição, comunicado do costume com a grande vitória dos trabalhadores, não foi o acordo óptimo mas foi o acordo possível. Os sindicatos acantonaram-se completamente.»

sexta-feira, 30 de março de 2007

Mais de um ano depois

O texto abaixo é de Janeiro ou Fevereiro de 2006. Tinha acabado o primeiro «Lisboa/ Dakar». A foto ao lado, contudo, é já da segunda, que inclusive passou pela minha terra, bem nas serranias de Monchique; foi lá que o meu amigo Rui André a tirou.

Nós por cá
Foi quase na passagem do ano [de 2005 para 2006]. À hora do almoço do dia 31 de Dezembro. Conduzia pelo Alentejo, de regresso a casa depois de ter participado na noite anterior numa reunião da assembleia municipal do concelho onde nasci, no Algarve. Tinha optado por estradas nacionais, de forma que passei por Castro Verde, Aljustrel, Ferreira, Torrão, Alcáçovas… Era o primeiro dia do «Lisboa/ Dakar», que fui espreitando nalguns pontos do percurso, quando a estrada nacional quase tocava alguma das de terra batida escolhidas pela organização. Inclusive, pouco antes de Aljustrel, passei entre dois concorrentes, numa zona onde atravessavam a estrada nacional, com uma dúzia de agentes da GNR a controlarem as coisas. Fizeram-me parar, numa zona da estrada com carros estacionados de um lado e do outro e com centenas de pessoas a viverem como que um dia de festa, e de repente passou um concorrente, como se costuma dizer, «a abrir», quase saltando sobre o alcatrão, que formava como que uma lomba. Um dos agentes, de imediato, sem perder tempo, mandou-me avançar, e eu sem querer acreditar naquilo, mas o que é certo é que lá avancei. Nem me teria afastado uns 50 metros, quando pelo espelho retrovisor vi passar o concorrente seguinte.
Eu sintonizava a «Antena Um». Por aquelas estradas é o melhor, porque apanhar a «TSF», por exemplo, é mentira, e as rádios locais estão sempre a mudar de dez em dez quilómetros. Foi por isso que ouvi uma entrevista do ministro dos Negócios Estrangeiros, Freitas do Amaral. Parecia ser uma espécie de balanço do ano de 2005, do mundo, da Europa – sobretudo da Europa –, do país e até, imagine-se, do seu próprio ministério. E o homem surpreendeu-me, não no conjunto da entrevista, pois acabou por ser o Freitas do Amaral que todos conhecemos, mas quando de repente, e sobre o seu ministério, disse que as pessoas de lá tinham de deixar de trabalhar à mão e passar a usar o computador.
Ainda no Alentejo, uns dias antes, e ainda a GNR, desta vez num dos postos da corporação, não em preparativos para o «Lisboa/ Dakar» mas a tratar de uma multa por estacionamento indevido, com direito a reboque da viatura e tudo. Quanto à multa, era 60 euros, a pagar directamente à agente da recepção; quanto ao reboque, isso tinha de ser tratado entre a dona do carro e o senhor do reboque, que estava à espera. A dona do carro passou um cheque de 60 euros, creio que à ordem da Direcção-Geral de Viação, e a respeito do reboque perguntou ao senhor quanto era; este nem perdeu tempo e informou que o transporte ficava por 30 euros, acrescentando logo a seguir que se fosse com factura ficava mais caro, por causa de ter de acrescentar o IVA. Tudo se passava num posto da GNR, com os agentes a assistirem como se nada fosse com eles, até porque a parte da multa já estava resolvida.
Saindo do Alentejo, um caso sem GNR, mas que poderia muito bem meter a polícia. Segunda metade da década de 1990. Um ministro não aguenta muito tempo no cargo porque se descobre que burlou o próprio Estado na compra de um apartamento de luxo. Passa quase directamente para a presidência de uma das mais importantes empresas nacionais, senão mesmo a mais importante, e ainda por cima com capitais públicos. Vai ganhar umas três vezes mais. E continuará nos anos seguintes em cargos de topo. Esses anos seguintes trouxeram-nos até 2005. Outro ministro sai, sem perceber que o facto de em menos de meia dúzia de anos ter acumulado à custa dos fundos de uma instituição pública uma reforma principesca constitui um insulto para a grande maioria dos cidadãos do seu país.
Estes casos contribuem, cada um deles, um bocadinho cada um deles, para se fazer um retrato da nossa sociedade. Estamos muito atrasados. Temos modelos de gestão das pessoas – construídos por cá ou copiados de outras paragens –, falamos de recursos humanos, até de capital humano, ou human capital, mas quase sempre esquecemo-nos de uma envolvente de outro tempo, onde as competências tantas vezes têm de ceder lugares às conveniências, ainda por cima bastantes lugares. É um sinal de como estamos, talvez até um sinal do que somos. Porque a verdade é que sempre tem sido assim.
A gestão das pessoas, a nossa gestão das pessoas, no meio disto, adapta-se. É uma das mais importantes regras da natureza, a adaptação; há peixes que se confundem com a areia do fundo do mar, e insectos que nenhum predador distingue do tronco onde se refugiam. As pessoas, elas próprias, adaptam-se também, ou são adaptadas – ou melhor, formatadas. É o que acontece. Para quê falar de conceitos, e em tantos casos conceitos dos quais não se perdeu tempo a fazer traduções por cá? Do que nos rodeia, o que fica, mais do que os conceitos, é o ruído da adaptação. O crescimento que é fundamental, a dica sobre os jovens até 30 anos puderem ser despedidos em qualquer altura, e o objectivo de um salário mínimo de 500 euros que convoca de imediato o fantasma das falências em massa, e as deslocalizações, e os baixos níveis de formação com os mais altos níveis de despesa em educação, e o destino dos fundos europeus para a formação profissional, e tantos outros tons do ruído. Da adaptação. Eu, obviamente, preferia outras regras.

quinta-feira, 29 de março de 2007

Dar-se bem

Escrevi este texto há uns dois meses, para a revista «Pessoal», a partir de algumas respostas de pessoas que muito considero na área a que o blog «Mundo RH» se dedica; são respostas a perguntas relacionadas com o facto de o presidente da nossa República e o primeiro-ministro, aparentemente, se darem muito bem.

Sócrates/ Cavaco
Por que é que eles se dão tão bem?

Cooperação estratégica, é isso que tem marcado a actividade dos dois principais líderes políticos do país. Pelo menos é o que observa boa parte da comunicação social e acentuam muitos dos comentadores. Fala-se de um novo conceito na política portuguesa, de cumplicidades – estranhas ou já esperadas –, fala-se de tantas coisas. Por que é que será que Cavaco Silva e José Sócrates, à partida de áreas políticas diferentes, se dão tão bem?

A cooperação estratégica é ideia de Cavaco Silva, ou melhor, é expressão de Cavaco Silva, que já em tempos se lembrou de coisas bem diferentes, como as forças de bloqueio, o homem do leme (ele próprio) ou até os ajudantes (os ministros) – se bem que a questão dos ajudantes não seja tão diferente como isso, por implicar cooperação, mesmo que não seja estratégica. José Sócrates ter-se-á limitado a achar o conceito interessante, o conceito e tudo aquilo que poderia implicar. Isto é uma hipótese. Outras haverá, envolvendo jogos, combinações, fingimentos, manhas e o mais que se possa imaginar, ou adivinhar. Fica no entanto uma certeza, ou antes, duas: primeira, os dois principais líderes políticos do país têm actuado de forma a fazer com que a expressão «cooperação estratégica» possa fazer sentido; segunda, o facto de terem tomado essa opção causa estranheza em muita gente, como se o mais normal fosse protagonizarem um clima já nem se diz de guerra permanente, mas pelo menos de crispação.
Claro que há quem simplifique as coisas. Presidente e primeiro-ministro dão-se bem porque são «muito parecidos», embora apenas «de certa maneira». Vasco Pulido Valente acha isso. Pelo menos achou há uns tempos, num dos seus artigos do diário «Público», em que a determinada altura escrevia… «O doutor Cavaco e o engenheiro Sócrates são de certa maneira muito parecidos. Saíram os dois de um obscuro canto da província (um de Boliqueime, o outro da Beira) e em Lisboa, no Governo e, no caso de Cavaco, até em Belém, nunca verdadeiramente se adaptaram à cultura urbana. Vem neles sempre à superfície o constrangimento do estranho, uma certa reserva de quem não está em casa e uma atávica desconfiança da volubilidade e das maneiras de uma classe média e de uma burguesia com uma educação mais sofisticada e cosmopolita. Não ‘pertencem’. Mas, por isso mesmo, têm uma enorme vontade de poder, servida por uma enorme paciência e disciplina. É a velha história, que encheu dois séculos de literatura, do jovem que sobe à capital para a dominar, na sua variante moderna e portuguesa.» Cavaco Silva, recém-doutorado em literatura, ainda que na Índia e apenas por uma fugaz questão de honra, talvez pudesse tecer alguns comentários; José Sócrates, sem a muleta dessa «especialização», eventualmente também haveria de dizer qualquer coisita, se quisesse.
Em tempos não muito distantes, estando Cavaco Silva no lugar agora ocupado por José Sócrates, e com Mário Soares de armas e bagagens no Palácio de Belém, as coisas eram muito diferentes. Nem valerá a pena recordar os termos em que (ao que se diz) se referiam a um e a outro. Tão-pouco valerá a pena recordar as fogueiras que nunca se coibiram de atear, ou mandar atear, tendo o país por pano de fundo. Estranhamente, pouca gente estranhava que fosse assim. Agora, estranha-se a cooperação estratégica. Comenta-se insistentemente o facto de o presidente da República, a nossa, e o primeiro-ministro terem uma relação de grande entendimento, por vezes como se isso fosse algo de anormal, de bizarro até. Pela minha parte, nem é uma questão de estranhar, nem de achar normal. Tentei foi perceber as razões para que tanto falatório exista, só porque dois líderes parecem entender-se em vez de andarem às turras. E para isso procurei ouvir diversas opiniões.

Os comentários
Uma primeira questão que coloquei teve a ver, precisamente, com o facto de esta situação gerar tantos comentários. Por que é que isso acontecerá? Jorge Araújo, presidente da Team Work – uma empresa de consultoria na área de desenvolvimento de pessoas e equipas, com sede no Porto –, acha que a situação «reflecte, afinal, aquela que é uma das nossas grandes dificuldades». Na sua opinião, «tudo o que se refere a cooperar, ou trabalhar em equipa com base em confiança e respeito mútuo, tendo em vista objectivos comuns, não é propriamente um hábito cultural que esteja enraizado entre nós». E acrescenta… «Bem pelo contrário, tendemos para optar quase sempre pelo dividir para reinar ou pela tentativa constante de pensar primeiro nos interesses particulares em detrimento dos interesses colectivos. Servir o país? Nem pensar. Antes do mais nós, pensar pequeno, evitar quanto possível que o todo jamais seja maior do que a soma das partes, até mantendo a realidade que nos rodeia reduzida à dimensão que julgamos ser aquela em que melhor podemos sobreviver individualmente. Sempre que deparamos com exemplos que diferem deste tipo de comportamentos, estranhamos; é natural.»
Já na opinião de Glória Rebelo o assunto tem sido «um pouco empolado». Esta jurista e professora associada da Universidade Lusófona de Humanidades e Tecnologias, em Lisboa, não vê a cooperação com estranheza. «Pelo contrário, encaro-a com naturalidade. O presidente da República é constitucionalmente, e sobretudo, o garante da unidade do Estado e do regular funcionamento das instituições democráticas, e o primeiro-ministro o condutor político e, ao mesmo tempo, o responsável político perante o presidente e a Assembleia da República. Assim, vejo com naturalidade esta relação de cooperação institucional. No âmbito do espírito constitucional, o presidente deve ser um congregador político e se considerarmos o momento que vivemos, especialmente desafiante para Portugal – em que o país recupera de uma forte crise socio-económica –, é fundamental a presença de um presidente da República conciliador, dotado de habilidade política e da capacidade de, apelando ao envolvimento dos cidadãos nos processos de concretização das reformas necessárias, incutir nos portugueses a confiança num futuro melhor.»
Cristina Marques, managing partner da WeChange – uma empresa de consultoria, com sede em Lisboa, que orienta a sua intervenção na assumpção de que pessoas, processos e performance actuam em reciprocidade e intervêm nos resultados das organizações –, defende que «a leitura das pessoas é baseada nas percepções construídas sobre a imagem politica que cada um deles [Cavaco Silva e José Sócrates] passou ao longo da respectiva carreira». Acresce a isto «a forma como os nossos debates políticos são vistos pela população em geral – falta de diálogo, ninguém se ouve, posições intransigentes no processo negocial, incapacidade de encontrar plataformas comuns para progredir nos objectivos delineados». Ou seja, «de uma maneira geral, a classe política desrespeita os princípios-base de comunicação/ negociação, o que cria a expectativa de que é impossível encontrar pontos de convergência em políticos oriundos de diferentes quadrantes políticos». E neste caso «as características de cada um dos dois, com personalidades bastante marcadas e diferenças nos estilos de abordagem e de liderança, contribui para essa leitura de incompreensão do fenómeno».
Na mesma linha de raciocínio está Pedro Cunha, professor associado na Faculdade de Ciências Humanas e Sociais da Universidade Fernando Pessoa (Porto), instituição em que também coordena o mestrado em «Trabalho Social e da Área Científica de Serviço Social». Como acentua, a estranheza perante a cooperação, «em primeiro lugar, deve-se ao facto de, para além de estarem ligados a partidos políticos tradicionalmente rivais, ambos serem detentores de personalidades, quer pessoais, quer políticas, muito vincadas». Por outro lado, «a actual comunicação social portuguesa gosta de sustentar estes factos como eventualmente passíveis de polémica, o que na realidade poderá não se verificar».

