domingo, 28 de outubro de 2007

Mediterrâneo RH (11)

Depois de algum tempo de interrupção, mais um pouco do projecto «Ágora RH» (explicação do projecto no post 1 sobre este tema - ver arquivo, Abril de 2007); a pequena entrevista com o representante da Hungria.

Peter Soltész (Hungria)
«A sensibilidade dos políticos europeus está a aumentar.»

Peter Soltész é professor na Universidade de Budapeste, dedicando muita atenção às questões ligadas à educação. Tem trabalhado em projectos europeus (ao nível da Comissão Europeia) e noutro tipo de projectos internacionais que o têm levado a muitos países mediterrânicos (por exemplo, a França e a Tunísia).
Um húngaro que fala num colóquio sobre o Mediterrâneo pode parecer uma coisa estranha. Há alguma ligação da Hungria com esta região?
A Hungria não pertence ao Mediterrâneo, mas eu estou pessoalmente envolvido com esta região. Passei vários anos na Tunísia, como professor de matemática, e trabalhei muito em França. Por isso tenho projectos em que estou a participar, em diversas equipas; interesso-me muito pelo que se passa nesta região. O director-geral deste projecto, François Silva, é um velho amigo meu e pediu-me para olhar para este projecto de fora. Outra razão da minha presença é que estamos a tentar fazer um projecto similar a este, que será para as regiões do leste e do centro da Europa. O senhor é professor universitário em Budapeste, de Matemática. Mesmo assim, peço-lhe que me descreva como é feita em geral a gestão das pessoas na Hungria?
Não é fácil fazer essa descrição. A Hungria mudou o regime há 16 anos, saiu de uma ditadura comunista para a democracia. Penso que escolheu um caminho doloroso de privatizações da propriedade pública e das empresas. Não houve obstáculos aos investidores estrangeiros que quiseram ir para Hungria, nem houve obrigação de reinvestir uma parte dos lucros. Eles podiam retirar todos os lucros que estavam a ter, lucros rápidos, e depois era só ir embora. Isto ainda acontece e vai conduzir-nos a algo doloroso, com graves consequências. As grandes empresas, multinacionais, não têm interesse em ter recursos humanos motivados, em desenvolver estratégias coerentes. A única preocupação que têm é recruta, mas sem desenvolver as pessoas, e isso é uma caricatura da gestão de recursos humanos, é uma aposta em escravos de baixo preço, nada mais.
Estar na União Europeia não ajuda a Hungria em nada?
Enfim, as grandes empresas já foram vendidas, não há quase nada na mão do governo.
Não venderam nada a húngaros?
Nalguns casos sim, vendeu-se a quem pôde investir, mas a maioria dos que podiam investir eram estrangeiros. Ficou pouca coisa nas mãos de húngaros. Há uma franja da população que começa a ter espírito empreendedor, mas a maior parte dos empreendedores da Hungria de hoje são de fora.
Qual é para si o maior problema do espaço do Mediterrâneo, um espaço que conhece bem?
Os países do Magreb saíram de uma colonização. Isso significa um gap económico e cultural entre os dois lados do Mar Mediterrâneo, algo que continua a ser importante e que os europeus supostamente devem ajudar a eliminar; e por isso eu gosto tanto do «Projecto Ágora RH». Mas há outros projectos que apareceram na sequência da Cimeira de Barcelona.
No Mediterrâneo, vê mais um apelo à partilha ou uma mania irritante de erguer muros?
Eu acho que graças a projectos como este, envolvendo países europeus e países do Magreb, a Comissão Europeia poderá encontrar mais uma área de cooperação. Espero que o esforço prossiga e que se acabe com as fronteiras.
Pensa que pessoas de empresas e universidades estão mais avançados do que os políticos nesta matéria?
Espero que os políticos estejam tão preparados nesta área como os professores universitários e os empreendedores. Creio que a sensibilidade dos políticos europeus está a aumentar.
Por falar em políticos, na Hungria houve problemas por causa de se ter descoberto que o primeiro-ministro era um mentiroso?
É difícil falar dos políticos húngaros, pois a situação do país é crítica. Penso que na Hungria temos uma profunda crise moral, económica e política. Deve-se a muito factores, mas o principal foi as privatizações, que já referi. Elas não foram feitas para os húngaros e as consequências disso são más. O actual governo teve de tomar duras medidas e a população não estava preparada para a queda do nível de vida que tinha. Os preços crescerão muito depressa, a indústria será afectada, a maioria da população também, a classe média então será afectada duramente. Vamos ter grandes problemas.
Se a Hungria não estivesse na União Europeia o que é que poderia acontecer?
Não teria sido possível ver os problemas claramente agora. A Comissão Europeia tem critérios que é preciso cumprir, isto se a Hungria se quiser juntar ao sistema monetário europeu. E todas as estatísticas económicas mostram que a Hungria está muito longe de cumprir os critérios.
Portanto, está pessimista em relação ao futuro…
Estou moderadamente optimista. Acho que podemos confiar nas pessoas, que trabalharão. A Hungria passou por crises profundas crises na sua História. Pense no que aconteceu em 1956; depois da invasão, o país foi devastado pelo exército soviético, não sei quantas pessoas morreram, 200.000 foram forçadas a ir para fora. Eu espero que depois de dois ou três anos as pessoas sejam capazes de sair desta profunda crise. Por isso estou moderadamente optimista. Claro que ao ver neste projecto um país como a Eslovénia sinto alguma inveja. As privatizações deles funcionaram, e a entrada na União Europeia foi um êxito.

