quarta-feira, 5 de setembro de 2007

Gestão e futebol

Uma entrevista de 2003, feita por mim e pelo jornalista Humberto Simões (revista «Pessoal»). O entrevistado terminou por estes dias a sua ligação ao Sporting. Há quatro anos pensava o futebol português da forma que a seguir se pode ficar a conhecer…

Rui Meireles
Um gestor no mundo do futebol

Chegado há poucos anos ao futebol, vindo do mundo das empresas, Rui Meireles faz uma análise sóbria e fundamentada da situação do futebol português, do que representa e do que poderá vir a representar como negócio, e não só. As suas funções no Grupo Sporting têm a ver com o que denomina de «Não Futebol». Mas o futebol, no Sporting, como na generalidade dos clubes, é a base. Até porque sem ele não se poderia falar de «Não Futebol».

Modelo de gestão, práticas contabilísticas, recursos humanos, auditoria interna, Comissão do Mercado dos Valores Mobiliários, Segundo Mercado, realidade empresarial, subscrição pública, fundo de jogadores, oferta pública de subscrição, organização, performances económico-financeiras, contas auditadas, business plan plurianual, cultura de empresa... Estas e muitas outras expressões podem ser encontradas nas respostas de Rui Meireles, misturadas com outras que soarão de certeza mais familiares ao grande público; por exemplo, academia, Figo, futebol, jogadores, Hugo Viana, plantel, camadas jovens, Quaresma, Liga, Simão, dirigentes, treinadores, árbitros, incumprimento fiscal, branqueamento de dinheiro, contas paralelas, SAD, empresários, pressão dos sócios, pressão sobre os árbitros, indiciamento de suspeitas... Para ler, mesmo sem dicionário.
Pode explicar-nos as suas funções na Sporting – Sociedade Desportiva de Futebol, SAD?
Actualmente, desempenho as funções de Director Geral para a área do Não Futebol, funções que estão interligadas com as funções de Administrador Executivo numa outra sociedade do Grupo Sporting, a Sporting Gestão, a qual tem como actividade a gestão e a coordenação dos serviços que são partilhados pelas empresas do Universo Sporting, como a gestão de recursos financeiros, a contabilidade, os recursos humanos, a informática, os aprovisionamentos, a auditoria interna, a assessoria jurídica e o desenvolvimento de novos projectos. No âmbito das funções desempenhadas na Sporting SAD, sou o representante da sociedade, junto da Comissão do Mercado dos Valores Mobiliários (CMVM) e da Euronext Lisboa, nas relações com o mercado.
Vindo do mundo das empresas, que contraponto faz entre ele e o mundo do futebol?
Quando em finais de 1995 cheguei ao Sporting Clube de Portugal, com a missão de colaborar no processo de reorganização do clube, inicialmente para a área financeira mas que posteriormente se estendeu a outras áreas, confrontei-me com uma realidade empresarial distinta dos demais sectores económicos. A forte componente emocional de que se revestiam as decisões de gestão e a coexistência de uma estrutura mista, composta por dirigentes amadores com o poder de decisão e uma estrutura desportiva altamente profissionalizada, constituíam os dois principais factores diferenciadores entre o mundo das empresas a que estava ligado e o mundo da actividade desportiva e do futebol em particular.
Como se concilia a gestão com o mediatismo que o futebol envolve?
No contexto nacional, o futebol é seguramente a actividade económica com maior mediatismo. Não conheço outra que ocupe tanto espaço na programação das televisões (telejornais e programas desportivos), que tenha jornais, sites e programas de rádio diários a falar sobre ela. Esta visibilidade, que poderia ser utilizada como uma alavanca importante de promoção do futebol, é grande parte das vezes utilizada para dar cobertura a polémicas entre os agentes do futebol. Neste capítulo, ninguém está isento de culpa; entidades gestoras do futebol (Liga, Federação e Associações), órgãos de comunicação social, dirigentes, jogadores, treinadores, árbitros, etc., todos têm a sua quota parte de responsabilidade no actual status quo do futebol. É evidente que neste cenário, praticamente de «guerrilha» e de descrédito, em que vive o futebol português, a missão do gestor é claramente mais difícil. Como é fácil de perceber, a ocorrência de situações de incumprimento fiscal, de branqueamento de dinheiro, de contas paralelas, de incumprimentos contratuais, de concorrência desleal, constituem factores de perturbação da gestão de qualquer sociedade, que no caso do Futebol, pelo mediatismo que envolve, assume proporções muito maiores.
Como inverter esse discurso de «guerrilha» entre os agentes do futebol?
De forma praticamente isolada, o Sporting tem trilhado um caminho e desenvolvido um discurso em prol da credibilização do futebol e da ética e da verdade desportiva. Se por um lado exige transparência de contas e de processos, por outro tem sido inovador; o pioneirismo na constituição de uma sociedade desportiva por apelo à subscrição pública, a criação de um fundo de jogadores e a obtenção de um empréstimo obrigacionista através de uma oferta pública de subscrição assumem-se como etapas que visam contribuir para um novo modelo para o futebol português. Considero que o Sporting está no caminho certo para a promoção do futebol e da verdade desportiva e tenho esperança de que esta forma de estar contagie outros agentes do futebol. É para mim claro que a não inversão das práticas e do discurso de suspeição pelo qual enveredam alguns agentes do futebol português conduzirão à falência daquele que é o desporto mais popular em Portugal.
Que contraponto faz entre o seu trabalho, que não é mediatizado, e o de muitas outras pessoas do clube e da SAD, dirigentes inclusive, que estão constantemente a aparecer na comunicação social?
O modelo de gestão da SAD valoriza e cultiva a participação dos colaboradores na missão e nos projectos da sociedade como se estes fossem inteiramente seus. O facto de algumas pessoas terem mais ou menos mediatização em nada afecta a estratégia que é seguida e que assenta no mobilização de todos na procura das melhores soluções para os desafios da competição que a sociedade tem de enfrentar.
Apesar de tudo o que se diz do futebol, também há quem diga que poderá ser uma boa escola para as empresas. Jorge Valdano, que entrevistámos há alguns meses em Madrid, por exemplo, tira daí muitos ensinamentos para os executivos das empresas. Qual a sua opinião?
Não li a entrevista de Jorge Valdano, pelo que não conheço o contexto em que a afirmação foi feita. Aquilo que posso dizer é que a gestão de uma sociedade desportiva ou de um clube – a forma não é relevante – encerra um conjunto de especificidades próprias do negócio. Por exemplo, gerir recursos humanos numa sociedade desportiva não é o mesmo que gerir recursos humanos em qualquer outra actividade empresarial. A mediatização, a idade e os elevados salários auferidos pelos jogadores exigem uma gestão diferente daquela que é utilizada em outros sectores de actividade. Outro aspecto diferenciador é a relação praticamente institucionalizada de intermediação desenvolvida pelos agentes do futebol, vulgo empresários, na contratação de jogadores e treinadores. Importa referir que a Sporting SAD, pelo pioneirismo que tem assumido em várias frentes, tem sido frequentemente solicitada para vários trabalhos universitários sobre temas diversos (organização, modelo de gestão, práticas contabilísticas, formas de comunicação, relações com o mercado, etc.).
Quem gere o capital humano? Existe a figura do Director de Recursos Humanos?
Dada a especificidade do capital humano numa sociedade desportiva de futebol, a sua gestão não é assegurada pelo Director de Recursos Humanos do Grupo Sporting, mas sim e directamente pelo Administrador Executivo com o pelouro do futebol.
Os casos de indisciplina com jogadores, como os que tantas vezes têm acontecido nos últimos tempos, poderiam ter tido desfechos mais favoráveis com uma cuidada gestão de recursos humanos?
