quinta-feira, 28 de agosto de 2008

Presidente de câmara, um perfil

Um trabalho de 2003, que fiz para a revista «Pessoal». Só foi possível graças ao apoio enorme do meu amigo Luís Bento (na foto, de João Andrés), que é um notável consultor de gestão.


.
As cadeiras da presidência
.
Quem ocupa as cadeiras da presidência nos municípios portugueses? Haverá um perfil-tipo? Ou será a diversidade de tal ordem que traçar esse perfil pode ser uma missão impossível? Luís Bento, habitual colaborador da «Pessoal» e profundo conhecedor da realidade do poder local em Portugal, aceitou o desafio.
.
Luís Bento é um experiente consultor de gestão, tendo tido ao longo dos últimos vinte anos uma actividade relevante quer em Portugal, quer um pouco por todo o mundo. Tem dedicado particular atenção às questões ligadas à formação, o que o levou a ocupar cargos de topo como o de presidente da IFTDO, a Federação Mundial de Formação e Desenvolvimento. Outra área em que tem actuado é ao nível da gestão autárquica, sendo frequentemente chamado a intervir como consultor um pouco por todo o país, trabalhando directamente quer com dirigentes (presidentes de câmara, vereadores, directores…), quer com outro tipo de colaboradores. É pelo seu conhecimento particular de uma realidade que parece vir a consolidar-se depois de quase três décadas de democracia que resolvi recorrer a ele para me apoiar na elaboração deste trabalho.
Para Luís Bento, «vão longe os tempos dos presidentes de câmara quase analfabetos, pequenos caciques locais, agarrados ao poder a todo o custo, manipulando os eleitores a seu bel-prazer e enriquecendo à custa do erário público». Este era o «retrato fiel da organização político-administrativa do Estado Novo».
Ainda Luís Bento… «O poder local, uma notável criação da democracia portuguesa, possibilitou um enorme desenvolvimento do país num escasso quarto de século, criou e formou, felizmente, uma nova geração de presidentes de câmara, que, de acto eleitoral em acto eleitoral, se vem impondo de forma firme e prestigiante. Podemos dizer que, devido a isso, assistimos nos últimos tempos a um facto sem paralelo: a função de presidente de câmara tornou-se tão apetecível e prestigiante que já encontramos ex-ministros e outros políticos de grande notoriedade a desempenharem essas funções. Ainda bem. É um sinal de maturidade da função, mas também é um sinal de que as anteriores gerações de presidentes de câmara fizeram o chamado ‘trabalho de sapa’, ou seja, criaram e desenvolveram as infraestruturas-base que hoje tornam apetecível esse lugar, e souberam construir, com o seu trabalho anónimo e por vezes muito duro, as condições necessárias para que os políticos profissionais ambicionassem tornar-se presidentes de câmara.»
No entanto, a batalha pela verdadeira consolidação do poder local parece ainda não estar ganha. Segundo Luís Bento, «persistem enormes debilidades e assimetrias, que precisam de ser combatidas, sob pena de, daqui a um par de anos, ninguém querer assumir as responsabilidades do cargo de presidente de câmara». «As novas exigências de intervenção do poder local, muito por força da transferência de competências reclamada incessantemente, exigem hoje de um presidente de câmara um perfil muito específico, de alguma complexidade, para poder liderar e gerir fenómenos novos que transcendem o que até aqui era habitual. É um paradoxo curioso. Em muitos casos, o poder central, com uma máquina político-administrativa poderosa e com orçamentos dilatados, transfere para o poder local competências de intervenção, somente ao nível político-administrativo, não fazendo acompanhar essa transferência – aliás, absolutamente necessária – dos meios técnico-económicos necessários. E os presidentes de câmara vêem-se, muitas vezes, perante verdadeiras armadilhas – que eles próprios criaram, é certo – mas que exigem respostas cabais e estruturas adequadas.»
.
O perfil
Luís Bento defende que «é neste quadro que se tem que olhar para o perfil actual dos presidentes de câmara e equacionar aquele que deverá ser o seu perfil futuro».
E qual é o perfil actual? O consultor apresenta 13 ideias-chave…
«É um(a) homem(mulher) com experiência política prévia nos respectivos partidos, com experiência de vida, capaz de galvanizar a opinião pública local através de projectos e de ideias que traduzam realizações possíveis e/ ou necessárias, com idade compreendida entre os 45 e os 55 anos. Vive maioritariamente do salário que aufere, mas detém competências e capacidades para exercer outra profissão. Gosta da evidência pública e, muitas vezes, exagera na importância que a si próprio(a) confere.»
«Não tem, normalmente, experiência de gestão – situação que prefere esconder – e revela carências no domínio do planeamento estratégico.»
«Gosta de ser pragmático(a), talvez para se defender – e tem dificuldades em perceber os mecanismos financeiros, entendendo muito melhor as regras económicas.»
«Trabalha muitas horas, rodeia-se de diversos assessores – muitas vezes sem qualquer preparação para gerirem os dossiers que lhes são confiados –, conferindo-lhes a necessária confiança política.»
«Tem dificuldades de análise de dossiers mais complexos.»
«Queixa-se da máquina administrativa, mas pouco faz para melhorá-la, pois tem medo de perder influência e controlo.»
«Procura a notoriedade externa, mas dentro da câmara tem dificuldades de diálogo com os técnicos e com os funcionários.»
«Adora conceder audiências e fazer-se esperar.»
«Está sempre à procura de conseguir licenciar grandes empreendimentos – os que trazem receitas significativas –, podendo, muitas vezes, desrespeitar o Plano Director Municipal (PDM), só para aumentar, a curto prazo, a receita do município.»
«Tem uma enorme falta de sensibilidade para as questões ligadas às novas tecnologias, com excepção dos telemóveis e dos automóveis topo de gama.»
«É um(a) excelente 'vendedor(a)' do seu concelho, tudo fazendo para lhe conferir notoriedade nacional.»
«Gosta, verdadeiramente, do contacto com as populações e vive intensamente os problemas dos seus munícipes.»
«Por vezes, tem dificuldade em perceber que ainda não é primeiro(a)-ministro(a).»
Este é o perfil-tipo traçado por um conhecedor da realidade do poder local em Portugal após 29 anos de democracia. Daqui a outros tantos anos, lá para 2032, quem estarão a suportar as cadeiras da presidência? [texto de 2003]
.

Sem comentários: