quinta-feira, 29 de maio de 2008

Edição de Junho

Número 70 da revista «Pessoal» – edição de Junho de 2008. Na capa, Tomaz Morais, o seleccionador nacional de rugby, tão requisitado para falar nas empresas sobre gestão de equipas e liderança. Deixo aqui o meu editorial…

Convites à leitura
Planos de pensões, saúde e segurança no trabalho, formação, responsabilidade social, coaching, trabalho temporário… São alguns dos temas desta edição, temas que abordamos com frequência, por terem a ver com a gestão das pessoas nas organizações, a área de que trata a «Pessoal». Uma edição em que duas das peças são feitas com pessoas ligadas às empresas e também ao desporto. De formas diferentes. Tomaz Morais, o mediático seleccionador nacional de rugby, tem-se destacado também com intervenções em organizações empresariais, nomeadamente sobre trabalho em equipa e liderança; dele apresentamos um perfil e com ele fazemos a capa. Já Luís Moreira, quadro de uma multinacional de trabalho temporário, conjuga a sua actividade profissional com a de treinador de hóquei em patins no Sporting; para esta edição, concedeu-nos uma longa entrevista. São duas peças a seguir atentamente, pois dizem muito do que é a gestão de equipas e a liderança, seja no desporto, seja nas empresas.
De qualquer forma, apesar destes destaques, quero puxar para o espaço de abertura da edição dois outros textos, ou melhor, dois bocadinhos de textos.
Começo pela crónica da Paula, que está connosco deste o início, em 2002. Nesta edição encontra uma pessoa, junto ao Douro, assim…
Aproximei-me sorrateiramente e durante alguns instantes, ao observar o seu ar sereno e atento às páginas do livro, hesitei entre cumprimentá-lo ou simplesmente observá-lo e continuar o meu caminho.
A minha curiosidade falou mais alto e quando me dei conta já estava junto dele a perguntar:
– O que faz um homem tão ocupado a esta hora neste sitio tão bonito?
– Estava à sua espera!
Sorriu quando viu o meu franzir de sobrolho e imediatamente continuou:
– Longe de mim encontrá-la, mas neste momento é a pessoa mais importante para mim!
É, realmente ainda existem pessoas capazes de nos surpreenderem.
Quando os encontros, as pessoas, os acontecimentos deixam uma marca em nós, é mais difícil traduzir o sentir dessa marca por palavras, pois apercebemo-nos de que fica sempre muito por dizer, talvez o mais importante. No entanto, há desafios que recuso não agarrar, nem que seja para partilhar num parágrafo.
O segundo bocadinho de texto foi escrito pelo Rodolfo, que também tem uma presença habitual na «Pessoal». É uma reflexão sobre as empresas, uma reflexão que começa de forma curiosa, também com um encontro, assim…
Numa estação de comboios do Portugal «profundo», conheci ocasionalmente um indivíduo curioso. Animado, determinado, com certa ingenuidade até, afirmava com ar saudosista (e aparentemente impressionado com ele mesmo) ter subido a elevadas escarpas, com enorme audácia que hoje lhe seria impossível. Na sua juventude atingiu lugares impensáveis, abismos a pique sobre o rio. Não se chegava lá sem grande dose de esforço e de coragem.
Depois de atingir as zonas do topo das penedias, à beira do precipício o seu interesse repartia-se por vários aspectos. Um deles era o exercício de lançar grandes pedregulhos pelas ravinas abaixo, na direcção das rochas onde estavam pousados abutres, os quais levantavam voo assustados. A súbita – apesar de infrutífera – agitação das grandes aves ficou-lhe retida na mente.
Apesar de todo esse trabalho, confessou que nunca tinha conseguido matar nenhum abutre.
Estes dois bocadinhos dos textos são convites à leitura, cada um à sua maneira. Desta diversidade, de tantas outras diversidades, se faz a «Pessoal» a cada mês. Boas leituras, é o que como sempre espero que venha a proporcionar.

terça-feira, 27 de maio de 2008

Mediterrâneo RH (14)

Último post sobre o projecto «Ágora RH» (explicação do projecto no post 1 sobre este tema); a entrevista com o seu principal responsável.

François Silva
Uma experiência para continuar

O coordenador do «Projecto Ágora RH» acredita, ao fim de três anos de trabalho conjunto, que a experiência vai continuar e chegar a outros países do espaço do Mediterrâneo. Entrevista com um homem que considera que «chegou o momento de ao nível da sociedade civil, das associações, haver uma grande participação no desenvolvimento dos países».

Chama-se François Silva e é professor universitário em Marselha o coordenador do «Projecto Ágora RH». Para começar, sabe muito bem o uso que por cá é dado ao apelido Silva.