Não entendo que os casos de indisciplina no futebol sejam mais frequentes ou mais graves do que aqueles que ocorrem em outras actividades empresariais. O que acontece é que a mediatização de um problema de indisciplina no futebol atinge normalmente repercussões desproporcionadas, que transformam um pequeno delito disciplinar num acontecimento público de lesa pátria. Muitas vezes, a forma como a comunicação social trata os casos de indisciplina ocorridos com jogadores é nocivo para o futebol português.
Qual a importância das SAD? Que mudanças trouxe o seu aparecimento?
As sociedades desportivas foram criadas na perspectiva de que um novo enquadramento legal para os clubes poderia ser um primeiro passo para a modernização e a profissionalização das estruturas organizativas do futebol, para acabar com o amadorismo dominante nos dirigentes da maioria dos clubes e das organizações que gerem o futebol, criar processos de gestão mais sólidos e responsáveis e um maior rigor económico-financeiro. Como penso ser evidente, não é pelo facto de um clube de futebol se transformar em sociedade desportiva que passa a ser melhor gerido e a ter melhor desempenho desportivo e melhores performances económico-financeiras. O factor diferenciador são as pessoas e a capacidade destas para mudarem práticas, processos e formas de estar no futebol. O quotidiano futebolístico tem demonstrado que entre dirigentes de clubes e administradores de sociedades desportivas não existem formas de actuação diferenciadas; dificilmente se pode dizer que um é melhor ou pior do que o outro. Como disse, a criação das sociedades desportivas foi um primeiro passo para a mudança que se impõe efectuar numa indústria com a importância do futebol. Há que dar os restantes passos para que o futebol se torne numa actividade em que todos os parceiros concorram em pé de igualdade, de forma transparente e credível, em que as suas contas são públicas e auditadas, em que os agentes que gerem o futebol o façam de forma transparente e credível aos olhos dos restantes agentes desportivos e da opinião pública em geral.
Por que critérios de gestão se rege uma SAD? Pelos mesmos que uma empresa tradicional?
Como disse anteriormente, não é pelo facto de ser uma SAD que os critérios de gestão são diferentes dos praticados num clube ou diferentes dos praticados numa empresa pública ou numa empresa familiar. No caso concreto da sociedade desportiva do Sporting, existe um business plan plurianual, o qual foi tornado público no Verão passado, aquando da subscrição pública do empréstimo obrigacionista, no qual são claramente determinados os objectivos desportivos, económicos e financeiros para os próximos cinco anos. A sociedade está cotada no Segundo Mercado da Euronext de Lisboa, tem auditorias permanentes e divulga publicamente as suas contas todos os semestres. Estou seguro de que o futebol só tinha a ganhar se todos os clubes que disputam as competições profissionais de futebol enveredassem por uma lógica de gestão empresarial e que facultassem informação de qualidade sobre os desempenhos económico, financeiro e desportivo.
Havia uma ideia generalizada de que as SAD trariam equilíbrio às contas. Que comentários isto lhe sugere? E como explica os prejuízos?
A paixão pelo futebol e a vontade de ganhar a qualquer preço tem levado os dirigentes de clubes e os administradores das sociedades desportivas a gastarem mais do que aquilo que podem e a gerar défices crónicos de tesouraria e prejuízos avultados. Salvo raras excepções, a emoção tem-se sobreposto à razão, e os resultados estão à vista, com a maioria dos clubes/ SAD a evidenciarem estruturas económico-financeiras largamente deficitárias. Os clubes e as SAD não podem continuar a ser geridos de fora para dentro, com a pressão dos sócios a intrometerem-se numa gestão que se precisa racional e dentro das capacidades efectivas dos clubes/ SAD. A compra de um jogador ou a demissão de um treinador, ou mesmo de um dirigente, não pode estar dependente de uma maior ou menor pressão dos associados. Esta situação é mais gritante quando se trata de sociedades desportivas em que a administração tem de prestar contas aos accionistas.