segunda-feira, 8 de outubro de 2007

O professor de José Mourinho

Esta excelente entrevista não foi feita por mim. Apenas a propus e acompanhei. É da autoria da jornalista Ana Leonor Martins e foi publicada na revista «Pessoal», que dirijo, em finais de 2004 (algumas passagens têm de ser contextualizadas, por exemplo a referência aos «galácticos» do Real Madrid ou a José Peseiro treinador do Sporting). É uma entrevista com Manuel Sérgio na qual se fala sobretudo do seu antigo aluno José Mourinho e das suas notáveis competências.

Manuel Sérgio
O professor de José Mourinho

Se há meia dúzia de anos se dissesse que um português, treinador de futebol, ia ser o oitavo gestor mais bem pago da Europa, poucos acreditariam. E que com uma equipa sem grandes nomes do futebol internacional seria possível ser campeão europeu, a mesma coisa. Mas a verdade é que isso aconteceu. Manuel Sérgio, fundador da ciência da Motricidade Humana e professor de José Mourinho na faculdade, explica o que faz do seu antigo pupilo «um homem capaz de liderar uma empresa, um partido político ou até um exército».

Para além de ter sido professor de José Mourinho, Manuel Sérgio é também seu amigo pessoal, sendo inclusivamente quem assina o prefácio do primeiro livro do actual treinador do Chelsea, de Inglaterra, um homem que considera um «líder nato». Mas a conversa não se ficou por José Mourinho, nem pelo desporto. Foi também para o mundo das empresas, para a política, para as questões da educação, entre outros temas. Descubra, por exemplo, por que é que em 2004 ainda temos «dirigentes desportivos incompetentes», «administradores ignorantes» e «políticos com discursos que cheiram a bolas de naftalina».
O desporto foi durante muito tempo encarado como algo menor. Como tem visto a sua evolução?
Durante muito tempo, o desporto foi considerado como mera recriação. Veio para Portugal trazido pelos estudantes das boas famílias que iam para Inglaterra estudar. Foram eles os primeiros intérpretes do desporto em Portugal, os filhos da burguesia e um ou outro da nobreza. O desporto nasce do ócio e no século XIX a Inglaterra era um país desenvolvido. Quem trabalhava de sol a sol não tinha tempo para fazer desporto.
Mas hoje em dia está longe de ser algo meramente recreativo, nomeadamente o futebol, que é um negócio que envolve milhões...
O desporto é indiscutivelmente um dos aspectos do capitalismo vigente. Como tal, a sua alma é a mercadoria.
Mercadoria?
Sim, os jogadores. Eles são vendidos para o clube fazer dinheiro e a formação é para ir buscar mais jogadores, que mais tarde também serão vendidos. O desporto tem que dar lucro e rege-se por aquilo que é vigente numa qualquer empresa. Os grandes clubes são empresas que proporcionam espectáculo, mas que têm que dar lucro. Exige-se produtividade e rentabilidade aos jogadores e também aos dirigentes.
Esses conceitos, tal como os de liderança, performance ou excelência, entre outros, aparecem mais na linguagem do meio empresarial. Mas a verdade é que, a este nível, o desporto tem sido muitas vezes apontado como exemplo a seguir pelas empresas...
É verdade. Veja-se o caso do José Mourinho, que foi meu aluno. Ele é um exemplo para muitos administradores de empresas que não têm a capacidade que ele tem de liderar um grupo. O Mourinho é um líder nato, um génio. Ele está para o treino como o Pelé e o Maradona estão para a prática. O Mourinho tem uma perspicácia invulgar a analisar as situações. É um homem que consegue ver aquilo que os outros não vêem. Ele olha e vê o futebol que se desenvolve no campo e nunca se engana nas substituições que faz. Depois, mesmo sendo um rapaz novo, consegue impor-se aos jogadores. Eles acreditam nele e fazem o que ele diz. E isso torna-o invulgar. Diria mesmo excepcional.
Mas, curiosamente, enquanto jogador nunca se distinguiu...
Nem precisava. Não é preciso ser-se um bom jogador para se ser um bom treinador. As qualidades exigidas são outras. O treinador tem que ser um líder. Um jogador pode ser o melhor tecnicamente, mas se não tiver capacidade de liderança nunca será um bom treinador.
E como aluno, José Mourinho já se distinguia dos outros?
Na cadeira que eu leccionava, Filosofia das Actividades Corporais, no Instituto Superior de Educação Física, da Universidade Técnica de Lisboa, teve quinze. Não é uma má nota, mas havia melhores. O que sempre o distinguiu foi o facto de ser uma pessoa que pensava e que levantava perguntas. Era muito extrovertido. Mas o José Mourinho tem uma outra faceta, que é pena que a maioria não conheça: ele é muito amigo do seu amigo.
Há quem diga que ele tem uma postura pouco humilde e até arrogante...
Mas no entanto é um homem com um grande sentido de família. O mundo da alta competição é outra coisa. Tudo o que prevê, ele acerta. E ganha tudo. Se diz que vai ganhar o campeonato é porque vai. Há-de errar noutras coisas, mas no trabalho não. Ele é um exemplo para muita gente, porque tem qualidades naturais de líder.
Não se pode aprender a ser um bom líder?
Um indivíduo pode saber muito de liderança, mas isso só não basta. Se eu não tiver coragem e se não me souber impor quando é preciso nunca serei um bom líder. Há coisas que não vêm nos livros, que estão em cada um de nós. O grande líder é o grande homem. É preciso estudo e qualidades humanas. Tudo em nós é inato e adquirido simultaneamente. Se eu não tiver determinadas qualidades, por mais livros que leia, nunca serei um líder.
Que qualidades são essas?
No caso do Mourinho, é o indivíduo em si. Ele é extremamente inquieto, quer sempre saber mais. É um homem de estudo, que se actualiza permanentemente. Tem qualidades excepcionais, que são dele e que não se aprendem. Simultaneamente, é um homem de coragem. A primeira coisa que ele faz quando chega a um clube é impor-se aos chamados «donos do balneário» e demonstrar que ali quem manda é ele. E se não lhe obedecerem são excluídos. Desde garoto que é um líder.
Acha que José Mourinho conseguia ter sucesso num clube como o Real Madrid?
Por acaso, já falámos sobre isso. Deve ter sido há uns dois anos, mas lembro-me perfeitamente de ele ter dito que o Real Madrid era o único clube do mundo para onde não gostaria de ir porque de certeza que se incompatibilizaria com quase todos os jogadores.
Mas se ele é tão bom líder como diz, não deveria conseguir impor-se em qualquer balneário?
Ele é um líder excepcional. O problema é que os outros também se consideram os melhores do mundo. Como têm muitas exigências publicitárias, andam sempre de um lado para o outro e não treinam como deviam. Estou convencido de que a má carreira do Real Madrid tem a ver com isso. Aquele balneário devora qualquer treinador, porque os jogadores não treinam, e se não treinam não há entrosamento entre a equipa.
Ou seja, mesmo uma equipa composta por indivíduos excepcionais, que são os melhores na sua área, pode não ter sucesso...
Claro. O treinador do Real Madrid teria que deixar quatro ou cinco estrelas no banco. Se calhar não tem é força para isso.
Mas José Mourinho fez isso no Porto, nomeadamente com o Vítor Baía...
Absolutamente. E se calhar faria o mesmo no Real Madrid. Para ele, o melhor jogador do mundo não lhe serve se não tiver força psicológica. Ele consegue descobrir qualidades nos jogadores, mesmo que não sejam os melhores tecnicamente. Numa empresa, o trabalhador tem que ser honesto e cumprir o seu dever. Não é isso que se está a passar no Real Madrid.
E acha que Mourinho não era capaz de impor disciplina no balneário dos «galácticos»?
Ele não me disse que não era capaz, disse é que tinha que se incompatibilizar com quatro ou cinco jogadores. Repito, o Mourinho tem qualidades de liderança invulgares, sem as quais não se pode ser um bom treinador de futebol, nem um bom dirigente ou um bom administrador. Primeiro, é preciso estudar e saber o que na prática se faz no ramo em que se trabalha. Em segundo lugar, tem que se ser corajoso. São as qualidades naturais de que falava há pouco.
E essas qualidades existem nos treinadores portugueses?
Há uma nova geração de treinadores, licenciados em Desporto, que trouxe o estudo para o futebol. O Mariano Barreto, actualmente a treinar o Marítimo, e o José Peseiro, que também foram meus alunos, são mais dois exemplos de estudiosos deste desporto.
Mas o treinador do Sporting, por exemplo, não conseguiu bons resultados nas primeiras jornadas do campeonato e nas conferências de imprensa aparenta sempre uma grande fragilidade...
E teve melhor nota do que o Mourinho, o que só prova que isso não quer dizer nada. É preciso ver que eu leccionava Filosofia do Desporto. O Peseiro não tem a coragem e a perspicácia inata do Mourinho para ver os problemas.
Acha que com Mourinho como treinador o Sporting teria outro tipo de resultados no início do campeonato?
Acho que no mínimo ele já teria criado uma revolução qualquer no Sporting. Ou então já lá não estava, porque de certeza absoluta que não aguentava uma coisa daquelas.
O que quer dizer com «uma coisa daquelas»?
Em primeiro lugar, era ele a decidir que jogadores contratar e não a direcção, como me parece que aconteceu. Não se pode construir uma equipa com critérios meramente económicos. E isso é o que acontece quando os dirigentes não percebem nada de futebol.
Na sua opinião, José Mourinho daria um bom dirigente de uma empresa?
De certeza que sim. E até um bom general de um exército.
E um líder de um partido político?
Também.
Então, um verdadeiro líder é capaz de liderar em diferentes contextos...
É evidente que depois é preciso estudo. Em 2004, quem não estuda não sabe. O Mourinho tem as qualidades inatas para liderar em qualquer área. Mas depois precisaria de se preparar. Volto a dizer, é preciso juntar o inato ao adquirido.
Mas o nível de pressão e de exigência muda consoante o contexto. Treinar em Inglaterra, por exemplo, não é o mesmo que treinar em Portugal...
O José Mourinho terá sucesso em qualquer lugar onde se lhe dê funções de liderar o treino. Claro que, e citando Ortega Y Gasset, «eu sou eu e a minha circunstância». Ele pode ter uma circunstância de tal maneira adversa que não o deixem trabalhar, mas caso contrário evidentemente que triunfa.
O que é que mais influencia o rendimento das equipas?
Ter os ordenados em dia. Isso passa-se com qualquer empregado. Normalmente, uma equipa vencedora tem por trás uma organização administrativo-financeira que permite que as qualidades dos jogadores apareçam e que a equipa se desenvolva sem problemas de outra ordem. E isso pressupõe a existência de dirigentes de qualidade.
E existem dirigentes de qualidade no futebol português?
São raros. Ao ouvi-los falar, percebe-se perfeitamente que não são competentes. E é por isso que depois desenvolvem uma competição desmesurada e passam a vida a insultar-se uns aos outros.
Por que é que isso acontece em Portugal?
Possivelmente porque somos um país onde a educação ainda está um pouco atrasada. Temos muitos dirigentes de clubes que são pessoas sem cultura para liderar seja o que for. E no futebol, como em qualquer área, a cultura é a mola do desenvolvimento.
Também falta essa cultura aos dirigentes das empresas?
Em alguns casos, sim. Acho que há dirigentes que se esquecem de que têm que trabalhar todos os dias e que o seu trabalho não se resume a assinar papéis, que têm que se actualizar. Os dirigentes deviam levar uma vida de estudo, tal e qual como um professor universitário. Não existe eficiência sem informação.
As universidades não terão alguma culpa nessa falta de espírito de investigação?
Eu sou professor universitário há muitos anos, já dei aulas em universidades estrangeiras, e posso-lhe dizer que na faculdade nós dependemos muito de nós próprios. Os alunos têm o dever de estar actualizados. Independentemente dos defeitos do sistema de ensino, é preciso ser-se uma pessoa diligente, atenta e estudiosa. E é isso que eu acho que alguns dos nossos administradores e gestores não são.
O desporto tem alguma coisa a ensinar ao mundo das empresas, nomeadamente a esses administradores e gestores?
O desporto copiou mais das empresas do que as empresas do desporto. Vivemos numa sociedade altamente competitiva e o desporto hoje reproduz e multiplica as taras dessa alta competição.
Mas em aspectos como a motivação e a rentabilidade das equipas o desporto de alta competição se calhar obtém melhores resultados…