O senhor é francês, vi no seu currículo que nasceu em Bordéus… Sabe que o seu apelido é o mais comum em Portugal?
Sim, e também existe em África, e noutras zonas do mundo. Tem a ver com a diáspora portuguesa. O apelido é de origem judaica… Os judeus partiram para todo o lado.
É professor na Euromed, em Marselha. Como é que aparece ligado ao «Projecto Ágora RH»?
Sou professor, de cadeiras que têm a ver com a função Recursos Humanos. E estou ligado à área de investigação da escola; é a esse título que tenho a meu cargo a coordenação do projecto, que propus à escola. O projecto fez com que a competência da Euromed Ecole de Management tenha sido efectivamente reconhecida em termos de recursos humanos ao nível do Mediterrâneo.
Quando começou o projecto?
Há três anos… Na verdade, há quatro, quando foi criada a Federação Mediterrânica de Recursos Humanos, a FMRH, em 2002, com as quatro associações latinas (de Portugal, França, Espanha e Itália) e três magrebinas (de Marrocos, Argélia e Tunísia); trata-se de uma federação que não tem recursos específicos e que teve a sua primeira reunião oficial em Marraquexe, em Janeiro de 2003. Há uma história de partilha entre estas associações, uma grande proximidade. O que aconteceu é que me surgiu como que uma intuição, a de que poderíamos fazer um projecto que permitisse aprofundar o trabalho da FMRH, um projecto que poderia ser apresentado na União Europeia, para ser financiado. Dessa forma poderíamos aprofundar aquilo que verdadeiramente somos, primeiro ao nível das competências no espaço euromediterrânico, porque ao nível dos recursos humanos há convergência, há práticas comuns… Portanto, apresentei o projecto, com temas a serem abordados, sobre os quais deveria haver reflexões. Era preciso estar de acordo sobre uma grelha de leitura comum; cada associação nacional ia estudar a função recursos humanos com um determinado número de critérios, e íamos partilhar os resultados de todos esses trabalhos. Isto num projecto para três anos. E foi o que aconteceu.
Não há uma tradição marcada ao nível dos recursos humanos de se trabalhar em projectos comuns a diversos países, com associações nacionais ligadas à gestão das pessoas nas organizações. Este acaba por ser de certa forma é pioneiro?
Bom, nós começámos, e isso é que é importante.
Mas por que razão é que aconteceu apenas nestes últimos três anos, com o «Projecto Ágora RH»?
Penso que chegou o momento de ao nível da sociedade civil, das associações, haver uma grande participação no desenvolvimento dos países. Por exemplo, quando se vai à Argélia, a Marrocos, vê-se que as respectivas associações nacionais de recursos humanos estão a ganhar importância. Em termos da função Recursos Humanos, neste projecto as várias associações envolvidas têm vindo a reflectir em conjunto sobre boas práticas, e isso também vai mexer com a sociedade. Porque há questões que se colocam e que são muito importantes… No caso das pequenas empresas, em que não há departamento de recursos humanos, as associações devem representar a função, têm o papel de dizer como é que actualmente os homens e as mulheres que trabalham nos países do espaço euromediterrânico devem ser tratados, como devem ser geridos, como devem ser motivados… A motivação é o coração da dinâmica e da produtividade das empresas. As empresas que não se preocupam em motivar as suas pessoas são as que estão numa situação de claro falhanço. Ora as associações envolvidas neste projecto representam a função Recursos Humanos, mesmo quando ela não existe nas empresas. No espaço euromediterrânico há muitas empresas pequenas, de duas ou três pessoas, nas quais não existe função Recursos Humanos. E é preciso mostrar claramente que essa função é importante, que tem um papel decisivo em qualquer organização.
O Mediterrâneo é um espaço de confluência de vários povos…
Sim, um espaço de partilha.
Mas ao mesmo tempo representa uma fronteira?
Sim.
Como vê esta contradição?
O Mediterrâneo, historicamente, sempre foi um grande espaço de trocas, de partilha, como disse. Mas foi também um espaço de confronto, regularmente, um espaço com algumas tensões. De qualquer maneira, as principais guerras não tiveram lugar no Mediterrâneo, tiveram lugar na Europa, entre a França e a Alemanha, ou a Suécia e a Polónia, ou entre a Inglaterra e a França. Hoje, sim, é verdade, é preciso acabar com a ideia de fronteira. Derrubou-se o Muro de Berlim, acabou a cortina de ferro entre a Europa do oeste e do leste, mas há um muro no Mar Mediterrâneo. Eu acho que esse muro está condenado, acho que só pode mesmo acabar. Falo sobretudo do Magreb com a França, com Espanha, com Portugal. Devemos trabalhar, reflectir, para permitir a mundialização das empresas do Magreb, para que a sociedade magrebina evolua para a plena democracia, para a plena liberdade, para o bem-estar, para uma sustentabilidade económica que satisfaça a generalidade das populações. E neste aspecto a função Recursos Humanos é essencial para a democracia, em qualquer país. A folha de salários é o coração da função Recursos Humanos… Os impostos, as contribuições para a segurança social, está lá tudo. E isso é algo fundamental para que um país funcione, para que haja redistribuição de riqueza, para que não se tenha trabalho clandestino, para que se possa irradiar a miséria, para que não se deixe a porta aberta a todas as arbitrariedades.
Essa é uma ideia que não está muito presente no cidadão comum. Na rua, por exemplo, se se perguntar pelas áreas mais importantes nas empresas provavelmente as primeiras a serem citadas são a financeira, a de marketing