A redução dos salários dos jogadores é uma das soluções para sair da crise? A solução não deverá passar por algo mais estrutural?
O futebol profissional está numa situação económico-financeira extremamente difícil, sendo a actividade da maioria dos clubes/ SAD largamente deficitária, com custos incomportáveis para os proveitos gerados, assumindo particular importância os custos com o pessoal. Face à relevância que os salários dos jogadores representam na estrutura de custos de um clube/ SAD, constitui uma prioridade reduzir este tipo de encargos, mas esta não é nem poderá ser a solução para todos os males de que padece o futebol. No caso concreto da sociedade desportiva do Sporting, e sem colocar em causa a continuidade na senda dos êxitos desportivos de acordo com o historial do clube e as expectativas dos seus sócios e dos seus simpatizantes, foi definido um conjunto de metas que estamos em crer conduzirão a sociedade ao equilíbrio económico-financeiro; a saber: encontrar soluções criativas geradoras de mais e maiores receitas correntes; haver um esforço continuado na racionalização e no controlo das despesas correntes, com especial ênfase nas relacionados com fornecimentos e serviços externos e com custos com o pessoal; prosseguir o esforço de rentabilização do investimento efectuado na Academia Sporting, em detrimento de investimentos em novos jogadores, prática já conseguida na época desportiva finda; implicar, na sequência da implementação do modelo estratégico e organizativo, a estrutura directiva nas grandes linhas aí definidas, criando uma verdadeira cultura de empresa.
Até onde poderão ir as receitas dos clubes/ SAD? Para além da tradicional bilheteira, dos sócios, da televisão, da venda de jogadores?
Não obstante o período de forte recessão económica em que o país se encontra, e a consequente retracção das empresas e dos particulares em investir no futebol, esta é claramente uma área onde os gestores do futebol têm de ser mais criativos e inovadores. Outro aspecto com enorme importância para a maximização das receitas tradicionais e para o aparecimento de novas fontes de receita está muito dependente da mudança de atitude dos agentes do futebol; o discurso de pressão sobre os árbitros, o indiciamento de suspeitas que depois não são provadas, tudo isso é mau para o futebol. O modelo de desenvolvimento do Grupo Sporting em geral e da sociedade desportiva em particular passa pela exploração de outras áreas de negócio, satélites do futebol, conseguindo desta forma angariar receitas menos dependentes da performance desportiva.
No caso do Sporting, a aposta segura que parece estar a ser feita na formação será mais para vender, e assim ganhar dinheiro, ou para fazer uma boa equipa e assim também ganhar dinheiro?
O Sporting fez um forte investimento numa academia de futebol, convicto de que no futuro uma percentagem elevada dos jogadores do plantel principal serão oriundos das camadas jovens formadas naquelas instalações, as quais são reconhecidas, por todos aqueles que nos têm visitado, como das melhores da Europa. Tradicionalmente, o Sporting tem formado excelentes jogadores, dos quais Figo, Simão, Hugo Viana e Quaresma são os nomes mais sonantes e de maior projecção nacional e internacional. Com a criação de melhores condições de trabalho, como aquelas que são proporcionadas pela Academia Sporting, o desafio a que nos impomos é aumentar a cadência de geração de novos talentos, quer estes se destinem ao plantel principal, quer se destinem a ser cedidos definitivamente a outros clubes nacionais ou internacionais.
E no caso do futebol português em geral?