Estratégias e características
Uma outra pergunta que coloquei foi sobre se a cooperação de que tanto se tem falado terá mais a ver com as estratégias particulares de Cavaco Silva e José Sócrates ou se na sua base estarão mais as características de cada um. Cristina Marques acredita que se trata acima de tudo de «um fenómeno que se sobrepõe aos aspectos personalísticos e às estratégias individuais», que aquilo que importa é «a determinação na prossecução dos objectivos que ambos partilham como um princípio-base nas atitudes perante os cargos políticos que desempenham» – no fundo, «o sentido de missão». Mas com uma advertência, a de que isto «só é possível se for suportado em pessoas que se respeitem e que se destaquem pelo nível de inteligência que possuem, quer cognitivo, quer emocional». É um pouco o que defende Glória Rebelo, para quem «a actual relação não está ligada às estratégias de cada um». Para a professora universitária, «é óbvio que quer o presidente da República, quer o primeiro-ministro, têm a consciência, enquanto estadistas, de que a estabilidade e a cooperação institucional são fundamentais para Portugal», e tudo «parece resultar, sobretudo, do entendimento natural que cada um tem relativamente à governação e ao desejo de que o país possa superar o actual momento menos bom ao nível socio-económico». Ou seja, «ambos comungam de um forte sentido de Estado e de cumprimento do dever de interesse público», algo que, «sem ser suficiente para assegurar a retoma dos indicadores socio-económicos, é bom para o país».
Um pouco em desacordo está Pedro Cunha, parecendo-lhe que «o presidente da República e o primeiro-ministro se estão a avaliar um ao outro e que os seus comportamentos de grande cooperação, basicamente, são estratégicos». Talvez possa estar aqui uma pista para descodificar a expressão «cooperação estratégica». Já Jorge Araújo prefere assinalar que «o aspecto mais relevante na actual relação é que qualquer um dos intervenientes demonstra antes do mais os cuidados necessários com a necessidade de preservar um fundamental equilíbrio relacional que sirva o país e não o partido ou o interesse particular de cada um». Mas depois diz… «Até quando assim se aguentarão, vamos a ver. Até agora têm sido modelares e uma verdadeira referência relativamente ao modo como se deveria fazer política em Portugal.»