Isso depende da direcção e do treinador. Do mesmo modo, uma fábrica ou uma empresa que tenha uma administração competente pode obter melhores resultados do que um clube de futebol. Mas também é verdade que se exige mais no desporto e que nos clubes com elevados níveis de exigência se paga muitíssimo mais do que nas empresas. O Figo ganha para aí uns 200 mil contos por mês. Depois tem é a vida muito mais controlada. Na ciência da lógica eu aprendi uma frase do Hegel que considero genial. «A verdade é o todo».
Considera que é o nível de remuneração que faz a diferença?
Não há nenhuma empresa que pague aos seus trabalhadores o que o Real Madrid paga aos seus jogadores. E apesar de existirem outros critérios de motivação, duvido que haja algum mais importante do que este.
Sendo assim, qual destes dois mundos – desporto e empresas – pode ensinar mais ao outro?
No nosso tempo, esse espírito de quem pode ensinar mais ou menos acabou. Porque todo o real é complexo, há um trabalho de interdisciplinaridade que tem que se fazer. Hoje ninguém se pode considerar mais do que o outro porque é sempre possível aprender-se mais. É importante não esquecer uma célebre frase de Abel Salazar, que dizia que «o médico que só sabe Medicina, nem Medicina sabe». Ou seja, para se ser um bom médico é preciso ter-se uma cultura que permita o exercício da Medicina. Isso vai para além da especialidade. Da mesma maneira, para se ser um bom homem do desporto tem que se aprender com as empresas, e para se ser um bom administrador tem que se aprender com o desporto. Em todos os momentos existe necessidade de um saber interdisciplinar, de diálogo. A cultura é isto. É ter o espírito do tempo. Para se desenvolverem, as pessoas têm de se relacionar.
Quais as principais mais-valias de cada lado?
As qualidades do desporto e das empresas são as mesmas. Até porque dependem fundamentalmente de pessoas e as qualidades pessoais não vêm nos livros. Podem é ser aprimoradas. Ninguém diz ao Mourinho, nem está escrito em lado nenhum, em que altura é que tem que substituir um jogador, nem quando é que tem que ser mais rígido. Ao dar-se uma ordem, é preciso que os outros a reconheçam enquanto tal.
Por exemplo, nos Estados Unidos os treinadores actuam como coach de empresários. Isso não quer dizer alguma coisa?
Isso acontece porque o desporto permite que as qualidades de liderança sejam mais evidentes. O desporto tem uma exposição mediática extraordinária. E os donos das empresas, nos Estados Unidos, depressa vêem que um determinado indivíduo tem características que lhes podem ser úteis. Isso não aconteceria se o indivíduo não estivesse tão exposto. Mas é verdade que homens com a capacidade de liderança que o desporto exige têm muito a ensinar aos administradores das empresas, desde que se actualizem permanentemente. O meio do desporto exige que o treinador tenha essas qualidades.
Até porque os resultados são do mais objectivo possível…
Pois... Ao fim de 90 minutos o resultado está à vista. É a tal exposição mediática. Mas é preciso ter noção de que quer um clube, quer uma empresa só progridem se, com humildade, estiverem atentos ao desenvolvimento dos outros clubes ou da outras empresas e perceberem o que se passa à sua volta. Um dos males do nosso tempo é que há uma grande incultura. Estamos a caminhar para a sociedade do conhecimento e, em 2004, ainda temos administradores ignorantes, tanto ao nível das empresas como nos clubes.
São sobretudo esses os líderes que existem nas empresas portuguesas?
Há bons e maus. É como em todo o lado. Não conheço bem a nossa realidade empresarial para fazer esse julgamento. Mas acredito que hoje os grandes líderes já estão capacitados de que estão na sociedade do conhecimento e que a rentabilidade será tanto maior quanto maior for a informação de que dispõem.
Um meio que conhecerá melhor é o da política, uma vez que já foi presidente do Partido de Solidariedade Nacional e deputado na Assembleia da República. Que tipos de líderes temos aí?
Acho que existe uma classe dominante na política que está perfeitamente ultrapassada e que diria ser bem de uma sociedade de há 40 anos. Há uma repetição constante dos valores republicanos, socialistas e laicos. Em 2004, exige-se mais. É preciso ir mais além.
Se calhar falta a actualização de que falava há pouco...