Penso que de uma forma geral a tendência é para que os clubes portugueses sejam essencialmente clubes formadores, capazes de gerar talentos, para posteriormente os cederem a clubes/ SAD de maior capacidade financeira. Tradicionalmente, os clubes/ SAD chamados de pequenos e médios formam jogadores para serem absorvidos no mercado interno, nomeadamente pelos três grandes do futebol português. Este mercado interno, que num passado recente rendeu mais valias significativas e encaixes financeiros avultados para os pequenos e médios clubes, tem vindo progressivamente a resfriar. Penso ter chegado o momento de estes clubes/ SAD equacionarem a existência de um mercado intermédio, pouco movimentado até aqui, e que resulta das operações que possam fazer entre si, tal como acontece nas principais ligas europeias. Considero que a dinamização de um mercado interno de transferências, inclusive entre os três grandes, só seria benéfica para a evolução do futebol português. Em suma, não nos podemos agarrar aos mercados tradicionais, há que correr em busca de novos mercados.
O negócio do futebol poderá proporcionar bons rendimentos a outras entidades que não os clubes e as SAD? A que tipo de entidades? Bancos por exemplo...
É caso para dizer que não só os bancos, mas todas as entidades a montante e a jusante dos clubes/ SAD ganham dinheiro com o negócio futebol, excepto os próprios clubes/ SAD, o que, parecendo um contra-senso, não é mais do que a realidade do futebol português. Quando anteriormente me referia à necessidade de os clubes/ SAD serem criativos na angariação de novas receitas e de maximização das existentes, tinha como pressuposto a necessidade de procurar junto das entidades que se movimentam à volta do futebol novas áreas de negócio, ou seja, melhor utilização e valorização dos conteúdos futebol.
Aparentemente, o nosso mercado não tem capacidade para gerar negócio para tantos clubes/ SAD, ao dividir-se o bolo por todos a cada um caberá uma pequena fatia. Por outro lado, é necessário haver um número significativo de participantes para haver campeonato. Como resolver este paradoxo?
A capacidade de geração de negócio é diferenciada, depende de vários factores, como a dimensão da massa adepta, o currículo desportivo, a antiguidade, etc., pelo que a divisão do negócio não é, naturalmente, igual. Tal como em outros ligas por esse mundo fora, a distribuição da riqueza é variável; a riqueza gerada por Manchester United, Bayern de Munique, Real Madrid, Barcelona, Inter de Milão, entre outros, não é igual à gerada por outros clubes/ SAD que com eles competem. Tal como nos mais variados sectores económicos existem grandes, médias e pequenas empresas, também no futebol existem grandes, médios e pequenos clubes/ SAD, com capacidades diferenciadas para gerar negócios e também com estruturas de custos diferentes. Um outro aspecto sobre o qual importa reflectir tem a ver com o número de equipas que participam no campeonato da primeira liga (agora designada por Superliga). Será que o actual modelo de 18 equipas é o mais aconselhável do ponto de vista de geração de negócio ou seria aconselhável uma liga com menos clubes/ SAD, eventualmente a três voltas, ou uma liga fechada? Provavelmente, nestes dois modelos alternativos os jogos seriam mais competitivos, com maior entusiasmo, maiores receitas, melhor racionalização dos custos; importa encontrar o modelo que melhor sirva os interesses dos clubes/ SAD. Em conclusão, aquilo que não me parece razoável é que países de dimensões geográficas e populacionais tão díspares como Portugal, Espanha, França, Itália e Alemanha tenham praticamente o mesmo número de clubes/ SAD a disputar o campeonato da primeira liga.
Em relação à cotação em Bolsa, porque não estão as SAD no Primeiro Mercado?