Cooperação ou choque
Perante o espanto que muita gente tem mostrado a respeito do entendimento até agora irrepreensível de Cavaco Silva e José Sócrates, importa perguntar… Será que é mais normal dois líderes, num mesmo, digamos assim, território, cooperarem ou entrarem em choque? Pedro Cunha acha que «se forem líderes estrategas, cooperarão sempre que tal se revelar fundamental para objectivos que ambos considerem relevante alcançar». Cristina Marques refere que «depende acima de tudo dos objectivos que estão subjacentes» e que por isso «àqueles que verdadeiramente conseguem pôr os interesses do país acima dos individuais e partidários é que podemos e devemos chamar líderes». Isto porque, conforme explica, «a definição de líder não assenta em bases de defesa territorial, mas na capacidade de defender de forma assertiva os interesses da entidade, ou do grupo, procurando situações de vantagem competitiva que se traduzam numa plataforma de win-win e na capacidade de orientar e motivar os seus seguidores para a missão, não os deixando dispersar por factores de importância secundária».
Em relação a esta questão, Jorge Araújo é mais cauteloso, e foca mesmo o caso de Cavaco Silva e José Sócrates. «O que eu acho normal é que umas vezes se entendam, outras não. Naturalmente sem nunca perderem o necessário sentido de responsabilidade que lhes permita, em ambas as circunstâncias, dar prioridade ao interesse colectivo. Nada me diz que em privado – e espero bem que isso aconteça – por vezes não se entendam, mas que mesmo assim consigam negociar com flexibilidade e maturidade qual a solução que melhor sirva o país e a partir daí saibam, em público, parecer que estão sempre de acordo. Quem garante que o que está a acontecer não é simplesmente uma enorme demonstração de maturidade de cada um deles, que à vez, mesmo não estando de acordo com a solução escolhida, conseguem flexibilizar a respectiva posição?» Ou seja, «a questão central não deve ser se chocam ou não, porque em todos os colectivos de sucesso o confronto e a crise funcionam em determinadas circunstâncias como catalisadores do progresso, e espero bem que seja isso que esteja também a acontecer». No fundo, «o que importa é que, publicamente, tais discordâncias não transpareçam, tendo em conta os superiores interesses do país».

E o futuro?
Com um ano de cooperação e mais não se sabe quantos de coabitação, o que poderá ser o futuro? Glória Rebelo acha que «a cooperação se vai manter». Aliás, reforça, «não há nada que leve a prever o contrário». Razões para pensar assim… «Como se sabe, em muitos países europeus a articulação entre os chefes de Estado e de governo tem sido muito profícua. Repare-se no que se passa em Espanha, em França ou na Alemanha… A governação nestes países tem-se apoiado muito nesta complementaridade institucional, em particular no que respeita a acções de diplomacia económica. Em Portugal, a linha a seguir parece idêntica: veja-se que a recente visita do presidente da República à Índia revela esta complementaridade – a comitiva incluía cerca de 60 empresários interessados em estabelecer ou reforçar relações recíprocas de natureza comercial e económica.»
No mesmo sentido vai a opinião de Cristina Marques… «A cooperação manter-se-á, assim as pressões partidárias não constituam um entrave. O contexto em qualquer governo, assim como em qualquer empresa, é um facto determinante para favorecer ou minimizar o impacto de uma determinada postura.» Já Pedro Cunha não tem tantas certezas… «A acreditar no que temos visto, poderíamos dizer que a cooperação tem dados bons resultados para ambos, pelo que seria de supor a manutenção da mesma. No entanto, como ambos têm personalidades fortes, é também de supor que essa atitude de cooperação possa sofrer alterações no futuro.»
Em jeito de conclusão, um voto de Jorge Araújo… «Para bem do país, espero que tudo o que tem acontecido até ao momento corresponda exclusivamente a uma relação modelar em termos de desprendimento pessoal e puro exercício da defesa do interesse colectivo. Se assim não for, lamentavelmente, perderei por fim a diminuta esperança que vou mantendo quanto a ser possível ainda aqui e ali identificar alguns políticos que fazem a diferença para melhor.»