Os nossos políticos estão completamente a leste. Se calhar, precisavam de aprender com as empresas. Já se sabe o tipo de discurso de determinadas pessoas, mesmo antes de abrirem a boca. Como dizia Heraclito, «ninguém se banha duas vezes no mesmo rio», mas os tipos da política estão sempre com a mesma conversa. Só que o mundo avança todos os dias…
Estamos a assistir ao aparecimento de uma nova geração de políticos. É de esperar outro tipo de discurso?
Eu espero muito do José Sócrates.
O que é que o distingue dos outros?
Acho que é um indivíduo que sabe que não sabe. É um homem ansioso de saber e atento ao seu tempo, enquanto que os outros me pareciam pessoas de outra época, com um discurso, com perdão da expressão, que cheira a bolas de naftalina. Não é que não seja útil, mas é incompleto. Toda a gente sabe que é preciso liberdade, igualdade e fraternidade.
Está a dizer que são pouco objectivos...
Claro. É preciso ir para além desta retórica oca sem aplicação prática ao tempo em que vivemos. Mas isto não quer dizer que não existam bons políticos. Há é uma classe dominante que aparece a toda a hora e que não traz nada de novo. A política portuguesa é dominada pelas mesmas caras há anos. Em Cuba é Fidel Castro, mas aqui também são sempre as mesmas pessoas que aparecem.
Não é uma comparação um bocado extrema?
É dura. E eu sei perfeitamente que todos eles são adversários do Fidel Castro. Claro que isso não está em causa. O que quero dizer com isto é que estamos sempre a ouvir a mesma conversa. O mundo avança, mas continua a haver um discurso meramente retórico, que só em 1910 é que era formidável. A teoria tem que partir da prática. Há políticos que nunca trabalharam fora desta área. Isso é trágico, porque assim não sabem o que é a vida. E como somos um povo com défice de educação, que não tem espírito crítico, não se faz uma crítica daquilo que se ouve. As pessoas são monopolizadas pelos discursos agradáveis. É como se estivessem numa igreja a ouvir um padre.
Para terminar, enquanto professor, o que é que sempre se preocupou em transmitir aos seus alunos?
O desejo de querer sempre saber mais. Aquilo que mais me agrada, embora já tenha 71 anos, é estar a falar com alguém que eu sinto que é de hoje. Por isso, actualização permanente foi sempre o que mais exigi dos meus alunos e é o que mais exijo do desporto. Não é o saber muito, é o saber bem na área de cada um. É preciso ter ânsia de actualização e consciência de que não se sabe tudo. Só consegue desenvolver o conhecimento quem for humilde e quem conseguir reconhecer os seus limites. Há muita gente com a minha idade que parou. Mas eu sou um saudoso do futuro e não do passado.
***
Manuel Sérgio Vieira e Cunha nasceu em Lisboa, no dia 20 de Abril de 1933. Licenciado em Filosofia, pela Universidade Clássica de Lisboa, e doutor e professor agregado em Motricidade Humana, pela Universidade Técnica de Lisboa, aos 22 anos tinha apenas a instrução primária. É professor catedrático reformado da Faculdade de Motricidade Humana (FMH) e presidente do Instituto de Estudos Interculturais e Transdisciplinares do Instituto Piaget. É sócio fundador da Sociedade Internacional e da Sociedade Portuguesa de Motricidade Humana, foi quem criou a ciência da Motricidade Humana. Tem participado em inúmeros congressos, conferências e palestras em Portugal e no estrangeiro, nomeadamente no Brasil, onde leccionou nos cursos de graduação da Faculdade de Educação Física e nos doutoramentos da Faculdade de Educação, da Universidade Estadual de Campinas (1987 e 1988). Foi também no Brasil que recebeu a medalha de mérito desportivo, outorgada pelo presidente José Sarney. Para além da vida universitária, foi director do primeiro curso de treinadores de futebol de salão (1985), presidente da Assembleia Geral e vice-presidente da Direcção do Clube de Futebol «Os Belenenses», presidente da Assembleia Geral da Associação de Basquetebol de Lisboa e presidente do Conselho Fiscal da Associação de Andebol de Lisboa. Foi ainda o primeiro presidente do Partido de Solidariedade Nacional (PSN), tendo sido deputado na Assembleia da República durante a VI Legislatura.