Aquando da subscrição pública das acções das sociedades desportivas do Sporting e do Porto, coroadas de grande êxito, a Euronext Lisboa tornou público ter deliberado favoravelmente a admissão destas duas sociedades ao Mercado de Cotações Oficiais. Entendimento diferente teve a Comissão do Mercado dos Valores Mobiliários, entidade a quem compete a última palavra nesta matéria, que se pronunciou de forma negativa, fundamentando a sua recusa no facto de as duas sociedades não terem dois anos completos de actividade, pelo que não seria possível aos investidores conhecerem as respectivas situações económico-financeira, dificultando a avaliação do risco inerente ao investimento em acções. Em meu entender, este posicionamento da CMVM prendeu-se mais com razões de falta de confiança sobre a solidez da competitividade do futebol profissional português, do que com razões de natureza técnica. Esta decisão foi inclusivamente entendida como um entrave ao projecto de credibilização e modernização do futebol encetado pelo governo, quando impôs aos clubes que se constituíssem como sociedades desportivas. Na sequência das reformas estruturais levadas a cabo na Euronext Lisboa, a sociedade desportiva do Sporting foi recentemente abordada no sentido de vir a ser cotada no Mercado de Cotações Oficiais. Este é um tema que tem vindo a ser estudado no âmbito do processo de reestruturação do Grupo Sporting, não tendo ainda sido tomada uma posição definitiva.
A cotação das acções das SAD do Sporting e do Porto valem sensivelmente metade do valor que tinham à data de constituição. Como explica isso?
Penso que a tendência da evolução da cotação das acções do Sporting e do Porto não diverge da tendência generalizada dos mercados bolsistas nacional e internacional. No caso concreto do sector económico do futebol, além fronteiras a situação não é diferente; veja-se o caso da cotação dos clubes ingleses, que têm no Manchester United o seu expoente máximo, e cuja performance bolsista tem conhecido um movimento descendente. A forte recessão económica e as expectativas futuras desfavoráveis dos investidores têm condicionado o registo de uma melhor performance bolsista. Em termos nacionais, seria importante que mais SAD pudessem ser cotadas em Bolsa, fortalecendo um mercado que actualmente apenas tem três sociedades desportivas, a do Sporting e a do Porto no Segundo Mercado e a do Sporting de Braga no Mercado sem Cotações.
Acha uma boa solução os sucessivos aumentos de capital?
Os aumentos de capital têm que ser entendidos como uma solução pontual e de reforço dos capitais de uma sociedade e não como uma solução de cobertura dos desequilíbrios financeiros consecutivamente gerados por deficiente gestão. Entendo que o aumento de capital deve ser visto como uma solução para dar cobertura a medidas de recuperação de uma sociedade, em que os gestores têm de dar sinais evidentes de mudança e de tomada de acções correctivas, sob pena de não conseguirem a aderência dos actuais e de novos accionistas.
A sociedade desportiva do Sporting deve ser controlada pelo clube?
A legislação em vigor limita a um mínimo de 15% a participação directa do clube fundador e a 40% o seu limite máximo. No caso concreto da sociedade desportiva do Sporting, os estatutos prevêem mecanismos de blindagem que asseguram ao clube o controlo, em assembleia-geral, de um determinado conjunto de deliberações. As sociedades desportivas, umas mais do que outras, e o mercado futebol do ponto de vista empresarial, têm uma história relativamente curta, pelo que penso ser prematuro, nesta fase, admitir-se a possibilidade de as sociedades desportivas não serem controladas pelo clubes.
Os sócios do clube poderão afastar-se gradualmente com a proliferação da SAD?
Penso que não. Aquilo que tenho verificado é que os sócios dos clubes estão cada vez mais identificados com a nova realidade das SAD. Por outro lado, e contrariamente aquilo que se fazia constar de que a criação das SAD levaria à perda da paixão pelo futebol, julgo que nada mudou neste aspecto. A paixão está bem viva e em nada foi afectada pelo facto de se ter mudado a forma de gerir o futebol.
Que análise faz do futebol português, tanto ao nível competitivo como ao nível da gestão?