»»» CAIXA
Portugal SA
Imagine-se um cenário em que em vez de estarmos a falar de Portugal o que estava em causa era uma empresa. Portugal SA, por exemplo, com Cavaco Silva como presidente, ou chairman, como agora há quem goste de dizer, e José Sócrates como director-geral, ou então a ser identificado com aquela sigla patética de «CEO». O que é que poderia acontecer? As respostas são de Pedro Cunha, Cristina Marques e Jorge Araújo.
«Neste caso, creio que o chairman teria um comportamento de controlo, ainda que discreto, da actividade do director-geral.» [Pedro Cunha]
«Acredito que a prática reflectida no governo se verificaria. Ambos têm uma forte orientação para objectivos, respeito pela competência e pelo rigor, além, acima de tudo, de uma grande auto-confiança, que faz com não se sintam ameaçados um pelo outro. Para além disso, a abordagem diferente pode constituir uma vantagem competitiva; um mais directivo na forma de liderança, o outro mais consultivo e participativo, contribuiriam para um enriquecimento da liderança estratégica do negócio. O facto de se respeitarem e conseguirem ultrapassar as suas diferenças e as ideologias individuais criaria um clima de confiança favorável no grupo de gestores, que fortaleceria a direcção do mesmo no sentido pretendido.» [Cristina Marques]
«Cavaco Silva e José Sócrates numa empresa… Não faço a mínima ideia de como seria. Mas a questão central é a mesma. Consoante se dispusessem a servir o colectivo, ou cada um optasse por dar preferência à respectiva agenda particular, obviamente que seria diferente aquilo que aconteceria.» [Jorge Araújo]

domingo, 25 de março de 2007

Se eu fosse escravo...

Numa das primeiras edições de 2004 da revista que dirijo («Pessoal»), publiquei o texto que deixo a seguir (O título é o que está ali em cima, «Se eu fosse escravo…»); fala de uma estranha escravatura, ainda por cima nova, e foi escrito para uma das secções habituais da revista («RH Ontem» nessa altura, tendo depois mudado para «Pessoal Ontem», designação que ainda se mantém).

Se eu fosse escravo, o que acontecia é que levantava-me às sete da manhã, tomava «um belo de um pequeno-almoço», isto para adequar a linguagem aos novos tempos, e depois lá ia para o trabalho, no banco de trás do carro, com os jornais da manhã, o portátil e dois ou três telemóveis a distâncias convenientes. As confusões do trânsito, enfim, o motorista que se preocupasse com isso.
O problema é que não sou escravo, e quanto ao trânsito tenho de ser eu a preocupar-me. Fica assim o telemóvel (um apenas) em descanso, já para não falar dos jornais. Portátil, por enquanto, ainda não se arranjou nada. Mas se eu fosse escravo tudo seria diferente, pelo menos se fosse um «novo escravo», para utilizar a expressão que aparece numa edição da «Pessoal» de 1999. Pedro Martins, consultor, na altura a «percorrer solitariamente o planeta», sempre «com encontro marcado com o desempenho excepcional», não era bem o seu criador, da expressão, entenda-se, mas quase. A entrevistadora (Madalena Avillez) colocava-a no título, no plural, a partir da resposta de Pedro Martins a um comentário seu sobre «a marginalização impiedosa e passiva dos candidatos a emprego», que segundo Viviane Forrester, no livro «O Horror Económico», «o futuro ia trazer». Quase cinco anos depois, e sendo que isso já dá margem suficiente para se dizer que agora estamos mesmo no futuro daquele presente de 1999, o passado de agora, 2004, vejamos a resposta de Pedro Martins, no parágrafo seguinte…