sexta-feira, 5 de outubro de 2007

Edição de Outubro

Número 62 da revista «Pessoal» – edição de Outubro. Na capa, alguns dos actores da Companhia Teatral do Chiado juntamente com Luís Macedo, que na companhia assume, entre outros, o papel de gestor de recursos humanos. Deixo a seguir o meu editorial. (clicar na imagem para aumentar)

O homem que olha para lá do horizonte
Uma vez, já vai para uns cinco anos, aconteceu em Lisboa um debate que tinha como título algo parecido como «os novos desafios dos recursos humanos»; não sei se era exactamente assim, mas andava lá perto. Um dos participantes foi o meu amigo Artur Fernandes, que tem vindo a colaborar na «Pessoal» desde o início desta nova série, começada no Verão de 2002, quando o senhor Scolari andava pelas terras do oriente a tentar ser campeão do mundo em futebol sem que se imaginasse que cinco anos depois haveria de ao comando da selecção portuguesa dar um soco num jogador de uma selecção adversária e ainda por cima no estádio do meu clube. Bom, naquele debate, lembro-me de que o Artur, que na altura era director de recursos humanos de um banco, a certa altura falou de a mãe dele, muitos anos antes, lhe ter dito várias vezes: «meu filho, deves ir trabalhar para um banco»; a justificação era a seguinte – «é lá que está o dinheiro».
Nesta edição procurámos conhecer a banca. No habitual ‘dossier’. Não na perspectiva de sabermos se «é lá que está o dinheiro», porque isso creio que toda a gente sabe, mas na perspectiva de percebermos o que se faz na banca no nosso país em termos de gestão de recursos humanos. No ‘dossier’ pode ler-se uma longa entrevista de um dos responsáveis pela área no maior banco português (José Manuel Dias, da Caixa Geral de Depósitos) e outras três mais curtas e dois depoimentos (igualmente de responsáveis de recursos humanos de instituições bancárias). A ideia com que se fica – pelo menos a ideia com que eu fiquei – é a de que se trata de um sector onde deve valer a pena trabalhar (se bem que eu tenha sempre, como dizer?, um pé atrás, como já aqui contei, porque a seguir à faculdade trabalhei num banco e acabei por me despedir depois de ter sido atropelado à porta e de nem quererem saber se eu tinha morrido ou não; provavelmente não me consideravam – longe disso – um talento). Mas deste ‘dossier’ fica mesmo a ideia de que vale a pena lá trabalhar. E talvez essa seja a explicação para a ideia de lá é que estar o dinheiro, fruto do sucesso da banca em geral, que certamente assenta na gestão das suas pessoas.
Fora disso, outros temas da edição… O teatro, a gestão de recursos humanos no teatro (que puxámos para a capa), com uma entrevista a quem tem essa função na Companhia Teatral do Chiado; Scolari e Mourinho, líderes tão diferentes mas ao mesmo tempo tão iguais; a formação de executivos; os recursos humanos da construção civil; a indústria de relocation; uma interessantíssima «estória» de recursos humanos, de um jovem capaz de seguir os seus sonhos e de por eles correr todos os riscos; o perfil de uma directora de recursos humanos que tem em mente uma carreira internacional; a aversão ao mérito o nosso país. E mais coisas… Inclusive um texto final que me impressionou: os trabalhos do Américo, um verdadeiro provedor do mundo rural, quadro de um banco como os entrevistados do ‘dossier’, um homem que no espaço tantas vezes escondido e esquecido do interior conseguiu à custa de uma actividade discreta, quase invisível, transformar a vida de muitas pessoas, para melhor, bem melhor – é ele que na pequena foto [o editorial, na revista, tem uma pequena foto no centro do texto] central olha para lá do horizonte, no alto de uma serra, quem sabe a pensar em novos projectos capazes de levarem mais pessoas a ser felizes.