Admito que sim… Há aquela visão de considerar importante quem mexe no dinheiro, quem comunica. Por exemplo, na área financeira a prioridade é ter alguém que aponta tudo, que nalgumas horas consegue fazer um determinado trabalho especializado e pronto, por ter qualificações e um diploma. Mas a nível da função Recursos Humanos creio que se passa algo bem diferente. A função tornou-se complexa, trabalha com muitos métodos, com modelos, e exige que a cada momento se contextualize cada coisa – por oposição ao que acontece com o trabalho de um contabilista, por exemplo. É preciso adaptar os métodos a cada empresa, é preciso a inteligência de compreender o que importa que seja modificado, o que é fundamental conhecer para que as coisas façam sentido.
Talvez no que acaba de dizer esteja, em parte, a explicação para o sucesso dos cursos ligados à gestão das pessoas junto dos estudantes…
Talvez. Muitos jovens procuram a dimensão humana, sentem-se atraídos pelo universo das relações humanas. Têm um desejo de partilha, de mudar, de discutir. Apreciam uma visão mais dinâmica, mais social, as coisas mais tradicionais, ouvir as pessoas, estar atento. Tudo isto, no fundo, é gestão.
Voltando ao «Projecto Ágora RH» e ao espaço do Mediterrâneo... Será a União Europeia um problema para esse espaço? Ou seja, a União Europeia tem uma zona definida à partida, a Europa. Não acha que o Magreb, por exemplo, poderia integrar a União Europeia?
Sim e não… Se houver vontade de financiar os países pobres… Enfim, deve haver um sentimento de que a Europa não está sozinha, e deve procurar-se valorizar os projectos de financiamento dos países mais pobres.
Agora está na ordem do dia a questão da adesão da Turquia à União Europeia. Se a Turquia acabar por entrar, por que é que não poderão entrar os países do Magreb, mesmo sendo africanos? Há alguns deuses que impeçam isso?
Bom, posso responder a título pessoal…
Toda esta entrevista é a título pessoal.
A Turquia coloca um problema. Mas se você diz que há a Turquia e depois há o Magreb… Bom, o Magreb representa, em termos de população, o equivalente à Turquia. Grosso modo, o Magreb tem 70 milhões de pessoas e a Turquia a mesma coisa.
Dou-lhe o exemplo de Israel. No desporto, especialmente no futebol, foi preciso meter Israel na Europa. Imagine que um dia um clube de Tel Haviv ganhava a «Liga dos Campeões»… E afinal qual é a diferença entre a Roménia e a Argélia?
Tem razão. Mas digo isto a título pessoal... Enfim, eu tenho o sentimento de que o Magreb não tem a vocação de estar na Europa, mas considero que uma parceria de muita proximidade deve ser cada vez mais encorajada.
A partir da Cimeira de Barcelona, que veio redefinir a posição europeia de colaboração com o Magreb num quadro de cooperação inter-regional, passou a apontar-se para uma forte ligação em 2010…
Não sabemos se se vai concretizar. Há muitos atrasos. Só que é uma intenção. A abertura dos mercados, uma abertura económica… Mas quando se fala de liberdade de troca de mercadorias eu fico muito chocado, porque não se fala do mesmo em relação às pessoas.
Pelos visto, para Bruxelas as mercadorias valem mais do que as pessoas?
Parece… De qualquer forma, a troca de mercadorias entre as empresas, entre as economias de vários espaços, implica outras trocas, não apenas materiais… Falo de trocas virtuais, de ideias, e depois é preciso que haja pessoas envolvidas. Tudo isto ajuda a libertar as coisas também ao nível das pessoas. Portanto, se se fala de movimentos de mercadorias, logo há também movimentos de pessoas. Outro aspecto importante tem a ver com o seguinte… Se ajudarmos a desenvolver os países do Magreb, assim como o continente africano em geral, esse desenvolvimento implica que seja reduzida cada vez mais a miséria que faz com que milhares de pessoas queiram partir para a Europa. Ou seja, cria-se condições para que as pessoas possam ter uma vida digna nos seus países, sem que sejam obrigadas a procurar o mundo rico do norte.
Bom, eu pessoalmente gostaria de ter os meus vizinhos de Marrocos e da Argélia na União Europeia. Mas o «Projecto Ágora RH»… Está satisfeito com o percurso dos últimos três anos?
Sim.
Por quê?
Porque penso que foram produzidos conteúdos de qualidade, que houve reflexões importantes, que as pessoas estão interessadas. Este trabalho tornou-nos atractivos – a todos os participantes – em termos de recursos humanos. Há pessoas, associações, estruturas que vêm ter connosco porque nos consideram credíveis. Fazemos coisas interessantes. Repare, no colóquio final do projecto esteve presente Enrique Barón Crespo.
Acha que Barón Crespo é a imagem do político europeu?
Sim… Bom, se foi presidente do Parlamento Europeu e hoje é presidente da Comissão de Comércio Internacional desse mesmo parlamento, é porque os seus pares o consideram bom, é porque o seu perfil corresponde ao que eles pretendem. Mas ainda em relação ao projecto… Para mim, foi satisfatório, mas não é suficiente. Há muito mais a fazer, a associação de profissionais de recursos humanos da Eslovénia acabou por participar também…
E os outros países que estiveram no colóquio final como observadores?
Sim, Malta, Chipre, a Roménia, a Síria. Mesmo os casos do Senegal e da Hungria, que são exemplo de realidades que estão próximas de países do Mediterrâneo, em África e na Europa, respectivamente. A perspectiva é de que numa segunda fase do projecto eles se integrem plenamente. E há a Turquia… Todos estes países podem ajudar a tornar o trabalho mais completo.
O nome do projecto, «Ágora», vem da Grécia antiga, traduzindo a ideia de um espaço de liberdade…
Sim, um espaço de troca. E na História a Grécia é muito importante.
Mas os gregos não estão no projecto…
Mas virão, acredito que eles virão.