Conforme referi anteriormente, o actual modelo de competição poderá não ser o mais ajustado para uma maior competitividade desportiva, para o engrandecimento do espectáculo, para arrastar multidões aos estádios. Entendo, também, que a envolvente que rodeia as competições condiciona essa mesma competitividade. A existência de uma opinião pública crítica em relação às instituições do futebol, quer pelas constantes tricas entre os vários agentes desportivos, quer pelas frequentes notícias de falta de transparência de processos, quer pelas práticas de perpetuação de poderes, em nada contribuem para o aumento da competitividade, antes pelo contrário. Em termos de gestão, e de um modo geral, o futebol português evidencia desequilíbrios financeiros crónicos, falta de organização, deficiente informação interna para gestão, insuficiência e deficiente informação para o exterior e inexistência de planos de negócio a médio e longo prazos. Esta é uma área onde a diferenciação entre os clubes/ SAD que disputam uma mesma competição é maior e que carece de uma intervenção urgente e corajosa das instituições reguladores. Como parece ser evidente, há uma manifesta concorrência desleal se uns clubes/ SAD são mais rigorosos e cumpridores do que outros. O actual momento poderá ser decisivo para se imporem as mudanças e as medidas correctivas com vista à indústria do futebol do amanhã, que se pretende competitiva, credível, transparente e mobilizadora. É neste contexto que poderá fazer sentido o sector do futebol ser considerado politicamente como um sector em reestruturação, com a inerente criação de condições favoráveis à inovação e ao aumento da competitividade.
Acha que as entidades, clubes, SAD ou seja lá o que for, com equipas de futebol profissional, serão alguma vez verdadeiras empresas?
A sociedade desportiva do Sporting já funciona como uma empresa e haverá outras SAD que também já o fazem. No entanto, a maioria dos clubes/ SAD ainda não conseguiram dar este salto qualitativo. Mais importante do que funcionar como empresa é a necessidade de os clubes/ SAD e restantes agentes desportivos evidenciarem disciplina empresarial segundo princípios e regras comuns e transparentes e de evidenciarem uma abordagem comum na prestação de informação financeira, com vista à credibilização das estruturas do futebol. Tem de haver claramente uma mudança de atitude por parte dos agentes desportivos, sob pena de mais tarde se virem a lamentar de não o ter feito em devido tempo.

CAIXA
O gestor
Rui Bacelar Meireles, nascido há 43 anos em Lisboa, é licenciado em «Gestão e Administração Pública» pelo Instituto Superior de Ciências Sociais e Políticas (ISCSP).
Entre 1986 e 1997, fez parte dos quadros de uma consultora da área de auditoria, tendo chegado à categoria de senior manager. Realizou trabalhos em mais de meia centena de empresas, em Portugal e em Moçambique, nas áreas de auditoria e consultoria de gestão, tendo ainda sido membro do conselho fiscal de várias empresas e responsável por artigos técnicos num semanário de informação económica.
Em 1995, ingressou no Sporting Clube de Portugal, como assessor do conselho directivo, para colaborar no processo de reorganização interna e no desenvolvimento do projecto «Grupo Sporting». Em 1997, com a constituição da Sporting SAD, ingressou nesta sociedade como director financeiro, sendo mais tarde promovido a director geral para a área «Não Futebol». Desde Outubro de 2002, acumula estas funções com as de administrador executivo da Sporting Gestão, sociedade do Grupo Sporting que tem como actividade a gestão e a coordenação dos serviços que são partilhados pelas empresas do Universo Sporting. No âmbito das funções desempenhadas na Sporting SAD, é o representante da sociedade junto da Comissão do Mercado dos Valores Mobiliários (CMVM) e da Euronext Lisboa.
Quando arranja tempo fora da actividade profissional, joga futebol e squash, além de montar a cavalo. [texto de 2003]

segunda-feira, 3 de setembro de 2007

Edição de Setembro

Número 61 da revista «Pessoal» – edição de Setembro. Na capa, quatro figuras de uma conferência europeia sobre e-learning que Lisboa vai acolher em meados de Outubro: Etelberto Costa, Roberto Carneiro, Carlos Zorrinho e Marc Rosenberg. Deixo a seguir o meu editorial.