«Hoje em dia falar da gestão das pessoas, de como elas são importantes e devem ser valorizadas, é um tema muito quente, mas que a mim me parece uma grande hipocrisia. Enquanto há uns anos atrás se falava nos processos e na organização do trabalho, e antes nas próprias máquinas, hoje falamos nas vantagens distintivas das pessoas. As pessoas passaram a ter uma importância muito grande, não porque são pessoas, mas porque o resultado das empresas depende mais delas do que da organização e dos instrumentos de trabalho. Nunca foram tão escravizadas como hoje. Dantes havia escravos e senhores. Agora todos são escravos. Ninguém é mais escravo que o presidente de uma grande empresa. Aquela oligarquia antiga em que ele ficava um pouco acima da absorção pelo trabalho, já não existe. Um presidente de uma empresa de elevado desempenho dorme muito pouco e está sempre a trabalhar. Este é o reverso da medalha da valorização das pessoas. Passei os últimos anos a partilhar o meu tempo com essas pessoas. Acho que elas são felizes. Provavelmente não fazem é ninguém feliz ao lado delas.»
Enfim, talvez me tenha precipitado em dizer que o problema é não ser escravo; talvez até já o seja e não tenha nunca dado por isso. Há os escravos mesmos escravos, os de sempre, a que poderemos chamar velhos, e depois os «novos», os presidentes das «grandes empresas», os que antes estavam «um pouco acima da absorção pelo trabalho», e um pouco acima de outras chatices capazes de estragarem por completo a vida de um presidente à boa maneira… Ia escrever portuguesa, mas não vamos a tanto, à boa maneira antiga, sim, talvez seja melhor. Devia ter cuidado com estas opções e assegurar-me do tipo de escravatura que me esperava, ver se incluía motorista (que trás sempre carro incluído), secretária, telemóvel, assessores (e assistentes), cartão de crédito, viagens, package salarial de acordo com isto e mais isto e mais uma data de coisas com a ressalva de não descer do nível tal tal tal… E por aí adiante. Devia assegurar-me se à espreita está a «nova» escravatura ou se, bem pelo contrário, está a do costume, aquele que é pensada e bem repensada nos altos domínios das «oligarquias» do tal nível «um pouco acima da absorção pelo trabalho».
«Grandes empresas» e «novos escravos» fazem-me lembrar de um senhor que era ministro e que depois foi para escravo, dos «novos», já se vê, exactamente na mesma altura em que comprei uma casa e tive de pagar de sisa quase dois mil contos (na altura ainda usávamos contos, escudos e outras coisas daquele presente em que se perspectivava como futuro este presente de agora). O senhor comprou uma casa e achou que não devia pagar a tal sisa, que o seu chefe primeiro-ministro ainda por cima considerava «o imposto mais estúpido do mundo». Talvez só mesmo quem negociou com uma empresa a sério, com as contas bem certas, é que devesse pagar tudo normalmente, como eu. Nunca o senhor ministro. Claro que depois foi apanhado e teve de pagar o imposto, mas se não tivesse sido lá tinha continuado ministro por mais uns anitos, provavelmente até ao dia em que o chefe se demitiu. Enfim, foi para escravo, para a presidência de uma «grande empresa». E a ganhar não sei quantas vezes mais é bem provável que tenha sido feliz. E se calhar até fez muita gente feliz ao seu lado.