François Silva (n. Bordéus, 1952), doutorado em Sociologia pela Universidade de Toulouse e também com formação em Ciência Política, é professor da Euromed Ecole de Management, em Marselha (nomeadamente de disciplinas ligadas a recursos humanos), e professor Associado do Conservatoire National des Arts et Métiers (CNAM), em Paris. É presidente do Cercle d’Etudes Ethique et de Développement Sociétal (CE-DS), vice-presidente da Association Internationale de l’Audit Social (IAS) e secretário-geral da associação RH Sans Frontières. Na Euromed é também director de investigação, sendo nessa qualidade que coordena desde o início o «Projecto Ágora RH».

quarta-feira, 7 de maio de 2008

Edição de Maio

Número 69 da revista «Pessoal» – edição de Maio de 2008. Na capa, Rodrigo Viegas e alguns dos pequenos grandes líderes do The Little Gym. Deixo aqui o meu editorial...

Uma apresentação, e também as crianças
Uma apresentação num congresso, integrada num módulo dedicado a temas de recursos humanos. Lembro-me de que quando me convidaram me sugeriram que falasse de gestão da mudança. Pensei no assunto e pouca coisa me acorreu. O tema não me é estranho, longe disso, mas a verdade é que não me senti motivado para dizer nada sobre ele. E então aquilo que acabei por propor fazer foi abordar algumas questões que considero fundamentais em termos de gestão das pessoas nas organizações, sempre a partir da revista «Pessoal», afinal a razão do convite.
Deu-me muito trabalho a apresentação, porque por mais que tente convencer-me do contrário a actividade contínua da revista não permite a disponibilidade – sobretudo mental – que outro tipo de actividades certamente permitiria. Tive de fazê-la por isso fora de horas, muitas vezes a cair de sono. Pior, na data marcada para ir apresentar o que tinha escrito estava a meio o fecho de mais uma edição e eu levava duas noites quase sem dormir. Mas lá fui; saí de casa perto das sete da manhã para chegar a horas a Lisboa, sem correr os riscos dos problemas do trânsito nas entradas. E mal acabou o painel em que estava integrado, a meio da manhã, corri para o escritório, para a etapa final de mais um número da revista.
Foi bom. A apresentação permitiu-me recordar muitas coisas que aconteceram ao longo de vários anos na «Pessoal», algumas delas que incluí no texto que preparei. O que escreveu Carlos Perdigão uma vez num artigo, que «os lugares mais exigentes e melhor remunerados no sector público e em muitas empresas privadas são ainda, em muitos casos, ocupados não pelos melhores e mais qualificados mas por aqueles que pertencem ao partido do governo, seja ele qual for, ou que têm uma relação de especial proximidade com os que decidem ou com os que influenciam a decisão, os vulgares ‘padrinhos’». Ou mais recentemente Rodolfo Begonha, sobre as cunhas… «Quando a cunha é acolhida sem reservas pelos dirigentes e gestores de empresas de forma completamente cega e estúpida, sem ter em conta os requisitos previstos para o papel ou a função a desempenhar, quando se ignoram as competências requeridas e as mais-valias detectadas em currículo e em entrevistas, presenciamos a antítese da gestão.» Ou Carlos Antunes, sobre a tão falada flexissegurança, que por aqui escrevemos com dois ésses, por causa do português… «Espero que a flexissegurança à portuguesa, cujo modelo andará certamente muito longe do dinamarquês, não desemboque em algo parecido como o modelo chinês de trabalho flexível, desregulamentado, de salários baixos e sem quaisquer direitos.»
Ou entrevistas como a de António Garcia Pereira, que classificou em 2004 o Código do Trabalho (de que agora se discute a revisão) como «um mono de mais de um milhar de artigos − o código mais a regulamentação –, ainda por cima com uma lógica de arrumação que não corresponde de todo à cultura habitual da abordagem dos assuntos.» Ou a de Luísa Schmidt, sobre o tema do ambiente mas na qual disse que mais do que com isso «a sociedade civil se preocupa primeiro com uma necessidade mais básica e imediata, o salário».
Estas e outras recordações de tantos números da «Pessoal». Por causa da apresentação. Ao mesmo tempo que se fechava mais uma edição, e uma de cujo percurso até ao resultado final gostei particularmente. Um dia, quase de certeza, vou recordar-me de algumas das coisas que preenchem as suas páginas, principalmente da entrevista que é tema de capa e das belas fotos das crianças a quem se procura mostrar os caminhos para o sucesso.

quinta-feira, 1 de maio de 2008

Uma apresentação

Coloco a seguir o texto de suporte de uma apresentação que fiz no «VIII Congresso Nacional» da Associação Portuguesa para o Desenvolvimento do Transporte Ferroviário – ADFER (Lisboa, 29 e 30 de Abril de 2008).
dfs
dg
A gestão das pessoas nas organizações – algumas questões fundamentais vistas a partir da revista «Pessoal»; o sector ferroviário


Primeira parte: algumas questões fundamentais na gestão das pessoas, vistas a partir da revista «Pessoal»