Tudo tão relativo
Aqui, neste espaço, era para falar essencialmente de e-learning. É o tema do dossier da edição de Setembro da «Pessoal», tema que surge em virtude de Lisboa acolher em Outubro uma conferência europeia em que o e-learning estará em discussão. Surge essa conferência no âmbito da presidência portuguesa da União Europeia, de que tanto se falou mas de que ultimamente pouco se tem falado, talvez por essa mesma presidência ser ocupada em boa parte pelo período do Verão, com gente sempre a partir e a chegar de férias. E depois, isso de andar com uma presidência rotativa entre os diversos países, que na volta mais cedo ou mais tarde acabará, até nem dá para grandes cometimentos. Seis meses. Passa enquanto o diabo, se calhar um pobre diabo, se mete a esfregar um olho. Ia ocupar à maluca o primeiro-ministro, inundá-lo num stress classificado sempre como terrível ou coisa pior. Nunca acreditei muito nisso. Lá para Janeiro ou Fevereiro a vida do país deverá andar pelas normalidades internas e sempre tão pequeninas, e da presidência europeia hão-de ficar as recordações – espera-se que boas – de duas ou três coisas. Creio que pouco mais.
Era então para falar essencialmente de e-learning aqui. Mas deixo apenas uma nota, um convite para as páginas do dossier, onde o tema é desenvolvido principalmente em entrevistas que fizemos a dois especialistas, um português, com responsabilidades na organização da referida conferência, e um norte-americano, que será um dos principais oradores.
O resto deste espaço, onde costumo apresentar alguns assuntos da edição – na qual recomendo que conheçam o perfil de um executivo da Mercer em Portugal e também o olhar de uma das nossas jovens colaboradoras sobre Berlim, a que chama «a metrópole da cicatriz de pedra» –, o resto do espaço deixo-o para um texto que editei já sobre o fecho. A habitual crónica da Ana, desta vez sobre os seus amigos, todos com menos de 30 anos, e qualificados, muito qualificados, sem diplomas vagos, sem avaliações por fax, incapazes, tenho a certeza, de andarem a apregoar generalidades e redundâncias sobre a importância das qualificações e mais não sei quantos desafios. Esses jovens, escreve a Ana, vêem-se obrigados a procurar outros países… «Estados-Unidos, Alemanha, Noruega, Escócia com extensão ao Sri Lanka, são outras novas moradas escolhidas. Têm todas em comum oferecer condições a nível profissional muito dificilmente conseguidas em Portugal, com a idade e a experiência que consta no curriculum. Mesmo esquecendo o ordenado, as oportunidades oferecidas, as perspectivas de progressão na carreira e de aprendizagem são totalmente distintas das que os recém-licenciados ou com pouca experiência habitualmente encontram em Portugal, onde muitas vezes são vistos como mão-de-obra qualificada e barata.»
É o país ainda e sempre relativo, o país que trata assim os seus jovens mas que até foi capaz de reformar ministros velhíssimos de meia idade com muitos milhares de euros por mês só por terem estado nem meia-dúzia de anos a marcar lugar, por exemplo, no Banco de Portugal. «País onde qualquer palerma diz,/ a afastar do busílis o nariz:/ – Não, não é para mim este país!» Não sei se Alexandre O’Neill faria os versos assim se pudesse ver as coisas agora. Se pudesse ver que não é «qualquer palerma» que se põe a dizer que o país não lhe serve. São os jovens, e nem o dizem, apenas partem, sem comentários. Os «palermas», e não são uns «palermas quaisquer», esses agora ficam todos por cá. O país serve-lhes, e serve-os bem, e mesmo que lhes apareça algum busílis, o tempo – sobre o qual sempre poderão dizer nalguma entrevista que é um grande escultor, referindo depois a senhora Yourcenar apanhada à pressa nalgum livro de citações –, o tempo tudo se encarregará de solucionar.