sábado, 24 de março de 2007

O paradoxo

O primeiro contributo que coloco neste blog dedicado ao mundo da gestão das pessoas nas organizações é um texto intitulado «O Paradoxo», que escrevi para o «Anuário RH 2007», uma publicação editada pela International Faculty for Executives (IFE) e distribuída na sexta edição da «Expo’RH», que decorreu a 21 e 22 deste mês no Centro de Congressos do Estoril. O que me pediram foi que procurasse dar um pouco da minha visão do que é actualmente a gestão das pessoas no nosso país. O texto é o seguinte…

Uma vez alguém perguntou a um filósofo português se ele
era ortodoxo ou heterodoxo. A resposta que levou foi que nem uma coisa, nem outra; o filósofo, segundo afirmava, pleno de convicção, era mais pelo paradoxo. Chamava-se Agostinho da Silva esse filósofo e pelo tempo em que deu essa resposta estava a ser como que redescoberto, ou talvez apenas descoberto, depois de durante décadas ter sido por cá ignorado. Gozava os últimos anos da sua vida, numa casa da zona do Príncipe Real, em Lisboa, com alguns gatos por companheiros e com a lida da casa a ser assegurada pela empregada de uma amiga que vivia perto. A empregada chamava-se Manuela e eu lembro-me de a ver de vez em quando em casa de pessoas conhecidas, numas visitas a correr, invariavelmente a falar do «senhor professor» e dos gatos, e sempre bem disposta, sorridente, por vezes a soltar uma gargalhada, e por vezes também a meter nas frases uma expressão brejeira ou até um palavrão. Isto era no final da década de 1980, eu andava na faculdade e no curso de Gestão tinha uma cadeira chamada Gestão de Recursos Humanos dada por um senhor barrigudo que trabalhava nessa área numa grande empresa pública.
Passou mais de uma década e meia. E foi durante este período que eu me familiarizei com o mundo real das empresas. Por exemplo, com aquilo que se faz em termos de gestão de recursos humanos, ou com aquilo que tem vindo a ser feito. E a opinião que fui formando lembra-me a resposta de Agostinho da Silva. Não por eu, a respeito da gestão das pessoas nas organizações, ser mais para o ortodoxo, ou mais para o heterodoxo, tão-pouco por, afinal, me interessar apenas pelo paradoxo. Nada disso. Mas lembro-me da resposta do filósofo, sobretudo do termo paradoxo.
Gerir pessoas, seja em que tipo de organização for, parece-me algo simples, trabalhoso mas ao mesmo tempo simples, a exigir uma tremenda dedicação só que simples. Tenho presente, quando penso nisso, as muitas tarefas que implica, de maneira a que se cumpra coisas básicas; por exemplo, cuidar para que tudo funcione em termos, digamos assim, administrativos – refiro-me a contratos, pagamento de salários ou cumprimento de obrigações fiscais, sociais, de saúde, de segurança... Por estranho que possa ser, em muitas empresas portuguesas bastava que isto funcionasse para ser conseguido um grande feito. Depois, indo mais além, cuidar para que o respeito pela dignidade das pessoas não termine nos aspectos meramente administrativos. Falo da integração plena, valorizando a responsabilidade tanto por parte dessas mesmas pessoas como por parte da empresa, para que aspectos como a comunicação, a formação, a motivação, a avaliação ou a recompensa, entre outros, não existam apenas como algo que é preciso de alguma maneira meter na empresa, tantas vezes sem nenhuma tradução na prática, sem a mínima aplicação fora das folhas de um qualquer «powerpoint». Trabalhando também a este nível – e não será pouco o trabalho, inclusive o administrativo –, é bem possível que se possa falar da existência de uma efectiva gestão de recursos humanos, sem que seja necessário o refúgio naquelas expressões que de repente nos invadiram, na nossa própria língua ou em inglês, o capital intelectual, a produtividade (normalmente de mão dada com a competitividade), as inevitáveis competências, a performance, os quadros estratégicos, a responsabilidade social, os talentos (e a sua gestão) e por aí adiante, coisas que em muitas reflexões surgem tantas vezes a seguir a uma abertura que já se afigura como inevitável, aquela frase que martela com a ideia de vivermos tempos de mudança num mundo que tem como principal característica o facto de ser, já se vê, globalizado.
Coisas simples e trabalho, é no que penso quando o tema é a gestão das pessoas. Só que por vezes – e aqui é que surge o paradoxo –, quando falo com gente da área, a sensação com que fico é precisamente do contrário: nada de coisas simples, antes tudo bastante complicado, integrado em modelos, normas, pressupostos e até, imagine-se, paradigmas, e dentro de um portátil para que carregando numa tecla («à distância de um clic») tudo, digamos assim, se desenvolva. Ou seja, e isto sou eu a pensar, não deve dar muito trabalho.
Confesso que por vezes sinto a tentação de apostar nesta última via para a gestão de recursos humanos. Mas nunca fico convencido. E regresso à primeira, a das coisas simples e do trabalho, inclusive usando um portátil. E lembro-me do paradoxo.
Mas tudo isto talvez até nem seja, como dizer… Tudo isto talvez até nem seja importante, às vezes, quando penso em situações que vivi, as quais nem sequer de uma deficiente gestão de recursos humanos são indício. Apresento aqui uma delas, de forma resumida. Aconteceu num banco em que trabalhei… Fui atropelado junto à porta da sede, quando numa manhã ia a entrar, e os bombeiros levaram-me inconsciente para o hospital; a minha família vivia longe e no posto da polícia da zona não havia possibilidade de fazer chamadas interurbanas (e os telemóveis estavam apenas a aparecer). Muito a custo, um dos agentes conseguiu que do departamento de recursos humanos do banco fizessem a chamada; foi a única colaboração que tive da instituição para a qual trabalhava. Não devia ser um quadro estratégico… Acabei por recuperar ao fim de quinze dias. Paguei uma parte das despesas do hospital, ficando o resto a cargo do serviço nacional de saúde. Voltei ao banco para dizer que não queria lá continuar.
Claro que esta situação, como tantas outras que infelizmente ainda vão acontecendo em Portugal, está muito além de tudo o que me faz recordar do termo paradoxo. E isso, parece-me indiscutível, é vergonhoso para todos nós, enquanto sociedade; e, pensando bem, chega a ser assustador.