Esta não é a apresentação inicialmente prevista. O que eu pretendia fazer era como que uma visita a algumas questões ligadas à gestão das pessoas nas organizações que considero fundamentais, sempre tendo como guia a revista «Pessoal», uma publicação que dirijo desde o Verão de 2002 e na qual eu e a equipa que me acompanha temos tido a preocupação de divulgar da melhor forma possível esta área da gestão.
O que eu previa era abordar cinco temas mais, digamos assim, tradicionais na gestão de recursos humanos: recrutamento, formação, motivação, avaliação do desempenho e compensação; temas esses que acabam por assentar numa lógica que de forma simplista se poderia ilustrar como acompanhando o percurso desde que uma pessoa toma contacto com uma organização até ser recompensada pelo trabalho que nela desenvolve.
Além destes cinco temas, eu previa falar de mais nove que no nosso país, e nesta área, por vezes têm vindo a ser objecto de acesa discussão: gestão por competências, novas tecnologias, legislação laboral, responsabilidade social, inovação, gestão da mudança, diversidade, gestão do talento e trabalho temporário; aqui sem nenhuma ordem particular.
Contudo, na concretização deste plano, rapidamente percebi que seria impossível abordar os catorze temas nos moldes em que previa, isto tendo em conta os condicionalismos, nomeadamente de dimensão do texto. Assim, decidi escolher cinco, dois do primeiro grupo e mais três do segundo. São eles recrutamento e avaliação do desempenho, do primeiro, e depois legislação laboral, diversidade e responsabilidade social.
Sobre cada um destes temas, aquilo que apresento a seguir são ideias que considero importantes e que foram publicadas na revista «Pessoal». Ideias de especialistas que com tantos outros ajudaram a concretizar ao longo de seis anos um projecto de informação na área da gestão das pessoas nas organizações, de uma forma ininterrupta e, mais importante do que isso, com uma sustentabilidade indiscutível.
Passemos então aos cinco temas, começando pelos que escolhi do primeiro grupo: recrutamento e avaliação do desempenho…
Em relação ao recrutamento, muitas vezes apresentado com a designação «recrutamento & selecção», parece-me que a situação no nosso país fica ilustrada em parte com algumas observações feitas por Jorge Horta Alves. Num trabalho que publicámos há poucos meses, o responsável máximo de uma consultora extremamente conceituada, a SHL Portugal, afirmava que «os estudos feitos ao longo da última década mostram-nos quais as formas de atrair os melhores candidatos transmitindo informação objectiva e recrutando através dos meios de comunicação social e da Internet» e também que «as investigações realizadas em diversos países dizem-nos qual a melhor forma de avaliar e seleccionar os candidatos utilizando testes, entrevistas e outras técnicas de assessment». Só que – defendia – «sabe-se pouco sobre os factores que determinam «a eficácia do recrutamento & selecção como um processo global». Sabe-se pouco sobre «o que faz os candidatos manterem-se ou abandonarem o processo de recrutamento, o que faz aceitarem ou recusarem uma oferta de emprego, a eficácia com que as organizações integram e mantêm os novos empregados, as razões que levam muitas empresas a recrutar novos empregados sem ligar essa decisão a uma necessidade real da estratégia e do desenvolvimento do negócio». Valendo-se da sua experiência, aquele responsável referia que «os recrutamentos mais bem sucedidos são aqueles em que se recruta para alcançar objectivos elevados, aqueles em que os candidatos são seleccionados segundo os mesmos critérios com que serão posteriormente avaliados, promovidos e remunerados.»
Há no entanto uma outra realidade a considerar ao nível do recrutamento. Carlos Perdigão, um jurista com fortes ligações à gestão de recursos humanos, fala da situação num texto sobre «os portugueses que, fora do país, frequentam mestrados ou doutoramentos ou participam em importantes projectos de investigação, ao abrigo de bolsas patrocinadas pelo Estado ou por fundações ou entidades relacionadas com o mundo científico e cultural». Na sua opinião, «é aparentemente estranho o facto de muitos desses portugueses se mostrarem apreensivos em relação ao futuro, sobretudo aqueles, cada vez menos, que tencionam regressar a Portugal», tudo porque se constata «não existir no nosso mercado de trabalho espaço para poderem continuar os seus projectos ou, pura e simplesmente, para poderem trabalhar no sector estatal ou no empresarial», além de que «o problema estende-se aos actuais recém-formados, 20% dos quais procuram colocação no estrangeiro, perante a falta de oportunidades no seu próprio país». Para o jurista, este «aparente paradoxo» tem uma explicação simples: «os lugares mais exigentes e melhor remunerados no sector público e em muitas empresas privadas são ainda, em muitos casos, ocupados não pelos melhores e mais qualificados mas por aqueles que pertencem ao partido do governo, seja ele qual for, ou que têm uma relação de especial proximidade com os que decidem ou com os que influenciam a decisão, os vulgares ‘padrinhos’». Carlos Perdigão refere que «muitas pessoas que chegam a lugares de topo no sector público empresarial, por exemplo, não resistiriam sequer ao crivo de uma modesta avaliação curricular», e cita um empresário, antigo ministro e dirigente de um partido político que há cerca de um ano declarou a um jornal diário de âmbito nacional: «Meti dezenas, centenas de cunhas, com todo o prazer.»
Ainda a propósito desta realidade, é de assinalar a opinião de um gestor, Rodolfo Begonha, que diz: «Quando a cunha é acolhida sem reservas pelos dirigentes e gestores de empresas de forma completamente cega e estúpida, sem ter em conta os requisitos previstos para o papel ou a função a desempenhar, quando se ignoram as competências requeridas e as mais-valias detectadas em currículo e em entrevistas (seja em termos de formação adequada, seja em termos de características reveladas e em experiência profissional), presenciamos a antítese da gestão.»
Segundo tema do primeiro grupo, neste caso de forma quase telegráfica, a avaliação do desempenho… Pedro Romão Figueiredo, líder do Active Management Group, uma instituição focada no estudo, no desenho e na implementação de sistemas de gestão de desempenho, assinala que por cá «são poucos os casos de sucesso em termos de boas práticas dos sistemas de gestão de desempenho instalados» e que «onde eles são mais eficazes é na orçamentação – pouco contribuindo para ajudar a compreender os factores de sucesso –, na motivação de empregados e na base para premiar os melhores». E o presidente da Associação Portuguesa dos Gestores e Técnicos dos Recursos Humanos (APG), Jorge Marques, fala de «incluir nos sistemas de avaliação do desempenho a componente da gestão dos objectivos». Isto por quê? Porque «a avaliação do desempenho enquanto medição do que aconteceu no passado, ou seja, feita à imagem e à semelhança da mentalidade contabilística da apresentação de resultados e contas, tem cada vez menos significado; o que já aconteceu não se pode modificar, e nada garante que as lições do passado possam ter alguma utilidade na nova realidade do futuro». Ou seja, a avaliação do desempenho, algo «que já foi quase exclusivamente técnico, na perspectiva da gestão dos recursos humanos deve ser um instrumento estratégico de gestão das organizações, onde os profissionais de recursos humanos têm o papel de construtores do futuro e não de contabilistas do passado».
E chegamos ao segundo grupo de temas. Começamos com a legislação laboral... Em 2004, numa entrevista que nos concedeu, o advogado António Garcia Pereira considerava o Código do Trabalho como «um mono». Explicava-se assim: «Pegou-se na legislação laboral e perguntou-se, isto é um amontoado enorme, uma coisa assistemática, que corresponde a funções distanciadas no tempo 30 anos, portanto é preciso fazer uma coisa nova, moderna, sistematizada, eficaz, digamos, fácil de manusear? Não, produziu-se foi um mono de mais de um milhar de artigos − o código mais a regulamentação −, e ainda por cima com uma lógica de arrumação que não corresponde de todo à cultura habitual da abordagem dos assuntos.» Trata-se, como sabemos, do actual Código do Trabalho, que na altura era bem recente e que rapidamente começou a suscitar opiniões de que deveria ser revisto. A propósito deste afã de produzir novas leis, veja-se o que diz o jurista Carlos Perdigão, que já anteriormente citei, numa entrevista deste ano: «Não será pela via das sucessivas reformas da legislação laboral que Portugal recuperará a sua economia e projectará as suas empresas. A situação actual é, aliás, paradigmática a tal respeito: o Código do Trabalho tinha, entre as suas principais prioridades, a promoção da adaptabilidade e da flexibilidade da disciplina laboral e a abertura a novas formas de trabalho. Quatro anos volvidos sobre a aprovação do diploma, é de flexibilidade e de adaptabilidade que se continua a falar, como se nada afinal tivesse acontecido.» Comparando com o que se passa aqui mesmo ao lado, Carlos Perdigão assinala: «A Espanha, ao contrário de Portugal, tem apostado bastante no diálogo social e na alteração do paradigma a nível de contratação, com clara prioridade para as soluções assentes na estabilidade contratual e do emprego e consequente subalternização da contratação atípica. Ao que parece, com bons resultados, a avaliar pelos indicadores conhecidos. O Estatuto de los Trabajadores, comparativamente com o nosso Código do Trabalho, é um instrumento bem mais reduzido, acessível e compreensível, e desse ponto de vista parece mais talhado para menor evasão e controvérsia.»
Ainda sobre questões de legislação laboral, uma nota para a tão falada flexissegurança. Carlos Antunes, um jurista que integra os quadros do Ministério do Trabalho e da Solidariedade Social, alerta para «a impossibilidade de adopção do modelo de flexissegurança dinamarquês – combinação da flexibilidade de despedir com a segurança no (des)emprego – às relações de trabalho em Portugal, tendo em conta a inexistência no nosso país de um conjunto de pressupostos nos quais assenta o sucesso do modelo dinamarquês: forte carga fiscal, correspondente a 49 % do produto interno bruto (PIB), geralmente bem aceite e culturalmente cumprida pela população dinamarquesa desde os empresários aos trabalhadores; um montante de despesas públicas consagradas às políticas do mercado de trabalho de 4,4 % do PIB, o valor mais elevado da Europa; atribuição de subsídios de desemprego correspondentes a 90% do último salário (cujo valor médio mensal é de 2.000 euros); um período médio de catorze dias entre a perda do emprego e a entrada num novo emprego; a mais elevada taxa de sindicalização da União Europeia (80% da população activa está sindicalizada); e um processo decisório e de aplicação de medidas em domínios como os de condições de trabalho, políticas de formação ou reformas estruturais do mercado de trabalho baseadas nas convenções estabelecidas entre os parceiros sociais, nas quais há um primado quase absoluto da contratação colectiva sobre a lei do trabalho». Carlos Antunes espera por isso – como eu próprio espero, obviamente – que «a flexissegurança à portuguesa, cujo modelo andará certamente muito longe do dinamarquês, não desemboque em algo parecido com o modelo chinês de trabalho flexível, desregulamentado, de salários baixos e sem quaisquer direitos.»
Outro tema, a diversidade, para o qual escolhi duas questões: a igualdade entre géneros e a discriminação racial. Primeira questão, um trabalho sobre as mulheres nas empresas onde a opinião unânime foi de que estamos longe da igualdade. As entrevistadas foram mulheres (directoras de recursos humanos de empresas bem relevantes do nosso país), que no entanto acreditam que a situação poderá mudar, embora não a curto prazo. Das entrevistadas, escolhi três exemplos. Ana Barata, directora de recursos humanos da AR Telecom, acredita que vai haver equilíbrio de géneros nos cargos de topo porque «ao longo dos últimos anos esta tendência tem vindo a aumentar e cada vez mais as organizações gerem e premeiam os seus colaboradores de acordo com as competências e o mérito». Isabel Moisés, directora-geral de recursos humanos e comunicação interna da Sociedade Central de Cervejas e Bebidas, acha que chegaremos a um tempo em que «não haverá grandes distinções entre homens e mulheres nas administrações das empresas e em que nos mais diversos níveis das organizações não haverá discrepâncias entre o salário que é pago a um homem e o que é pago a uma mulher»; mas assinala que «no que se refere à quantidade de mulheres nos altos cargos das administrações, como chief executive officer (CEO) ou chief financial officer (CFO), por exemplo, esse tempo demorará no nosso país mais vinte anos a chegar»; nos salários é que não vê tantas discrepâncias. Já Marina Peres, directora de recursos humanos do Grupo Águas do Areeiro, acredita que «relativamente a lugares de topo a relação não será linear, dado o peso da tradição», e que «será necessário que, para além da formação académica, as mulheres demonstrem elevada competência, motivação e a disponibilidade de tempo que estes cargos requerem, bem como uma boa capacidade de organização pessoal e familiar extra-trabalho».
Quanto à discriminação racial, escolhi excertos do que disse Rui Marques (entrevistado enquanto Alto-Comissário para a Imigração e o Diálogo Intercultural, cargo que recentemente deixou) sobre a situação portuguesa: «Muitos jovens que tentam aceder a um emprego, pelo facto de morarem onde moram, pela cor da sua pele, são afastados de oportunidades, o que é uma tremenda injustiça. Temos todos que fazer um esforço e combater o preconceito, o estereótipo, formas invisíveis e não-ditas de discriminação que são muito injustas. Não se trata de discriminação positiva, não se está a dar aos imigrantes ou a quem vem de bairros pobres mais do que se dá a outro cidadão.» Rui Marques faz notar… «A diversidade que hoje temos é uma enorme riqueza para o nosso país. A diversidade cultural é o que faz a força das sociedades actuais, porque é num clima de diversidade cultural que a inovação pode ser gerada. Também apresenta desafios; é preciso que se saiba fazer viver juntos, fazer conviver pessoas com diferentes religiões, diferentes culturas, diferentes histórias pessoais… E da mesma forma que para uma sociedade a diversidade é um factor competitivo à escala global, os países que sabem usar melhor a diversidade são mais competitivos em termos internacionais. No quadro das empresas isso é fundamental, porque só em ambiente de grande diversidade é que a criatividade e a inovação atingem o seu expoente máximo.»
Finalmente, a responsabilidade social… Aqui uma primeira opinião que não tem a ver com a generalidade das empresas mas sim com o universo público; opinião de um académico, José Manuel Moreira, da Universidade de Aveiro, a propósito da pergunta «Não lhe parece que o conceito de responsabilidade social tem encontrado um caminho mais fácil nas empresas do que nas instituições públicas?»: «Isso resulta em parte de uma pressão que se exerce sobre os privados e que se sente menos – ou quase não se sente – nas instituições públicas. E também se justifica pelo facto de se tender a associar uma empresa privada a algo culpável; e se dá lucro é ainda mais culpável. Assim se explica, infelizmente, que tanta gente se interesse pela responsabilidade social empresarial, mas pelas piores razões. Por sua vez, às instituições públicas associamos o bem público, o que é próprio dos políticos, dos burocratas e dos grupos de pressão, e portanto a algo generoso e benéfico. A coisa não é bem assim, mas foi assim que aprendemos, e é assim que a vemos. A empresa municipal polui, o Estado paga com meses e anos de atraso, a Justiça não funciona, mas mesmo assim não se vai considerar que ao Estado falta responsabilidade social. Considerar que o Estado social pode favorecer e mesmo fomentar a fraude, a corrupção e outros comportamentos anti-sociais é próprio de gente má e maldosa. O truque está em identificar Estado com sociedade, levando-nos a pensar que Estado de bem-estar é o mesmo que sociedade de bem-estar.»
Ainda dentro da responsabilidade social, um destaque para as questões ambientais, até por terem uma importância notória no sector ferroviário – sector a que em concreto me referirei a seguir. Escolhi algumas opiniões de uma personalidade marcante em termos do que são em Portugal as preocupações ambientais, Luísa Schmidt, que entrevistámos. Sobre como vêem as empresas o investimento na área do ambiente, disse o seguinte: «Há casos de visão estratégica. Mas isso não se verifica na maioria das pequenas e médias empresas (PME), que são quem revitaliza a economia. E tem-se feito muito pouco para as estimular. A política económica está mais virada para os grandes grupos do que para as PME.» Sobre o desempenho ambiental das empresas em Portugal… «O tecido empresarial português ainda não está verdadeiramente sensibilizado para estas questões. Até a nível das grandes empresas o desempenho não é nada brilhante. Há muitas dessas empresas que são péssimas. Temos os exemplos do sector das celuloses, das centrais térmicas, das cimenteiras... Se olharmos para as grandes indústrias, verificamos que tudo o que foi feito até agora deixa muito a desejar. Apesar de ter havido muitos contratos-programa, não houve grandes reflexos a nível da modernização tecnológica. Não há actualização por parte dos empresários relativamente a esta matéria, sendo que há sectores muito mais evoluídos do que outros.» Sobre se as novas gerações ligadas à gestão das empresas poderão estar mais sensibilizadas para estas questões… «Têm mais informação e estudaram muito mais estas matérias do que as anteriores. São matérias que começam a penetrar nos próprios programas escolares e até nos media. Apesar de ainda não se fazer a divulgação desejável, já se vai falando. Existe, portanto, um muito maior conhecimento sobre estas matérias nos novos empresários, que também beneficiaram de uma maior abertura do país, contactando com empresários para os quais esta já é uma questão trivial. Também começam a aparecer novas profissões, como engenharia do ambiente, por exemplo, e existe um enorme dossier de empresas só ligadas ao sector ambiental, o que demonstra que se trata de um sector de grande investimento, que se está a desenvolver. Agora que também existem outros que não têm essa consciência, isso é evidente… Ainda há determinados vícios na forma de funcionamento do país.» E por falar em «funcionamento do país», sobre o Estado… «Tudo isto tem um bocado a ver com a permissividade do Estado, que devia exercer um controlo mais apertado sobre a actividade das empresas e não o faz.» Isto logo seguido da referência ao facto de a sociedade civil se preocupar «primeiro com uma necessidade mais básica e imediata, o salário».


*****


Segunda parte: o sector ferroviário

Vou agora centrar-me apenas no sector ferroviário. Esta parte é necessariamente mais curta, porque não conheço o sector de forma a fazer muitas considerações e muito menos de forma a sobre ele apresentar certezas. De qualquer maneira, deixo algumas ideias, a partir da minha própria sensibilidade e também de alguns comentários que procurei ouvir.

»»» O sector ferroviário faz parte de um aparente paradoxo: ao mesmo tempo que são abertas novas auto-estradas, são encerradas vias-férreas. Num tempo em que a questão energética ganha cada vez maior importância, camiões (mercadorias) e até autocarros (pessoas) sobrepõem-se claramente ao comboio. Surgindo um pouco como contraponto deste aparente paradoxo, realço no entanto a expansão das redes de metro nas duas maiores áreas urbanas do país.

»»» Parece-me que se trata de um sector amarrado a uma certa necessidade política de paz social. O receio de paralização, nomeadamente do transporte de passageiros, poderá por isso colocar dificuldades em termos de gestão. A própria gestão poderá ser influenciada por constrangimentos a nível político.

»»» A questão da responsabilidade social deve aqui colocar-se de forma clara, pelo que referi no tópico anterior e por estarmos a falar de um universo marcadamente público, e também pela envolvência das questões ambientais em termos da actividade em todo o sector ferroviário.

»»» Associada às questões da responsabilidade social, refiro um «código de ética e de conduta» numa empresa do sector ferroviário, a Refer. Com ele, segundo apurei, pretende-se «reforçar os padrões éticos em todos os seus domínios de actuação, na expectativa de que tal venha a constituir um pilar fundamental da política de responsabilidade social da empresa». Através do documento «são dados a conhecer os valores preconizados, vividos e exigidos na empresa, estimulando relações crescentes de confiança mútua com todos os seus interlocutores e, de uma forma geral, com todas as comunidades a quem presta, directa ou indirectamente, os seus serviços».

»»» A gestão de recursos humanos no sector tem hoje um enquadramento diferente do que existia há alguns anos. A separação das actividades de comboios, exploração das linhas e manutenção de equipamento ferroviário resultou numa alteração de paradigma a nível organizacional. Creio que poderá ter conduzido a um enfraquecimento de algo a que talvez se pudesse chamar «cultura organizacional ferroviária» e a uma crise de identidade latente entre os ferroviários, cuja unidade como classe profissional era especialmente reconhecida. A isto, acresce o próprio redimensionamento das vias.

»»» Uma nota para alguns dados que recolhi junto do Ministério do Trabalho e da Solidariedade Social (MTSS), dados que dizem respeito apenas à CP. Em relação a conflitualidade laboral, houve seis greves em 2006, 20 em 2007 e sete em 2008 (até final de Março). Sindicatos foram-me referidos 35, com a indicação de que «apenas sete são representativos» e de que o Sindicato dos Maquinistas (SMAQ), um sindicato independente, é o único que em caso de greve pode efectivamente paralisar a empresa (deste sindicato não se registam greves há mais de quatro anos). Quanto à legislação laboral aplicável, referiram-me o Código do Trabalho e instrumentos de regulamentação colectiva de trabalho (IRCT), existindo seis acordos de empresa celebrados com aqueles sindicatos considerados «mais representativos». Já fora dos dados do MTSS, e agora neste caso para a Refer, encontrei a referência a 20 sindicatos, sendo a taxa de sindicalização de 74%.

»»» No âmbito da formação, as exigências são muito significativas. Está em causa a segurança da circulação, com milhões de passageiros, o que exige a preparação e a certificação de todos os agentes que operam no âmbito da condução. Destaco aqui o facto de existir uma ideia de excelência em relação à formação técnica que é disponibilizada para os profissionais do sector.

»»» Historicamente pode falar-se de uma prevalência de quadros com formação em engenharia em cargos de gestão, sendo que nisso o sector não é caso único. A componente de gestão deve ser tida especialmente em conta no que diz respeito a cargos de topo, para que não se caia em situações em que haja actualização no que respeita à tecnologia do negócio (ou dos negócios) mas não em relação à tecnologia aplicada à gestão.

»»» Uma questão importante tem a ver com a necessidade de conciliar a saúde e a segurança dos trabalhadores ferroviários em geral com o imperativo de garantir flexibilidade na prestação dos serviços. A organização e a duração do trabalho emergem como sendo dos aspectos mais salientes, face às questões colocadas a nível de prestação de trabalho nocturno, descanso fora do domicílio ou tempos de condução, por exemplo.

»»» Em termos de avaliação do desempenho, deve apostar-se em distinguir as pessoas; esta preocupação deve estar presente em todo o sistema de carreiras e de compensações, evitando esquemas pesados e de excessiva regulamentação.

»»» Inovação (nomeadamente novas tecnologias) e gestão da mudança estarão sempre a par no sector ferroviário. O aparecimento de novos comboios, com destaque para os da rede da alta velocidade, e de sofisticados equipamentos de apoio à circulação impõem cuidados especiais em termos de formação profissional e de políticas de recrutamento de todos os agentes envolvidos ou a envolver. Exigem também políticas adequadas de gestão da mudança, tendo em vista a sucessiva adaptação dos trabalhadores a novas e diversificadas exigências. Não é nada, em todo o caso, que seja exclusivo do sector.

»»» Por fim, em termos de diversidade, e mais especificamente no que diz respeito à presença feminina neste sector, uma nota para um trabalho do jornal «Expresso», publicado no passado dia oito de Março (Dia Internacional da Mulher). O trabalho não era apenas sobre o sector ferroviário, mas sobre o dos transportes, e num universo público. Destacava a presença de mulheres nos cargos de topo, fazendo notar o facto de se «escolher mulheres para liderar num sector tradicionalmente masculino», algo que resultaria de «uma linha de orientação da secretária de Estado dos Transportes, Ana Paula Vitorino»; referia-se que «foi esta engenheira civil a primeira mulher em Portugal a ser escolhida para ditar as políticas nos sectores marítimo-portuário, logístico, ferroviário, de transportes urbanos e rodoviários» e também que a sua intenção seria a de «puxar para o topo as mulheres». Referia-se ainda que a secretária de Estado tinha catorze líderes de primeira linha que eram mulheres – creio que entretanto a situação terá sofrido alterações –, isto quando à chegada da secretária de Estado ao cargo não havia uma só mulher nos lugares de topo que ela ia tutelar; para três anos depois a denominada «liderança no feminino» atingir os 20%.